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Convergência entre sublimação e idealização

A SUBLIMAÇÃO E OS IDEAIS

2.3 Convergência entre sublimação e idealização

Retornemos às questões referentes à sublimação e à idealização. A idealização parece imprimir suas marcas em várias atividades socioculturais, levando-nos a questionar sobre uma possível afinidade entre esses processos. Interessa-nos, agora, além da divergência entre esses processos, investigar situações em que se verifica, ao contrário, uma convergência entre sublimação e idealização. Freud, na conclusão de seu ensaio sobre o narcisismo, faz um comentário no qual podemos nos basear para continuar nossa investigação a respeito da afinidade entre idealização e sublimação:

Também fica agora mais inteligível a convergência que ocorre entre a formação de ideal e a sublimação, ambas dirigindo-se para o interior do Ideal do eu. Por fim, pode-se explicar melhor a involução retroativa das sublimações e as eventuais transformações dos ideais que ocorrem por ocasião do adoecimento parafrênico (FREUD, 1914/2004, p. 119).

A idealização não é particularidade da libido do eu, ela ocorre também com a libido objetal. Ao se reconhecer que o ideal favorece o recalque, admite-se também que ele consegue, ainda assim, sob algumas condições, levar a satisfação libidinal até os objetos, como se lê em Freud: “O Ideal do eu conseguiu levar a satisfação libidinal até os objetos sob condições difíceis, pois seu censor excluiu parcelas dessa satisfação por considerá-las intoleráveis.” (FREUD, 1914/2004, p.117).

A idealização permite ao eu satisfazer-se pelos objetos externos, contrariamente ao recalque, mesmo que para isso empreenda uma árdua tarefa: “A idealização pode ocorrer tanto no campo da libido do eu quanto no da libido objetal. Por exemplo, a supervalorização sexual do objeto é de fato uma idealização do objeto.” (FREUD, 1914/2004, p.112-113).

Considerando a idealização da libido objetal, propomos pensar a sublimação quando apoiada na idealização objetal. A pulsão, eventualmente, consegue endereçar-se ao mundo

externo e eleger objetos da cultura, para além da esfera amorosa e distante do sexual, preservando, contudo, a fixação aos ideais.

O novo investimento será determinado, consequentemente, pelos ideais. Nesse caso, o destino da sublimação, mesmo em condições difíceis, acaba levando a melhor. O apego aos ideais mantém a libido comprometida com determinadas particularidades do objeto, impedindo, entretanto, a liberdade de criação de novos objetos, pois o eu conduz a pulsão sempre aos mesmos objetos ideais, aqueles que compartilham dos atributos idealizados, enquanto outros são considerados intoleráveis. Idealizados, os objetos constituem uma referência fortemente investida, de cujo modelo o eu não consegue prescindir.

A energia que consegue se deslocar, embora pareça ser energia livre, é afetada pelos ideais, estando, portanto, comprometida em sua plasticidade, uma característica da pulsão que tem íntima relação com a sublimação. A potência plástica da pulsão, estando prejudicada, nos remeteria a uma característica oposta, a viscosidade pulsional, resultante do apego aos atributos dos modelos ideais. Nesse caso, a pulsão estaria impregnada deles. Podemos nos perguntar se essas condições seriam coerentes com os processos culturais alienados, repetitivos e conservadores, processos cujo potencial criativo estaria limitado pelas referências ideais e morais de um grupo. Não seria descabido indagar se as atividades culturais que não se opõem aos ideais ainda pertenceriam ao campo da sublimação.

A noção de “pseudo-sublimações”, proposta por Ambertin em seu artigo “A questão do sujeito e suas identificações”, é útil para tentar responder a essas questões que se apresentam no terreno da sublimação e que mostram sua relação com a idealização, quando esta ocorre com a libido objetal. A autora nos diz que a criação de algo novo não se dá por esse caminho no qual se visa sempre o mesmo. As pseudo-sublimações são, para ela, as criações que buscam encobrir a falta, oferecendo um objeto imaginário capaz de aplacar o desejo (AMBERTIN, 2000, p.2).

O problema dessa formulação nos parece ser o de idealizar o próprio processo sublimatório, que passa a ser uma referência válida apenas para os processos mais elaborados. Vimos, através da investigação sobre Leonardo Da Vinci, que a sublimação “perfeita” corresponde apenas ao último período de sua criação artística, mas não encontra correspondente em outras fases.

Ora, muitas atividades humanas, talvez a maioria, provavelmente pertencem a essa categoria: ou não são dignas do nome sublimação ou são pseudo-sublimações, já que a sublimação pura é rara. Por outro lado, é inegável que elas desempenham um papel na economia psíquica do sujeito. Não sendo sublimações, que outro nome lhes atribuir, em qual contexto teórico investigar a origem e os efeitos dessas atividades na economia psíquica do sujeito?

No estudo sobre Leonardo Da Vinci (1910a), Freud detectou, a partir da sua religiosidade, indícios de que ele havia superado o pai. Para Freud, Deus é o substituto do pai, portanto, a superação deste pode ser confirmada pelo desprezo de Leonardo pelos valores e crenças religiosas. Freud é enfático ao dizer que Da Vinci “superou tanto a religião dogmática quanto a pessoal” (FREUD, 1910a/1996, p.129). O destino da sublimação foi favorecido, portanto, por essa superação dos ideais paternos; sua arte apresentava novidades decorrentes de sua liberdade criativa, e o artista não se limitava a reproduzir imagens sacras, tais como a religião as concebia. Recordemos, entretanto, que o sintoma se manifestava por meio da inibição na arte. Apesar da destituição dos ideais religiosos de sua época, a inibição artística resultava do elevado conceito de arte de que Leonardo compartilhava. Suas produções nunca alcançavam o grau de exigência que ele se fazia, ele sempre as abandonava, deixando-as inacabadas.

Observamos que, também na arte, nem sempre se confirma um processo sublimatório em franca oposição aos ideais, um processo que seja essencialmente revolucionário e

renovador, o que nos permite levantar a possibilidade de o processo artístico acontecer, apoiado também em elevados ideais. Dessa forma, concluímos com Freud que, às vezes, a sublimação independe da motivação do ideal e, outras vezes, depende dela (FREUD, 1914/2004, p.112-113).