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Sylvia Plath e a desfusão pulsional

A SUBLIMAÇÃO E OS IDEAIS

2.6 Pulsão de vida e pulsão de morte

2.6.3 Sylvia Plath e a desfusão pulsional

Uma pesquisa elaborada por Ana Cecília Carvalho a respeito da escritora americana Sylvia Plath nos mostra, com riqueza, a presença de impulsos destrutivos atuando livremente no interior do processo criativo. Em A poética do suicídio em Sylvia Plath (2003), Carvalho, entre outras referências além da psicanálise, se vale da formulação freudiana sobre a desfusão pulsional para investigar a vida, a morte e a obra da escritora que tão precocemente deu fim à sua própria existência.

Carvalho nos lembra que Sylvia Plath escreveu muito sobre o aspecto apaziguador que a escrita tinha para ela, fazendo-nos crer no papel reordenador e restaurador do mundo que a escrita possui. Acreditava que o escritor devia fazer uso de experiências desprazerosas– para utilizar um termo caro a Freud em sua investigação sobre além do princípio do prazer –, como a tortura e a loucura, para produzir seus textos e poemas. Sylvia Plath dizia que sua vida era um texto que poderia ser reescrito e reinventado várias vezes (CARVALHO, 2003, p.17).

Grande parte da atividade literária da escritora pode ser identificada ao esforço de encontrar palavras que se prestassem a representar as experiências vividas por ela. Carvalho destaca alguns exemplos em que Plath tentava dar uma nova forma às vivências desprazerosas

de sua vida. Em 1961, por exemplo, ela sofreu um aborto, experiência que foi transformada em poema poucos dias depois; assim também, à experiência de uma cirurgia para remoção do apêndice vai suceder um poema que aborda sua estada no hospital. A visita que fez ao túmulo do pai, em 1959, foi escrita e reescrita nos diários, em poemas e até em um romance. A obra de Sylvia Plath apresenta também, além de suas experiências, uma riqueza de fontes nas quais ela se inspirava. Carvalho identifica várias das fontes que alimentavam sua escrita. A mitologia, a história, a religião, o folclore africano, a pintura moderna e até a psicanálise freqüentavam sua obra (CARVALHO, 2003, p.45), porém, “todas essas fontes parecem ter servido ao mesmo propósito, já que forneceram as referências exteriores sobre as quais a experiência subjetiva e pessoal de Sylvia Plath pudesse apoiar-se” (CARVALHO, 2003, p.45- 46). As experiências desagradáveis de dor e de sofrimento estão presentes em toda a obra da escritora americana, que admitia só conseguir escrever se fosse a partir dessas vivências. Em uma de suas anotações pode-se ler: “Vou perecer se não conseguir escrever sobre ninguém a não ser eu mesma.” (PLATH apud CARVALHO, 2003, p.28).

A elaboração e a tradução das experiências dolorosas correspondem, provavelmente, ao efeito reordenador e apaziguador que a representação de algumas experiências proporcionou para a autora. Mas, como Carvalho nos mostra, sua obra revela um outro aspecto, um lado impiedosamente mortífero, denotando que, por trás do potencial transformador e criativo, uma força silenciosa trabalha, incansavelmente, buscando conduzir ao estado inanimado. Alguns aspectos do trabalho de Plath evidenciam a função de representação da escrita e também aspectos que vão além da representação. Nesse sentido, é importante ressaltar que, em O mal-estar na civilização (1930), Freud afirmou ser a pulsão de morte como pulsão de destruição, sendo esta compreendida como uma disposição pulsional autônoma e originária do ser humano. A autonomia da pulsão de morte é perfeitamente coincidente com a idéia da pulsão de morte situada além da representação, além da ordem e

além do princípio do prazer. A pulsão de morte “é pura dispersão, pura potência dispersa” (GARCIA-ROZA, 1990, p.143).

Na obra de Sylvia Plath, encontramos significantes que fazem referência à fixação e à contenção, assim como alusões ao fluxo e à dissolução, evidenciando a ação das duas classes pulsionais opostas, uma que visa a união e a outra tendendo à fragmentação. Sua escrita complementaria a série de situações apresentadas por Freud para revelar que, para além do princípio do prazer, uma força demoníaca leva o sujeito a repetir incessantemente experiências de dor e sofrimento. Os temas ligados à morte não estão ausentes de sua escrita, pelo contrário, eles estão intimamente relacionados à vida e à obra da escritora, apesar de ela própria se queixar que ficava a “ruminar” apenas “desgostos” e que sentia falta de “uma certa verve alegre, descontraída” (PLATH apud CARVALHO, 2003, p.50).

O esforço de dar forma a toda experiência animava sua escrita. A escritora era tomada por “uma fúria de frustração”, quando alguma inibição a impedia de escrever o que realmente sentia (PLATH apud CARVALHO, 2003, p.31). Verifica-se, nesse ponto, “um embate incessante e insolúvel entre o impulso para dizer e o silêncio que reside no interior da linguagem” (CARVALHO, 2003, p.245). Sua escrita ultrapassa o limite da significação, confronta-se com o vazio e a impossibilidade de traduzir algumas vivências, valendo-se dos meios que a língua oferece. Segundo Carvalho, mesmo suspeitando de que o fluxo pulsional não poderia ser contido pelo “polegar” da palavra, Plath ousou aproximar-se demasiadamente do campo do irrepresentável. A impossibilidade de representar todas as suas experiências foi expressa, pela escritora, de diversas maneiras como, por exemplo, na poética frase: “Ruína que nenhuma cerimônia de palavras conseguirá remendar.” (PLATH apud CARVALHO, 2003, p.247).

Vimos na obra e na vida de Sylvia Plath a presença da força “demoníaca”, que Freud identifica como sendo a pulsão de morte, silenciosa por natureza, que, contudo, faz ruídos. A

força de morte se fez representar em atos de destruição: oferecemos mais um exemplo na queima enraivecida, feita por Plath, de um grande número de seus escritos, experiência que foi também re-apresentada em poema.

Segundo Carvalho, a obra de Sylvia Plath mostra que a distância entre as ligações e a energia pulsional que elas visam dominar aponta para diferentes conseqüências do processo sublimatório. É provável que os arranjos sublimatórios do tipo que estamos investigando sejam os “que se encontram mais próximos das ligações primitivas da energia pulsional livre”, ou seja, “aqueles que mais se abrem à irrupção pulsional” (CARVALHO, 2003, p.245). A proximidade do vazio representacional, consequentemente, foi devastadora para a escritora. Em 1962, quando dirigia sozinha por uma estrada, ela jogou o carro para fora da estrada, chegando a reconhecer, nesta, mais uma de suas tentativas de suicídio. No ano seguinte, portanto em 1963, a escritora vedou a porta do quarto dos filhos, como que para protegê-los, dirigindo-se à cozinha, que também foi cuidadosamente vedada. Ligou as torneiras do gás e abriu a porta do forno, no qual introduziu sua própria cabeça, deixando que a morte a dominasse definitivamente.

Carvalho reconhece que o suicídio da escritora “caiu como uma sombra sobre sua obra” (CARVALHO, 2003, p.44), dificultando e, às vezes, impedindo o estudo de sua escrita para além da sedução que a tragédia pessoal da autora despertou. Admite, contudo, que o limite da investigação proposta é imposto pela articulação inextricável entre a vida, a morte e a obra da autora. À medida que o sujeito mostra seu sofrimento, pode-se perguntar se a morte, que se insinua quase sem máscaras, é expressão inerente à atividade criativa e literária, força que, como vimos em Além do princípio do prazer, revela os efeitos da pulsão de morte, como força presente em toda atividade humana, ou se a dor e o sofrimento presentes na obra são indícios que fazem desta a escrita de uma morte anunciada. No caso de Sylvia Plath, apenas a posteriori sua obra pôde ser tomada como confissão do suicídio. Os estudos que pretendem

identificar, a partir dos elementos mortíferos presentes em uma obra, os possíveis atos suicidas de seus escritores, buscando dominar a tão inquietante questão da morte, certamente incorreriam no erro de encontrar muito mais escritores suicidas do que, de fato, existem. Os elementos mortíferos, como vimos, animam a escrita sem que isso signifique que o autor irá sucumbir. Por outro lado, a proximidade da morte nos aponta para um risco implicado na atividade criativa, que depende da intensidade das forças eróticas e mortíferas e da proximidade do vazio, que cabe à obra apenas contornar. Sabemos que, nesse confronto com o vazio, Sylvia Plath “terminou por efetuar, na morte, uma derradeira representação” (CARVALHO, 2003, p.247). No entanto, o suicídio não é a única saída. Para além desse limite, nada mais se pode dizer, mas pode-se, ainda, inventar um modo singular de lidar com o que não tem nome.

A obra de Sylvia Plath nos serve como um belo exemplo de que a obra é movida por elementos mortíferos, especialmente, quando se trata de um trabalho criativo e inovador. Quanto a essa autora, quando levamos em consideração suas graves crises depressivas, cabe, no máximo, fazer ecoar a questão proposta por Freud: “Por que um homem precisa adoecer para ter acesso a uma verdade dessa espécie?” (FREUD, 1915/1996, p.252). Ao que podemos responder, também inspirados em Freud, que o artista sabe de coisas insuspeitadas pelos homens comuns.

Como disse Carvalho, a escrita de Sylvia Plath “está apoiada sobre as bordas de um vazio que é central na linguagem” (CARVALHO, 2003, p.18). A hemorragia da escrita de Plath revela uma falta “cuja dimensão de perda radical arrasta o eu nas profundezas da hemorragia interna, da desvalia e da inutilidade” (CARVALHO, 2003, p.246). Falta nascida da deficiência do outro, de seu desmoronamento. Essa falta é decorrente, como nos diz Carvalho, da falência do Ideal (CARVALHO, 2003, p.246). O suicídio de Plath revela a precariedade das forças internas defensivas e organizadoras que, como diz a pesquisadora da

obra, se deve à falência do Ideal. O Ideal seria, portanto, um ponto de amarração capaz de atar as mãos da pulsão de morte. O Ideal, como o que protege o sujeito do excesso pulsional mortífero, nos leva a identificá-lo no reino da força pulsional oposta. Nesse sentido, quando comparamos o supereu amável ao Ideal do eu, identificamos a pulsão de vida como a força que move o Ideal, em oposição ao supereu sádico, a trincheira da pulsão de morte.