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As determinações do sujeito Antônio como escravo, como homem livre

Capítulo V – Movimentos argumentativos em dizeres sobre a escravidão

5.3. Análise de textos do jornal O Abolicionista

5.3.8. As determinações do sujeito Antônio como escravo, como homem livre

Objetivamos mostrar como as determinações do escravo no espaço de enunciação da vigência legal da escravidão, no Brasil podem trazer a tona seus embates, se considerarmos a deriva do sentido e darmos lugar a outras possibilidades de interpretar as diretividades argumentativas. No recorte 35, que é o texto integral, vejamos como isto ocorre, por meio da análise da integração do enunciado “escravo fugido” ao texto.

30Santos (2008) considera que no sistema da escravidão havia em um extremo o grupo dos brancos, em outro o

dos negros e a alforria cria o grupo dos libertos como intermediário, em relação à liberdade. Havia os “libertos

sob condição, mais próximos, portanto da não liberdade dos escravos, os quase-escravos; ou como libertos sem condição, mais próximos da liberdade branca, os quase-livres, portanto” (Santos, 2008, p. 52).

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Recorte 35

ANÚNCIOS DE ESCRAVOS

Apareceu há dias, no Jornal do Comércio, o seguinte anúncio entre outros, característico da nossa moralidade social:

ESCRAVO FUGIDO

Em fevereiro de 1880, fugiu da casa do Sr. Santos Cortiço, nesta corte, onde se achava para ser vendido, o pardo Antônio, de 30 anos mais ou menos de idade, matriculado na capital da província da Paraíba em 19 de Setembro de 1873, sob n. 3024 da matrícula e 583 da relação. É ele cheio de corpo, tipo cearense, altura mais que regular, rosto redondo, dentes bons, quase imberbe, cabelos pretos e anelados, tem sinal de ferro no pescoço e sobre o tornozelo de um dos pés, e de sevícias nas costas; fala baixo e tem a voz um pouco rouca, usa andar com lenço ao pescoço, com o fim de encobrir o sinal do ferro: quem o apreender e comunicar nesta corte a Antônio Gomes de Souza, na rua de S. Bento n. 34, ou a José Benedito da Cunha, na cidade de Campos, receberá 200$ e do último 400$. Consta que este escravo se acha refugiado na Parahyba do Sul, onde vive como livre.

Até quando permitirá a polícia semelhantes caçadas organizadas por capitães do mato, delatores, espiões! Abutres todos que se alimentam de sangue escravo? Até quando veremos pôr-se jornais a prêmio a cabeça dos escravos fugidos?

(O Abolicionista, 28 de setembro de 1881, p. 6).

Neste texto, temos o locutor jornalista que comenta sobre o anúncio que está transcrevendo e que foi publicado originalmente no Jornal do Commercio, diz ironicamente que se trata de “algo característico da nossa moralidade social”. O anúncio traz um locutor redator de anúncios, nele aparece o enunciado “escravo fugido”, que é constituído no texto.

Na cena enunciativa, na voz do locutor jornalista redator de anúncios, a figura da enunciação: o escravo fugido, é chamado de Antônio. Ele é minuciosamente descrito, determinado como uma figura do espaço de enunciação da vigência legal da escravidão, no Brasil, assim, as designações que o reescrevem atestam um modo de divisão neste espaço, vejamos:

designação Forma de divisão do espaço de enunciação

pardo A cor da pele

cheio de corpo Força de trabalho

tipo cearense A região de que provém

altura mais que regular A altura pode relacionar-se à força de trabalho.

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dentes bons Relaciona-se à saúde e ao valor do

escravo

quase imberbe Relaciona-se à idade e ao valor do escravo

cabelos pretos anelados Juntamente com as outras características é

um dado que torna possível identificá-lo

Se achava para ser vendido É uma mercadoria

Matriculado na capital da província da Paraíba

É uma propriedade conforme a lei Tem sinal de ferro no pescoço e sobre o

tornozelo e sevícias nos pés

É passível de ser castigado

Outras reescrituras do escravo Antônio ainda contribuem para compor uma imagem que pode viabilizar sua identificação, mas também funcionam como elementos que, neste espaço, perturbam a normatividade escravocrata, porque trazem características que não devem ser próprias aos escravos: ele “usa andar com lenço ao pescoço, com o fim de encobrir o sinal do ferro”, ao escravo é negada a possibilidade de cuidar de sua estética, “refugiado” está fora de seu lugar, no caso, fora do lugar que o espaço de enunciação reserva a ele, tanto geográfico, a casa de seu senhor, quanto na questão sócio-histórica, “vive como livre”, está no lugar de livre.

A descrição minuciosa, no anúncio, tem a finalidade de mobilizar pessoas para capturá-lo novamente, porque neste espaço de enunciação, o escravo pode ser capturado e quem sugere isto pode se identificar em um jornal. Neste anúncio, os locutores proprietários do escravo se identificam e dão seu endereço: “comunicar nesta corte a Antonio Gomes de Souza, na rua de S. Bento n. 34 ou a José Benedicto da Cunha...”. O anúncio é possível e naturalizado na deontologia do espaço de enunciação da vigência legal da escravidão, no Brasil.

Podemos considerar a integração dos enunciados no texto, a cena enunciativa e a deriva dos sentidos e pensarmos em pelo menos dois efeitos de sentidos diferentes. Se olharmos a integração do título do anúncio “escravo fugido” com as determinações do espaço de enunciação da vigência legal da escravidão, no Brasil, vemos que o título direciona para a captura do escravo, da propriedade, que com a fuga, comete um crime e está lesando seu senhor; direciona para a normatividade escravocrata deste espaço, a continuidade da

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escravidão. Desta forma, o anúncio no Jornal do Comércio reproduzido nO Abolicionista direcionaria o alocutário, o leitor do jornal, para a necessidade de captura do escravo.

Embora outro efeito de sentido possível esteja silenciado tanto no Abolicionista como no Jornal do Comércio, podemos tê-lo como o dizer do escravo, por meio da fuga. Assim, “escravo fugido” é o escravo que se desidentifica de suas determinações nesse espaço de enunciação e, com a fuga, é constituído como livre. É uma leitura possível para este texto, o que informaria, ou lembraria o senhor de escravos que existe a possibilidade de fuga do escravo. O enunciado escravo fugido poderia ser visto como outra diretividade, a liberdade do escravo, a necessidade do alocutário considerar a possibilidade da abolição. Pois se a fuga do escravo representa sua afirmação de pertencimento à liberdade, diz a possibilidade de instaurar nesse espaço de enunciação outras configurações.

A seguir analisamos um texto do jornal Correio Paulistano, nele, a fuga de escravos é apresentada como um dos fatores que contribuem para mudanças no sentido de escravidão. Neste texto analisamos também as relações entre designações e argumentação.