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A designação na semântica do acontecimento e suas relações com a argumentação

Capítulo III – A articulação entre teoria e metodologia para a compreensão do sentido

3.5. A designação na semântica do acontecimento e suas relações com a argumentação

O processo de reescrituração liga pontos de um texto com outros do mesmo texto, e mesmo, pontos de um texto, com pontos de outro texto. Este processo ao se dar, produz sentido, na medida em que, ao retomar alguma expressão faz com que ela signifique de outro modo.

A reescrituração pode ser por repetição, substituição, elipse, expansão, condensação e definição. E os processos de reescrituração podem ocorrer por sinonímia, especificação, desenvolvimento, generalização, totalização, enumeração. E Guimarães explica que “estes modos de reescrituração podem se dar com variados tipos de reescritura” (Guimarães, 2007b, p. 92).

Há ainda os procedimentos de articulação, que para Guimarães (2007b) dizem respeito às relações próprias das contiguidades locais e ocorrem no interior dos enunciados ou na relação entre eles. Exemplos de articulação são relações de predicação e referência (no enunciado), a pressuposição, as relações argumentativas (Guimarães, 2007b, p. 16).

Em nosso trabalho exploramos as relações de determinação relacionadas à configuração da cena enunciativa, e nas constituições de significação, operamos com as relações de antonímia e pudemos observar surpresa em relação ao esperado, pois encontramos a oposição escravidão/abolição, mas também escravidão/emancipação que em alguns casos pode ser tomada como uma relação de sinonímia com escravidão.

Outra noção, que se associa às reescrituras e que utilizamos para a interpretação dos textos, foi a de designação.

3.5. A designação na semântica do acontecimento e suas relações com a argumentação.

Guimarães (2005c) desenvolveu o conceito de designação desde o início dos anos 90

14, o que gerou outras pesquisas por parte de outros pesquisadores, assim, ao falar de

semântica do acontecimento, muitas vezes, torna-se necessário falar de designação. Desta forma, a designação é abordada aqui também para buscar compreender as relações entre designação e argumentação e perguntar como se dá a relação de uma palavra redizendo outra, e o que representa a mudança de designações para a constituição da argumentação nos textos que analisamos a respeito da escravidão. A designação se relaciona com a argumentação? De

14 Muitos outros autores trabalharam com a noção de designação na semântica formal. Há também trabalhos mais recentes sobre designação como os de Kleiber (1984), Bosredon (1997) e Mortureux (1993) com a noção de “Paradigmes désignationnels”.

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que forma isto ocorre? Este é um questionamento ao qual chegamos quando analisamos um texto do jornal Correio Paulistano e nos deparamos com enunciações como “escravo”, “elemento servil” e “ex-escravo”, esta análise desenvolveremos no capítulo IV, mas a destacamos aqui porque chegamos a questões em que a discussão sobre esta relação se tornou necessária.

Abordaremos, aqui, como se caracteriza a designação, tomando como base o conceito de Guimarães (2005c), seus próprios desenvolvimentos e como o conceito aparece no trabalho de outros pesquisadores. Sabemos que o acontecimento enunciativo se dá no espaço de enunciação e é particularizado, em cenas enunciativas. Nestes funcionamentos enunciativos, a designação é um elemento intrigante e, mais ainda, se pensarmos que ela se relaciona com a argumentação.

A designação relaciona-se com a temporalidade e significa o presente da enunciação que recorta um memorável e as mudanças de designações podem ser indício de como este memorável é ressignificado no presente da enunciação.

Como estamos tratando de uma semântica, não poderíamos deixar de falar da referência, Guimarães (2005c) menciona dois aspectos importantes no estudo da designação e da referência: é possível designar e nomear ou designar e referir; e isto leva a procedimentos diferentes de análise, que podem ser por meio de relações entre acontecimentos enunciativos e; no caso da referência, por meio da análise das reescriturações, que representariam a deriva dos sentidos, assim como a atribuição de um memorável ao enunciado e a indicação de uma futuridade.

A designação está articulada ao espaço de enunciação e a presença ou não de determinada designação faz parte dos mecanismos de controle deste espaço. É o que mostra Guimarães (2005c) quando analisa os casos de nomeação de rua da cidade de Cosmópolis; em relação à “Rua dos Trabalhadores”, ele observa que a Língua do Estado exerceu este controle, de forma a instituir a nomeação por ela desejada, assim:

ao constituir como lugar social do dizer o locutor-administrador e não o locutor- cosmopolense, retira do memorável a história dos trabalhadores de Cosmópolis. Não há, em Cosmópolis, por exemplo, uma Rua Egydio Rafacho, líder da greve dos trabalhadores na Usina Ester na década de 40, e que resultou na criação do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Açucareira, primeiro sindicato e primeira entidade de Classe da Cidade. Assim ao homenagear os trabalhadores como classe e intemporalmente, excluem-se os trabalhadores da história da cidade. Eles não se identificam como tal aí. Ou seja, enunciar a Rua dos Trabalhadores significa o silenciamento da história dos trabalhadores das lavouras da cana de açúcar e da

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usina Ester, bem como sobre a história das lutas pela constituição do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Açucareira a que já nos referimos antes. Podemos aqui dizer que a temporalidade desta enunciação é parte daquela que nomeou a Cidade como Cosmópolis. A nomeação da Cidade, no que ela tem de intenção etimológica, recortou uma memória na qual os imigrantes não estão aí como trabalhadores, mas como povos diferentes. A Rua Trabalhadores não significa os trabalhadores, mas uma classe vazia de história e portanto de corpos. (GUIMARÃES, 2005c, p. 66).

Vemos, então, que designar a rua com o nome de um líder de greve ou com a palavra “trabalhadores” representam histórias diferentes deste lugar e direcionamentos diferentes para o sentido desta história. No caso do texto do jornal Correio Paulistano, trata-se de reescrituras da palavra “escravo” que pode indicar embates do espaço de enunciação e tentativas de silenciamento de dizeres. Adiantamos que o jornal traz a palavra “escravo”, do título do texto que analisamos (“Imposto sobre escravo”), reescrita por “elemento servil” e depois por “ex- escravo”. Contudo, o que significariam estas designações que reescrevem “escravo”? Elas representariam mudanças significativas em relação à escravidão? É o que vamos analisar no item (5.4.1. e 5.4.2.) do capítulo V.

Outros trabalhos na semântica do acontecimento também abordaram a designação e buscaram relacioná-la à argumentação. É o caso do estudo de Oliveira (1998) que não trata da designação, mas da predicação, no caso de: cristão carnal/cristão verdadeiro. Oliveira (1998) comenta que “com a mudança nos sujeitos interlocutores e no foco da argumentação, no

Palavra de vida ocorre o silenciamento da dicotomia cristão carnal/cristão verdadeiro e dos

sentidos da conversão construídos no programa O Santo Culto em seu Lar” (Oliveira, 1998, p. 108) e relaciona a atribuição de sentidos, conforme a predicação carnal ou verdadeiro.

Outro estudo é o de Silva (1998), que é o primeiro, na semântica do acontecimento, a estabelecer a relação entre designação e argumentação. A autora pesquisou as designações de “concubina”, “mulher” e “companheira” e sua relação com a sequência “A como se B”, e isto a partir do discurso jurídico.

A autora procura mostrar as relações entre a designação e o “como se” no texto jurídico para analisar o sentido como consequência da designação na situação. Trata-se do caso de uma mulher que viveu com um homem por 20 anos, sem se casar, e que, com a morte dele, pleiteia juridicamente a herança, de onde se impõe o embate entre a mulher ser considerada concubina ou mulher, companheira.

Partindo da análise dos recortes e da interpretação da lei com paráfrases do Recurso Extraordinário nº 83.930, a autora mostra que “são os efeitos de sentido de cruzamentos de

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discursos que interessam na categorização de concubina e mulher e mais adiante na relação de companheira e mulher. A designação desses objetos de estudo não é dada previamente". (Silva, 1998, p. 67). A autora constata que a designação é constituída na exterioridade conforme a posição-sujeito que enuncia:

Assim, enquanto na posição de sujeito-autor a enunciação do advogado de defesa na relação com a exterioridade é conservadora, o texto funciona no sentido de prevalecer o discurso jurídico conservador que designa mera concubina e que coincide com o ato ilocucional das recorrentes; a posição do relator, do juiz da primeira instância e do procurador são os pontos de ancoragem em que o leque abre- se para designar autêntica companheira. É a exterioridade que constitui ora a designação de mera concubina e ora a designação de autêntica companheira e a direção argumentativa não está marcada na forma. A designação no movimento argumentativo dá-se nesta exterioridade interdiscursiva (SILVA, 1998, p. 93-94).

Para a autora, há, então, um jogo argumentativo em que as designações “concubina” e “companheira” funcionam de forma distinta e que há um movimento de sentido de forma que quando o sentido identifica concubina com companheira, a decisão do juiz caminha para ser favorável, e quando mais se designa a mera concubina, a decisão é menos favorável. Desta forma, “A questão está na relação ser companheira/ser concubina/ser mulher” (Silva, 1998, p. 95). E assim, na relação “como se” “B determina A como mulher” (Silva, 1998, p. 95).

Citamos o trabalho de Silva (1998) porque ele relaciona a designação com a posição sujeito e ao constatar o jogo enunciativo e mudança de sentido conforme uma designação ou outra, nos diz de um funcionamento da designação em relação à argumentação, bem como das relações de sentido e dos efeitos destas relações.

Vemos que o estudo de Silva (1998) mostra a designação em relação com a argumentação da seguinte forma: há o confronto de sentidos no jogo de constituição de designações no texto, os sentidos são constituídos não na forma, mas na materialidade linguística e o movimento de sentidos na argumentação, advindos das posições sujeito e a relação deste movimento com as diferentes direções argumentativas, podem levar à conclusão de um sentido ou outro, de forma a poder preterir uma designação e instaurar outra com consequências para a diretividade do texto e a argumentação.

Guimarães (2005c) chega a conclusões semelhantes sobre a designação, mas a associando aos lugares enunciativos:

O processo enunciativo da designação significa, então, na medida em que se dá como um confronto de lugares enunciativos pela própria temporalidade do acontecimento. Este confronto recorta e assim constitui um campo de “objetos”. Se

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se mudam os lugares enunciativos em confronto recorta-se um outro memorável, um outro campo de “objetos” relativos a um dizer (GUIMARÃES, 2005c, p. 40).

E assim, Guimarães (2005c) fala da necessidade de se compreender a designação no espaço de enunciação e na cena enunciativa.

Machado (2016), ao abordar a designação, mostra como a palavra escravidão é designada e se atrela à direção argumentativa do texto. Para isto parte de um artigo do jornal Folha da Noite de 12 de maio de 1923. Machado (2016) analisa o processo de reescrituração e

afirma que “à medida que a palavra escravidão vai sendo reescrita por outras palavras no texto, ela vai ganhando sentidos particulares nessa enunciação” (Machado, 2016, p. 823). E constata que paralelo ao processo de reescrituração desenvolve-se o funcionamento da argumentatividade. Assim, o sintagma “libertação dos escravos ... pretos”, para Machado (2016) traz o memorável da escravidão dos negros que está em relação de antonímia com liberdade e, nas relações de determinação identificadas no texto, a palavra escravatura branca é sinônimo de República. E isto se tece, no texto, com as diferentes figuras da enunciação na cena enunciativa, em que há um direcionamento para a conclusão da designação “escravidão dos brancos”:

Ou seja, o Locutor 1 assume E2 e E3: não nega que no dia 15 de novembro tenha se Proclamando a República, o que acontece é que o texto é direcionado para que se conclua que a República é o edifício da escravidão nacional, é a escravidão branca. Assim, a direção argumentativa é construída também pela reescrituração a qual vai significando a República como escravidão dos brancos, que acontece a partir do lugar do locutor jornalista, opositor ou crítico do regime republicano. Com isso, há o direcionamento para a conclusão, formulada pelo enunciado “Fica definitivamente instalada a escravatura branca” (MACHADO, 2016, p. 827).

A análise que Machado (2016) faz da palavra escravidão busca mostrar como a constituição de seu sentido está ligada à diretividade do dizer no texto. Baseando-se nas reescrituras desta palavra, Machado (2016) conclui que:

essa relação semântica é realizada pela reescritura "edifício da escravidão nacional" que expande o sentido de escravidão e é articulada à República que a reescreve. Essa relação é especificada por um conjunto de características as quais aproximam semanticamente palavras que se relacionam ao que significam escravidão e República. (MACHADO, 2016, p. 824).

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A forma como a escravidão é designada no texto é vista também, a partir da divisão do Locutor na cena enunciativa, assim, Machado (2016) identifica que a escravidão, designa no texto, que escravatura branca é sinônima de República "observamos que a direção argumentativa se dá para a conclusão de que ‘Instalou-se a escravatura branca e que esta é a República’" (Machado, 2016, p.827). Desta forma, a República é designada como a escravidão dos brancos. Para Machado (2016) “O que a palavra designa define a argumentatividade, isto é, o direcionamento do texto para uma certa conclusão” (Machado, 2016, p. 828).

A seguir, falaremos sobre alguns elementos da argumentação na retórica, na linguística e na semântica do acontecimento.