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SUBLIMAÇÃO E PSICOSE

3.3 Esquema ótico

A dialética edipiana vai ser abordada por Lacan a partir de esquemas, uma tendência precocemente evidenciada no seu ensino. Durante 10 anos, Lacan utilizou o esquema ótico para situar a clivagem do imaginário e do simbólico e, especialmente, para metaforizar a relação entre eu ideal e Ideal do eu. A partir de O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964), ele não mais o utilizará (QUINET, 2002). No artigo “Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: Psicanálise e estrutura da personalidade” (1960), Lacan expõe e comenta esse esquema, que é também conhecido como o “esquema dos ideais da pessoa” (DOR, 1995, p.32). Esse esquema foi, inicialmente, comentado por Lacan em O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud (1953-1954/1986). Ao valer-se dele, Lacan diz estar seguindo a trilha aberta por Freud:

Esse modelo, eu lhes indiquei que ele está na linha mesma dos votos de Freud. Este explica, em vários lugares, especialmente em Traumdeutung e em Abriss, que as instâncias psíquicas fundamentais devem ser concebidas em sua maioria como representando o que se passa num aparelho fotográfico, isto é, como as imagens, sejam virtuais, sejam reais, que seu funcionamento produz. (LACAN, 1954/1986, p.145).

Lacan utiliza esse “divertido aparelho” para muitas demonstrações. Ele apresenta a regulação da relação imaginária pela relação simbólica, na medida em que é esta última que define a posição do sujeito como aquele que vê a imagem: “É a palavra a função simbólica

que define o maior ou menor grau de perfeição, de completude e de aproximação do imaginário.” (LACAN, 1954/1986, p.172). Esse experimento permite demonstrar de forma exemplar a intervenção do Outro simbólico27 na relação essencialmente imaginária.

Um espelho esférico produz uma imagem simétrica, invertida e real do objeto colocado diante de si; a imagem “real” é a imagem que pode ser vista no mesmo espaço que o objeto, sem a necessidade de uma tela. Lacan se interessa por esse fenômeno, que, hoje em dia, pertence ao que ele chama de “categoria da física do entretenimento”, por se tratar de um fenômeno já dominado pelas leis da ciência. Lacan elege um exemplo retirado da obra L´optique et photométrie dites géometriques, de Henri Bouasse, em que um buquê, localizado dentro de uma caixa sobre a qual se encontra um vaso, é colocado diante de um espelho côncavo. O reflexo produz uma imagem real e ilusória na medida em que apresenta o buquê dentro do vaso. Essa imagem depende, entretanto, da posição do observador.

Figura 1 - Esquema do buquê invertido - Bouasse

Ao esquema de Bouasse, Lacan introduz duas modificações: primeiro ele inverte a posição do vaso, coloca-o dentro da caixa e posiciona o buquê em cima da mesma, e depois

27 A grafia em maiúscula e minúscula do significante “outro” traduz, segundo o uso lacaniano, uma importante

distinção relativa aos registros. O Outro, com maiúscula, tem função determinante para o sujeito, sua dimensão é exterior, pertencente ao campo da linguagem, enquanto o outro, com minúscula, é reservado ao outro recíproco e simétrico do eu imaginário (MILLER, 1996, p.23).

ele introduz um espelho plano atrás da imagem real. A imagem real i(a) do modelo de Bouasse vai se produzir. Esta imagem, por sua vez, vai se constituir como o objeto a se refletir no espelho plano, onde vai se formar, então, a imagem virtual i’(a). Pelas propriedades desse tipo de espelho, as flores aparecerão encerradas pela boca do vaso, e o observador, em função de sua posição, não verá mais a imagem real, omitida na ilustração abaixo.

Figura 2 - Esquema do vaso invertido - Lacan

A primeira analogia que Lacan estabelece entre o aparelho ótico e o homem é relativa à função da imagem e da voz do outro na estruturação do eu. A qualidade da imagem vai depender da posição do espelho que é “comandada pela voz do outro”. Assim, a “acomodação do imaginário do homem” é dependente do Outro, ou seja, da relação simbólica entre os seres humanos (Cf. LACAN, 1954/1986, p.164).

Lacan propõe uma equivalência entre o vaso como o invólucro e o corpo libidinal em sua realidade, indicando, com isso, o pouco acesso que o sujeito tem à realidade de seu corpo. Assim, o vaso escondido na caixa escapa ao observador, como escapa também sua imagem real, o que é análogo à função de desconhecimento que a concepção do estádio do espelho institui como princípio da formação do eu (LACAN, 1960/1998, p.682).

As flores são aparentes e representam o objeto parcial (a) e a dispersão dos objetos de desejo. Esses objetos são acomodados na boca do vaso, por efeito imaginário, constituindo um conjunto no buquê da imagem real i(a).

O espaço real representa o campo do Outro. Isto significa que o grande Outro do discurso não está ausente da relação entre o sujeito e o pequeno outro da díade imaginária, o que pode ser confirmado “no gesto pelo qual a criança diante do espelho, voltando-se para aquele que a segura, apela com o olhar para o testemunho que decanta, por confirmá-lo, o reconhecimento da imagem, da assunção jubilatória em que, por certo, ela já estava” (LACAN, 1960/1998, p.685).

As imagens i(a) e i’(a) do esquema ótico são o suporte de uma subordinação imaginária análoga ao estádio do espelho. A alienação radical do sujeito $ ao pequeno outro, que fundamenta a captura narcísica do eu ideal, só se deve ao fato de que o sujeito não pode ter acesso à imagem real i(a), senão por meio da imagem especular i’(a). A relação especular é totalmente dependente do Outro, assim como a consistência da imagem virtual i’(a) a partir de i(a) depende da posição do espelho plano A, representante do Outro. O Outro, como espelho em A, regula o jogo recíproco da imagem real i(a) e da imagem virtual i’(a) para o sujeito $. A estruturação do registro imaginário depende, portanto, do registro simbólico, ou seja, da constituição do Ideal do eu metaforizado pela inclinação do espelho plano (DOR, 1995, p.43). A posição do sujeito em relação ao desejo é concebida a partir de um guia que se encontra além do imaginário, no nível do plano simbólico da troca verbal entre os seres humanos. Esse guia é o Ideal do eu.

O homem só sabe da sua imagem ao vê-la fora de si; essa visão depende, entretanto, da sua posição diante da imagem real, podendo resultar numa imagem inteira e bem-definida, ou, por outro lado, numa imagem distorcida e fragmentada. As alterações da imagem mostram, no outro absoluto e imaginário, figuras diferentes, que representam objetos

diferentes do desejo, que são possibilitadas pela infinidade de figuras metafóricas e metonímicas possíveis a partir do momento que a busca é feita pela mediação da linguagem (Cf. LACAN, 1954/1986, p.185).

A integração simbólica é correlata da segunda identificação apresentada por Freud, a que é responsável pela constituição do Ideal do eu, assim como da concomitante ruptura no plano imaginário, que libera a criança da fixação na forma e a coloca diante de um campo ampliado e mais potente, de possibilidades substitutivas para a satisfação pulsional (Cf. LACAN, 1948/1998).

Por esse viés, Lacan introduz o tema hegeliano – “o desejo do homem é o desejo do outro” (LACAN, 1954/1986, p.172). O desejo, ao ser reconhecido no símbolo, torna-se mais versátil, ganha flexibilidade e eternidade. A partir do momento em que o sujeito se reveste das insígnias do pai, o desejo não é mais o mesmo; surge da “relação com um terceiro termo que nada tinha a ver com a relação libidinal primária, e esse desejo vem substituir o primeiro, mas através dessa substituição, ele mesmo se vê transformado” (LACAN, 1958a/1999, p.309).