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INTRODUÇÃO AO CONCEITO DE SUBLIMAÇÃO EM LACAN

4.1 Das Ding

As noções de objeto e de das Ding são relevantes para a compreensão da perspectiva teórica lacaniana da sublimação.

Afastando-se da filosofia, Freud propõe o termo representação-objeto, em substituição a “representação de objeto”. Essa nomenclatura, eleita por Freud, denota que não existe, contrariamente ao que a filosofia da representação declarava, duas séries

correspondentes, sendo uma a dos objetos e outra a dos nomes. O objeto, ao se constituir como tal, já se constituiria também como representação. Não existe um objeto ou uma representação que, como entidades isoladas, precedam a representação-objeto. Para a filosofia clássica, sujeito e objeto são antinômicos. O objeto é o externo, fora do sujeito, sem nenhuma ambigüidade. O termo representação-objeto, escolhido por Freud, problematiza essa questão. O objeto vincula-se ao sujeito, comprometendo a distinção entre os dois. O objeto freudiano está em relação com das Ding, mas não se confunde com esta, assim como se apresenta também em relação com o sujeito (Cf. FRANÇA NETO, 1998, p.85). Os pós-freudianos, por sua vez, estabelecem uma suposta harmonia entre o desejo e o objeto.

Acusando os pós-freudianos de produzirem uma distorção teórica, ao tomarem o objeto e o desejo em uma relação de equivalência e pressuporem a existência de um objeto que animaria e alimentaria o desejo, Lacan, em O Seminário, livro 4: a relação de objeto (1956-1957/1995), confronta-os nesse ponto polêmico, que diz respeito à relação de objeto e à ética da adaptação que advém dessa concepção.

No livro Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Freud designa o seio materno como o objeto imaginário perdido e por isso desejado. O predicativo “perdido”, atribuído ao objeto em Freud, merece consideração, pois implica um paradoxo: “Encontrar o objeto sexual é, em suma, reencontrá-lo.” (FREUD, 1905/1996, p.229). Freud nos ofereceu, no texto sobre o narcisismo, a teoria sobre os fundamentos narcísicos do objeto, sobre sua inserção no registro imaginário. O objeto empírico, que captura o desejo, constitui-se como uma ilusão. Assim que é apreendido, evidencia-se como um engano, dando ao sujeito a convicção de que não é disso que se trata. Concluímos que o “achado” não é da mesma natureza do que foi “perdido”, e que um objeto nunca responde à falta do Outro.

Lacan faz uma leitura do objeto perdido freudiano, considerando não o tempo cronológico, mas o tempo lógico da criação do objeto. Objeto que, ao ser encontrado, instaura

esse instante como sendo um reencontro, atribuindo ao objeto o estatuto de perdido. O objeto ganha esse estatuto só depois, a posteriori, ou seja, após ter sido reencontrado. A idéia de um objeto perdido associa o desejo à busca da reedição de uma experiência, na qual se supõe que o objeto tivesse sido possuído; a falta torna-se uma referência do fracasso da busca, o que não passa de uma interpretação neurótica, para tentar falar do objeto como impossibilidade.

Das Ding, a Coisa, é uma noção que Lacan recupera do texto freudiano “Projeto para uma psicologia científica” (1895). Nesse trabalho, Freud está tentando descrever, em termos neurológicos, o aparelho psíquico e seus princípios. A função primária do sistema nervoso é descrita como o princípio da inércia, cuja tendência primordial é se livrar de qualquer excitação por meio de uma ação que descarregue energia segundo o modelo do arco-reflexo. A necessidade de se pensar um outro princípio é imposta logo de início, pois a complexidade do aparelho – que recebe estímulos não apenas do mundo externo como também estímulos endógenos, para os quais a fome e a sexualidade são os melhores exemplos – exige ações específicas para sua descarga. Essas ações, para que sejam executadas, exigem a suspensão da descarga e a tolerância ao acúmulo de energia, até que se alcancem algumas condições para a descarga. Cabe ao aparelho identificar se o objeto relativo à vivência de satisfação encontra-se na realidade, ou se encontra-se apenas na memória, antes que possa efetuar a descarga. Freud supõe uma situação em que o desejo é despertado diante de uma percepção que não corresponde a ele integralmente, mas apenas em parte. Considera que o desejo se relaciona com os neurônios a+b e a percepção se relaciona aos neurônios a+c. Decompondo o complexo perceptivo em dois componentes, temos a parte constante e incompreendida “a”, a Coisa (Das Ding), e a parte variável, atributo ou predicado“b” (Cf. FREUD, 1895/1996, p. 439). Os atributos mudam, mas há uma pequena coisa que está sempre lá e dá origem à atividade do pensamento. As percepções (atributos e predicados), a parte cambiante, “despertam interesse devido a sua possível conexão com o objeto desejado” (FREUD,

1895/1996, p. 421). Desse estudo freudiano, Lacan destacou e evidenciou a falta concernente ao objeto psicanalítico como operador dos processos psíquicos: das Ding.

Entre o objeto e das Ding há uma hiância intransponível: “Esse objeto, precisamente, não é a Coisa, na medida em que ela está no âmago da economia libidinal.” (LACAN, 1960/1997, p.140). A primeira relação que constitui o aparelho psíquico se efetiva por meios significantes, na tentativa de recuperar o que é da ordem de um furo, de um vazio no real. A organização significante domina o aparelho psíquico, mas não há nada entre a rede significante e a constituição do espaço central como o campo de das Ding (LACAN, 1960/1997, p.149). Das Ding é do campo do real, é “o que do real, (...) tanto o real que é o do sujeito, quanto o real com o qual ele lida como lhe sendo exterior – o que, do real primordial, (...) padece do significante” (LACAN, 1960/1997, p.148).

Fora do registro simbólico e imaginário é que Lacan busca o campo de das Ding como o interior do “real derradeiro da organização psíquica”, que tem relação com o Real-ich, mencionado no texto sobre o narcisismo, de Freud. Das Ding é o interior de um real hipotético de onde, entretanto, se encontra excluído (Cf. LACAN, 1960/1997, p.128).

Essa é uma noção importante nas formulações lacanianas sobre a sublimação que se aproxima do conceito de objeto a. Marco Antônio Coutinho (2002) ressalta que, desses dois operadores da clínica lacaniana, das Ding e objeto a, uma importante distinção veio a ser introduzida no que diz respeito à possibilidade de diferenciar o objeto perdido da espécie humana e o objeto perdido da história de cada sujeito. O objeto perdido da história de cada sujeito, objeto a, pode ser re-encontrado nos sucessivos substitutos que o sujeito organiza para si, em seus deslocamentos simbólicos e investimentos libidinais imaginários. Mas, nesses reencontros, por trás dos objetos privilegiados de seu desejo, o sujeito irá se deparar de forma inarredável com a Coisa perdida da espécie-humana. Isso significa que se trata sempre, nos reencontros com o objeto, da repetição de um “encontro faltoso com o real”, maneira pela

qual Lacan define a função da tiquê, que vigora por trás do autômaton da cadeia simbólica (COUTINHO, 2002, p. 142). Coutinho distingue história de pré-história, o que na linguagem freudiana corresponde à filogênese e à ontogênese. Essa diferenciação, aplicada no contexto da relação de objeto, é aquela que se faz entre das Ding e o objeto materno.