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CAPÍTULO I – DESAFIOS CONCEITUAIS

C) A desigualdade social

É certo que as desigualdades sociais ocorrem em escala mundial, mas se refletem diferentemente em países periféricos de capitalismo tardio. Historicamente a produção e reprodução da pobreza e da desigualdade social no Brasil estão fortemente presentes em nossa sociedade, assim como na América Latina como um todo. A explicação da persistente iniqüidade social brasileira decorrente do “pecado original” – onde a colonização portuguesa explicaria tudo –

19 O tema da desigualdade sempre esteve situado no centro das preocupações das Ciências

Sociais. Entre os “pais fundadores” das Ciências Sociais essa centralidade é indiscutível. Assim, para Karl Marx a desigualdade entre classes sociais constitui a chave tanto para entender o processo histórico social, como para superar o problema moral da exploração do homem pelo homem. Émile Durkheim viu a desigualdade moderna substancialmente como diferença resultante da especialização. Max Weber, por sua vez, confere à questão da desigualdade um tratamento analítico; para este último a idéia de que as fontes de desigualdade são diferenciadas e não necessariamente convergentes, tornou-se premissa teórica e princípio estratégico para se alterar padrões de desigualdade através de políticas específicas.

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não se justifica de modo pleno na contemporaneidade, uma vez que o Brasil apresentou em diversos momentos da sua história, sobretudo durante o século XX, um intenso desenvolvimento econômico. Nos períodos de crescimento econômico, o “bolo” não só não foi dividido como também o país presenciou o aumento da distância entre o ápice e a base da pirâmide social.

Assim, por que o Brasil que não é considerado uma país pobre, possui uma desigualdade social tão profunda? Temos que reconhecer que as precárias condições de vida de pelo menos um terço da população brasileira – estando grande parte destes nas periferias das grandes cidades e tantos outros mais nas regiões rurais do Norte, Nordeste e Centro-Oeste – não decorrem de uma escassez absoluta de recursos, mas sim da distribuição desigual desses mesmos recursos, sejam eles materiais ou simbólicos.

Diversos estudiosos brasileiros têm como tema central de suas pesquisas a desigualdade social, tais como Elisa Reis (UFRJ), Jessé Souza (UFJF) e Celi Scalon (UFRJ), dentre outros, e que desenvolvem junto aos núcleos de estudos e pesquisas de suas respectivas instituições, estudos que abordam de diferentes formas a desigualdade social no Brasil.

Parte dos pesquisadores que estuda a desigualdade social brasileira atribui a persistente desigualdade brasileira a fatores que remontam ao Brasil colônia, pré-1930 – a máquina midiática, em especial a televisiva, produz e reproduz a idéia da desigualdade creditando ao “pecado original” como fator primordial da desigualdade e assim, por extensão, o senso comum incorpora essa idéia já formatada –, ao afirmar que são três os “pilares coloniais” que apóiam a

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desigualdade: a influência ibérica, os padrões de títulos de posse de latifúndios e a escravidão. É evidente que esses fatos contribuíram intensamente para que a desigualdade brasileira permanecesse por séculos em patamares inaceitáveis. O surpreendente é que em pleno século XXI questões cruciais que poderiam sinalizar um caminho para minimizar a desigualdade social, principalmente no campo, não estão efetivamente na agenda política, como, por exemplo, a questão da posse da terra, a criminalização da prática do trabalho análogo à escravidão (que ainda se faz presente em nossa sociedade) e uma distribuição mais equitativa dos escassos recursos públicos para o fomento da agropecuária, especialmente os mini e pequenos produtores.

Ao contrário de ser personalista, a desigualdade social brasileira retira sua eficácia da “impessoalidade” típica dos valores e instituições modernas, como por exemplo, o Estado e o mercado, o que faz a desigualdade social tão opaca e de tão difícil percepção na vida cotidiana.

A máscara ideológica contra a articulação política dos conflitos de classe se faz a partir de um “fetichismo da economia”, como se o crescimento econômico

per se resolvesse problemas como desigualdade e marginalização, posto que o

mercado capitalista com seu aparato técnico e material e o Estado racional centralizado com seu monopólio da violência e poder disciplinador pudessem resolver nossas mazelas sociais. Estado e mercado oferecem estímulos que lidam com as possibilidades de sobrevivência e de acesso a serviços e bens escassos. O mercado não necessita “convencer” ninguém como os profetas e religiosos do passado. O mercado “não fala”, mas impõe a sua lógica totalizante e

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conforma as nossas inclinações de forma mais eficiente justamente por ser opaca, impessoal e não perceptível à consciência cotidiana. O Estado, ao contrário do mercado que precisa constantemente se legitimar, estabelece uma forma de estrutura da consciência subjetiva, baseada na disciplina e no autocontrole individual.20

O tema sobre desigualdade social no Brasil, assim como a questão da pobreza, tem sido objeto de poucos estudos no campo das Ciências Sociais brasileiras e estes estudos tendem a privilegiar a desigualdade social sob uma perspectiva fragmentada, seja do conhecimento ou da percepção da realidade, ao tratarem o tema da desigualdade por intermédio de variáveis relativas a características adquiridas da população, tais como renda, ocupação e escolaridade, entre outras, e também a características atribuídas como gênero, idade, cor/raça etc. Pretendemos transitar para além do universo do não atendimento às necessidades básicas e vitais – como educação, saúde, alimentação, moradia, segurança, cultura e emprego – para o espaço da justiça social.

Essas análises objetivas e fragmentadas se aproximam do que Charles Tilly (sociólogo norte-americano) chama de desigualdade categórica. De maneira geral, Tilly denomina como desigualdade categórica aquelas formas de benefício desigual em que conjuntos inteiros de pessoas, de um lado e de outro da fronteira, não recebem o mesmo tratamento. Tilly afirma ainda que as categorias

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são cruciais, pois moldam desigualdades e identidades, e sempre estabelecem fronteiras entre os que estão dentro e os que estão fora. No entender de Tilly a desigualdade é uma relação entre pessoas ou conjuntos de pessoas na qual a interação gera mais vantagens para um dos lados. A desigualdade categórica duradoura, denominação utilizada por Tilly, refere-se a diferenças nas vantagens organizadas por gênero, raça, nacionalidade, etnia, religião, comunidade, renda e outros sistemas classificatórios similares.21

Aqueles indivíduos que se encontram na linha da pobreza, ou abaixo dela, em trabalho precarizado ou escravo, assim como o negro, a mulher, a criança, o idoso, o desempregado, o nordestino etc., são percebidos pela sociedade, em geral, como se fossem alguém com a mesma situação do indivíduo da classe média. No senso comum a condição do miserável e sua miséria são consideradas “castigo divino”, e porque não dizer na visão liberal, é casual e imprevisível (como as condições climáticas, por exemplo!), um acaso do destino, sendo a sua situação de absoluta privação facilmente reversível, bastando apenas uma ajuda passageira e focalizada do Estado para que eles possam encontrar seus próprios caminhos.

A hipótese aqui apresentada é que há um aparente desconhecimento de que a miséria dos “desclassificados” é produzida objetivamente, não apenas sob a forma de miséria econômica, mas, sobretudo sob a forma de miséria emocional, social, cultural e política. A realidade social é perpassada por relações de

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dominação e poder, tendo como intuito o acesso seletivo e arbitrário de classes inteiras de indivíduos, em detrimento de outras, aos bens e recursos escassos em disputa na sociedade. Escolhemos observar este fenômeno através do discurso da bancada ruralista no Congresso Nacional na discussão de projetos de seu interesse, especificamente a discussão em plenário da MPV 114/03.

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