• Nenhum resultado encontrado

Capítulo V – Movimentos argumentativos em dizeres sobre a escravidão

5.4. Texto do jornal Correio Paulistano

5.5.2. As marcas de moda e o trabalho escravo

Nesta análise, nosso objetivo é mostrar como o memorável da escravidão é ressignificado no presente, e, desta forma, constitui os sentidos de escravidão na atualidade, para isto trazemos um texto que mostra a escravidão urbana na atualidade, ligada a marcas de roupa. O texto “As marcas da moda flagradas com trabalho escravo” 36 foi publicado em

12/07/2012, portanto é da atualidade, que não está somente na questão da cronologia temporal, mas no funcionamento das diferentes temporalidades neste acontecimento, caracteriza o trabalho escravo urbano atual ligado a marcas de roupas famosas, isto nos é relatado por um locutor jornalista.

O texto foi publicado na revista, on-line, Repórter Brasil, que está no site

reporterbrasil.com.br, uma revista da Organização Não Governamental de mesmo nome e

que se dedica ao jornalismo e à pesquisa a respeito de Direitos Humanos no Brasil e trabalho escravo. Tem o formato de breves descrições da marca de roupa condenada, das infrações cometidas e das pessoas envolvidas, trata-se de relatos, a partir de ações de fiscalização da justiça, em que aparece a relação das maiores marcas de moda brasileiras e que exploram o trabalho escravo. Selecionamos recortes, que, juntamente com o texto analisado no item anterior, trazem a atualidade da escravidão, por meio das reescrituras desta palavra, vejamos o recorte 55:

A Repórter Brasil reuniu as principais denúncias de escravidão dentro da indústria da moda no país.

No recorte 55, vemos a palavra escravidão que, dado seu memorável, tem grande força argumentativa, e por meio dele é sugerida a volta da escravidão, mas, na atualidade, e, por isso, com um imbricamento deste memorável e do presente, o que sugere outra significação. Esta volta é atravessada pela atualidade, pelo presente, o que desencadeia uma

36 Disponível em: http://reporterbrasil.org.br/2012/07/especial-flagrantes-de-trabalho-escravo-na-industria-

144

futuridade diversa. Desta forma, no recorte abaixo, vemos “trabalho escravo”, enunciado no título do texto, reescrito como “trabalho escravo contemporâneo”.

Recorte 56

Algumas das maiores marcas de roupa no Brasil já foram flagradas ao explorar trabalho escravo contemporâneo.

E no recorte (57) seguinte, há reescritura, por enumeração, do que seria o “trabalho escravo contemporâneo” relacionado a marcas de roupas.

Recorte 57:

A equipe registrou contratações ilegais, trabalho infantil, condições degradantes, jornadas de até 16h diárias, cobrança e desconto irregular de dívidas dos salários e proibição de deixar o local de trabalho.

Apresentamos o DSD desta reescritura: DSD 29

Trabalho escravo contemporâneo ├ contratações ilegais ├ trabalho infantil ├ condições degradantes ├ jornada de até 16 horas

├ cobrança irregular de dívidas dos salários ├ proibição de deixar o local de trabalho

Neste DSD (29), vemos determinações de escravidão como trabalho infantil e cobrança irregular de dívidas dos salários, além das outras.

No recorte a seguir (58) vemos que a escravidão enunciada no início do texto é reescrita por “escravidão contemporânea” e diferente do que nos traz o memorável de

145

escravidão do negro, a escravidão contemporânea, neste caso, está relacionada a imigrantes bolivianos, que provavelmente não são negros, não se especifica uma raça.

Recorte 58

A Renner foi responsabilizada por autoridades trabalhistas pela exploração de 37 costureiros bolivianos em regime de escravidão contemporânea.

No recorte 59, caracteriza-se as condições em que se dá o trabalho escravo, aparece a designação, “servidão por dívida” para se referir a escravidão:

Recorte 59

Os trabalhadores viviam sob condições degradantes em alojamentos, cumpriam jornadas exaustivas e parte deles estava submetida à servidão por dívida.

A designação “servidão por dívida” remonta a um memorável bíblico da escravidão. No recorte a seguir (60), temos a palavra “libertou” o que mostra, como já analisamos no item 5.4.1 que há, na atualidade, a existência de lei, fiscalização e punição ao crime de escravização.

Recorte 60

Em maio de 2014, outra ação libertou seis pessoas de oficina que também produzia para a marca. (M. Officer).

O recorte (61) abaixo mostra que, embora, na atualidade, haja leis que asseveram a

escravidão como crime, sua determinação como crime se expõe aos embates políticos no

espaço de enunciação, dessa forma ela pode ser considerada crime ou não.

Recorte 61

A Defensoria Pública da União em São Paulo ajuizou ação civil pública contra a empresa de vestuário Collins, envolvida em flagrante de trabalho análogo à escravidão em agosto de 2010. Trata-se da primeira ação coletiva apresentada pelo

146

órgão ao Judiciário trabalhista. “Por falta de defensores, não há como atuarmos também na Justiça do Trabalho. Contudo, quando há uma relação com questões de direitos humanos, como é o caso do tráfico internacional e do trabalho escravo, nós atuamos”, observa Marcus Vinícius Rodrigues Lima, do Oficio de Direitos Humanos e Tutela Coletiva da DPU/SP, que moveu a ação.

Na voz do locutor relator, tem-se a descrição de mais um flagrante de trabalho análogo ao de escravo, trata-se de ação da defensoria pública. Valendo-se do discurso direto, o locutor defensor associa a relação entre tráfico internacional e trabalho escravo. E esta relação tem maior força argumentativa, o que garante a ação da defensoria pública, já que se fosse somente um caso de escravidão, a defensoria não poderia disponibilizar um defensor, deixando isto a cargo da justiça do trabalho.

No recorte a seguir, vemos ainda o memorável do tráfico e venda de escravos funcionando na atualidade:

Recorte 62

Em fevereiro de 2014, o dono de uma oficina de costura localizada em Cabreúva (SP0 tentou vender dois trabalhadores imigrantes como escravos no bairro do Brás, na região central de São Paulo.

Há o dono da oficina que tentou “vender dois trabalhadores”, aparece este enunciado relacionado a escravo e imigrante.

Os recortes nos mostram a caracterização da escravidão na atualidade, a constatação de sua existência. Contudo a escravidão na atualidade é reescrita como “escravidão contemporânea” e é caracterizada como crime, fazem-se flagras, as pessoas são resgatadas, libertadas.

Temos o acontecimento e as reescrituras de escravidão no texto, ao mesmo tempo, e isto nos leva a seu retorno sob a forma da memória e a faz significar na atualidade. Assim, a palavra escravidão tem grande força argumentativa, pelo seu memorável e é substituída por reescrituras que a especificam como “escravidão contemporânea”, trabalho “escravo contemporâneo”.

Assim, há ainda a reescrita de escravidão como prática criminosa, condições análogas à escravidão, servidão por dívida, tráfico de pessoas e elas trazem a atualidade da escravidão.

147

Assim, o conjunto de reescrituras da escravidão nos dá sua atualidade e acenam para uma memória da escravidão que vigorou no Brasil por mais de 300 anos, com o retorno inclusive, do enunciado “tráfico de pessoas”. A memória de sentidos nos dá este retorno, mas na atualidade, não se trata do tráfico maciço de africanos para serem escravizados na América. Os traficados, agora, vêm em número reduzido, são haitianos, bolivianos, peruanos, são homens e mulheres, trabalham em oficinas de costura, são empregados terceirizados. A memória ainda nos dá o retorno de práticas da escravidão, que na atualidade não ocorrem de forma massiva, veja-se o caso do “dono da oficina de roupas que tentou vender dois trabalhadores”.

A reescritura de escravo por “trabalhadores imigrantes” (recorte 8), é indício da atualidade, é argumentativo, característico do espaço de enunciação da escravidão na atualidade. Assim, não se trata do dono de escravo, a normatividade e a deontologia atuais não permite esta fala, não se trata também de escravos a serem vendidos, como ocorria quando a escravidão era oficial no Brasil, trata-se agora de “trabalhadores imigrantes”.

Há ainda o retorno da memória da escravidão bíblica com a designação “servidão por dívida”, mas também com sentido diferente do bíblico, já que na atualidade este tipo de escravidão é reescrita como “prática criminosa”.

Podemos, então, perguntar o que este texto tem a ver com argumentatividade e a argumentação? Se argumentatividade e argumentação são interdependentes, e a argumentação é um dizer que produz efeitos, o texto está repleto de relações de argumentatividade: a própria colocação da palavra escravidão e sua reescritura mostram a construção da argumentação na argumentatividade, nas diretividades argumentativas. Como vimos, o uso da palavra

escravidão tem grande força argumentativa devido a seu memorável, contudo a atualidade da escravidão aparece em suas reescrituras, o texto argumenta no sentido de denunciar o

presente e alertar para uma futuridade de iminência de expansão da “escravidão contemporânea”.

Há, portanto, argumentação, que pode, na deriva, encontrar defensores da anti escravidão ou não. O texto representa uma forma de argumentar, de colocar em evidência e produzir efeitos como o de as pessoas saberem que há trabalho escravo, se organizarem para combatê-lo e apelar moralmente contra quem foi responsabilizado por trabalho escravo.