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A didática bachiana na prática pedagógica de Chopin

2. Chopin e Bach

2.3 A didática bachiana na prática pedagógica de Chopin

Ao incluir este capítulo no âmbito de uma dissertação em performance, faço-o consciente da pedagogia ser encarada por muitos como um ramo diferente do da interpretação. No entanto, professo a seguinte ideia ventilada por G. Kaemper, que justifica a sua inclusão: “Os teóricos modernos consideram, portanto, a arte de estudar como parte integrante da técnica.” (Kaemper 1968: 143) 59

Ou seja, a forma como se estudam as peças influencia o resultado final, o estudo é indissociável da prática.

Deste modo, o facto de Chopin utilizar Bach para preparar os seus concertos e para adestrar os seus alunos é relevante para compreender a sua técnica e, no fundo, a sua linguagem pianística.

É interessante observar como os relatos que nos descrevem a forma como ensinava e como tocava (com os braços junto ao corpo e utilizando essencialmente os dedos, portanto, uma técnica digital), contradizem a técnica dos gestos utilizada pela maioria dos intérpretes da sua obra desde então. Talvez aqui se encontre o contributo de Liszt para a concepção e abordagem atuais da obra de Chopin. Pese embora, o facto de muitas das suas

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Forthright instruction, wherewith lovers of the clavier, especially those desirous of learning, are shown in a clear way not only 1> to learn to play two voices cleanly, but also after further progress 2> to deal correctly and well with three obligato parts,… (Bach in Kirkpatrick, 1942)

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obras necessitarem, pelo menos nos pianos modernos, de uma abordagem com recurso ao gesto mais do que à técnica digital.

Os seguintes comentários fornecem-nos, através da descrição do programa que marcava aos seus estudantes, uma ideia da relevância do papel de Bach na sua prática pedagógica. No caso da sua aluna Camille Dubois (1830-1907), nascida O’Meara, para além de Clementi, em particular o primeiro exercício dos Préludes et Exercices (fig.2.2), a

obra de Bach assume um papel de destaque na prática pedagógica de Chopin:

Fig. 2.2 - M. Clementi: Estudo no. 1, comps. 1 e 2

A descrição do programa de estudo de outra aluna, Madame Dubois, confirma estes dados:

Madame Dubois diz que Chopin a fez começar pelo segundo livro de Préludes et Exercices de Clementi, e que ela também estudou com ele o Gradus ad Parnassum do mesmo compositor e os quarenta e oito Prelúdios e Fugas de Bach. Da alta opinião que ele tinha das qualidades pedagógicas das composições de Bach podemos formar uma ideia pela recomendação que lhe deu no seu último encontro (1848) de ‘toujours travailler Bach – ce sera votre meilleur moyen de progresser’ [n.t. - praticar Bach constantemente – essa será a sua melhor forma de progredir] (Eigeldinger et al 2010: 60-61) 60

Também Mikuli confirma a importância que Chopin dava ao estudo das obras para tecla de Bach: “Ele então prescreveu uma selecção de estudos de Cramer, do Gradus ad Parnassum de Clementi, do Stylstudien zur höheren Vollendung de Moscheles (...); e Suítes de J. S. Bach e Fugas individuais do Das Wohltemperierte Klavier...” (Eigeldinger et al 2010: 60) 61

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Madame Dubois says that Chopin made her begin with the second book of Clementi’s Préludes et Exercises, and that she also studied under him the same composer’s Gradus ad Parnassum and Bach’s forty-eight Preludes and Fugues. Of his high opinion of the teaching qualities of Bach’s compositions we may form an idea from the recommendation to her at their last meeting [1948] to ‘toujours travailler Bach – ce sera votre meilleur moyen de progresser’ (practice Bach constantly – this will be your best means to make progress). (Eigeldinger et al 2010: 60-61)

61He then prescribed a selection from Cramer’s Etudes, Clementi’s Gradus ad Parnassum, Moschele’s Stylstudien zur höheren

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Outro aluno ilustre, Mathias, diz: “Clementi, Bach e Field [eram] sempre os compositores mais [prescritos aos] debutantes.” (Eigeldinger et al 2010: 61) 62 E, por fim, A. Gutmann, um dos estudantes dilectos de Chopin, afirma: “Chopin sustentava que o Gradus ad Parnassum de Clementi, as Fugas para teclado de Bach, e as composições de Hummel eram a chave para a execução pianística e considerava a prática nestes compositores uma preparação adequada para as suas próprias obras.” (Eigeldinger et al 2010: 61) 63

Outra aluna confirma a importância dada por Chopin à prática da música de Bach: “Para Chopin, Emilie von Gretsch tocou principalmente Bach, Beethoven, e as obras do próprio mestre; ele deu prioridade absoluta a Bach.” (Eigeldinger et al 2010: 61) 64

Reforçando o significado que os testemunhos das alunas de Chopin têm, Cortot faz a seguinte afirmação: “Podemos adiantar que certos amadores do sexo feminino fizeram mais pela honra da reputação pedagógica de Chopin que os seus alunos profissionais” (Cortot 1949/2010: 42) 65 É pertinente aqui recordar que muitas alunas de Chopin pertenciam a um nível social elevado e, por isso, estavam inibidas de exercerem uma actividade remunerada, o que não as desfavorece nada como repositórias do seu legado.

Uma prova concludente da importância de Bach no método de ensino de Chopin encontra-se no primeiro volume de Das Wohltemperierte Klavier de Pauline Charazen, anotado por Chopin. Este manuscrito é um testemunho da influência de Bach na prática pedagógica de Chopin, por via da sua utilização como material didáctico. Neste exemplar, embora a maioria das modificações ou anotações coincidam com aquelas presentes na edição da mesma obra de Czerny, algumas são atribuídas só à mão de Chopin e, em conjunto com os sinais de análise das Fugas, demonstram reflexão e um profundo conhecimento acerca das obras e dos processos com que foram compostas.

A referência a Pauline Chazaren como sendo uma das alunas de Chopin é feita por Ganche no seu livro Voyages avec Chopin. Mais recentemente, o seu nome volta a ter relevância, por via da edição do facsimile do primeiro Caderno do Das Wohltemperierte

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Clementi, Bach and Field [were] always the composers most [set for work to] debutants. (Eigeldinger et al 2010: 61)

63Chopin held that Clementi’s Gradus ad Parnassum, Bach’s pianoforte Fugues, and Hummel’s compositions were the key to pianoforte-playing, and he considered a training in these composers a fit preparation for his own works. (Eigeldinger et al 2010: 61) 64

For Chopin, Emilie von Gretsch played mostly Bach, Beethoven, and the Master’s own works; he gave absolute priority to Bach. (Eigeldinger et al 2010: 61)

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On pourrait avancer que certains des amateurs du sexe feminine firent plus d’honneur à la reputation pédagogique de Chopin que ses élèves de métier. (Cortot 1949/2010: 42)

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Klavier de J. S. Bach com anotações manuscritas de Chopin, que lhe pertencia e teria sido usado aquando das suas aulas com este.

Para além dos relatos de que Chopin utilizava a obra de Bach como material didáctico, este exemplar vem confirmá-los e também mostra em que termos o fazia. Para além destes aspectos, vem, ainda, demonstrar o interesse de Chopin pelo contraponto, que se encontra patente no facto de ter analisado algumas das peças que constituem este volume.

Esta aluna (P. Charazen) começou a ter aulas com Chopin possivelmente em 1846, graças a uma recomendação de Liszt. O seguinte texto, que aborda este assunto, é narrado por Edouarde Ganche no capítulo Une élève inconnue:

Pauline Charazen começa então a ter lições com Chopin entre os últimos dias de Abril e o 15 de Junho. Ela voltará a Grenoble a 3 de Setembro, depois de uma ausência de quatro meses e dezoito dias. (...) Ela deu lições a alunos, sendo que uma era filha de Liszt e viria ser Mme Cosima Wagner. Para além das lições de Chopin, ela recebeu aulas de Mlle Mattmann, pianista da duquesa d’Orléans, do violinista Massart para acompanhamento, e de Reber para harmonia. Ela só exprimiu pelo seu mestre apreciações comuns aos outros alunos. Mas ela foi testemunha de uma cena reveladora da violência do temperamento de Chopin, dessa energia fogosa negada por tanta gente e que só Georges Mathias tinha afirmado por ter surpreendido a manifestação. (...) No Verão, Frédéric Chopin tinha ainda o fogo aceso nos seus aposentos. Ele apoiava-se de encontro à chaminé e Pauline Charazen ouviu-o dizer: ‘Je ne me réchaufferai que dans la tombe’ [Eu só me aquecerei no túmulo]. (...) Quando retornou a Grenoble, ela ensinou a sua arte, casou em 1850 com um funcionário, Ernest Martin, morou sucessivamente em Avignon, Belley, Brest, voltou a residir em Grenoble, em 1862, até à sua morte em 1899. (Ganche 1934: 197-198) 66

A edição de Das Wohltemperierte Klavier pertencente a esta aluna de Chopin encontra-se anotada pelo próprio e constitui, até à data, a única prova material do seu íntimo conhecimento desta obra. Se até então só existia, por via de relatos de terceiros ou de cartas do próprio, a referência de que conhecia esta obra, não se tinha forma de saber até

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Pauline Charazen prit donc des leçons avec Chopin entre les derniers jours d’Avril et le 15 juin. Elle regagna Grenoble le 3 septembre, après une absence de quatre mois et dix-huit jours. (…)Elle donna des repetitions aux élèves, dont l’une était fille de Liszt et devait devenir Mme Cosima Wagner. En plus des leçons de Chopin, elle recut l’enseignement de Mlle Mattmann, pianist de la duchesse d’Orléans, du violinist Massart pour l’accompagnement, et de Reber pour l’harmonie. Elle n’a guère exprimé sur son maître que des appreciations communes aux autres élèves. Mais elle fut témoin d’une scène probante de la violence du caractère de Chopin, de cette énergie fougueuse niée par tant de gens et que Georges Mathias (1) seul avait affirmée pour en avoir surpris la manifestation. (…) L’été, Frédéric Chopin avait encore du feu dans son appartement. Il s’appuyait contre la cheminée et Pauline Charazen l’ouït dire: “Je ne me réchaufferai que dans la tombe.” (…) Revenue à Grenoble, elle enseigna son art, se maria en 1850 avec un fonctionnaire, Ernest Martin, habita successivement Avignon, Belley, Brest, résida de nouveau à Grenoble en 1862 et jusqu’à sa mort en 1899. (Ganche 1934: 197-198)

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que ponto esse conhecimento era detalhado. Este exemplar completo do I Caderno de Das Wohltemperierte Klavier, de uma edição, segundo Eigeldinger (comentário in Bach 2010: XIV) 67, feita a partir de chapas de impressão originalmente gravadas em Paris para a edition zuriquoise de 1801, encontra-se anotada até ao final do primeiro caderno por Chopin. O selo do editor Benacci e a morada a ele associada confirmam, novamente segundo Eigeldinger (comentário in Bach 2010: XIV) 68, que este exemplar só pode ter sido adquirido em 1843.

Pauline Charazen iniciou aulas com Chopin em 1846, tendo continuado por quatro meses, segundo Ganche, após o que retornou à sua terra natal, Grenoble. Apesar de só os primeiros sete prelúdios e seis fugas do primeiro caderno estarem corrigidos de forma sistemática, no que respeita à dinâmica, dedilhações, articulação, agógica, andamento, ornamentos e notas, os restantes têm anotações que se reportam à análise. De qualquer modo, o facsimile do Das Wohltemperierte Klavier anotado por Chopin revela, e talvez mais nos Prelúdios e Fugas em que os símbolos de análise aparecem (desde a VIII Fuga até XXIV), que este não só os tocava como compreendia a sua construção e os processos de composição utlizados. Podemos, assim, assumir que os mesmos processos de contraponto utilizados por Chopin nas suas obras, em especial nas obras tardias, foram tomados do estudo do Das Wohltemperierte Klavier.

Os seguintes símbolos foram usados por Chopin para analisar as fugas: uma cruz (X)

para assinalar o início do tema ou uma resposta; o fim de um tema ou resposta é assinalado por um losango com uma cruz ( ) ou um quadrado () ou por uma cruz no interior de

um quadrado (); a inversão de um tema é indicada pelo símbolo (╪); um tema aumentado

é indicado por um traço cruzado por três barras ( ) .