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II Parte Prática interpretativa

4. Interpretação de Chopin e Bach: uma análise comparativa

4.2 Elementos musicais

4.2.6 Elementos da música popular

Segundo Jan Węcowski, no seu artigo “Religious Folklore in Chopin's Music” (Polish Music Journal Vol. 2, Nos. 1-2. 1999. ISSN 1521 – 6039), Chopin teria utilizado diversas melodias populares e religiosas polacas nas suas obras. Esta influência, segundo o autor, é notória em diversos trechos das suas obras. Exemplo desta utilização será a melodia do Scherzo em si menor op. 20 (Fig.4.21), baseada na canção popular polaca “Lulajże Jezuniu” [Sossega pequeno Jesus] (Fig.4.22). Já Arthur Rubinstein (1887-1982) tinha referido esta ideia, alertando para as edições que unem os dois primeiros tempos da melodia. Mas também, segundo o texto de Jan Wekowski, os quatro primeiros compassos do Estudo op. 25 nº 11 são tirados da canção popular “Miala Mlynarka trzy córy” [O moleiro tinha três filhas]; a melodia do soprano no Estudo op.25 nº7, seria inspirada na canção “Jezus malusieńki” [Pequeno Jesus]; e a Marcha fúnebre utiliza material melódico da canção religiosa “Zawitaj Królowa” [Salve Regina].

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Note the following unusual notation in Chopin’s Nocturne in F Sharp minor, Op. 48/2, and several other of his works, where the apparent slur is really a curved arpeggio sign: (…) Arpeggios written out in small notes follow the same rules, at least in theory. Chopin certainly intended r. h. small-note arpeggios to be played on the beat, for he drew the following dotted lines in a pupil’s copy of the Nocturnes:… (Ferguson 2002: 127)

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Fig. 4.21 - F. Chopin: mão direita do Scherzo op. 20, comps. 305-312

Fig. 4.22 - Melodia popular - Lulajże Jezuniu [Sossega pequeno Jesus]

Também as Mazurcas e Polcas têm uma raiz popular, mas Chopin transformou-as em peças de concerto, que, embora mantendo o ritmo ternário, não se destinam a acompanhamento. Devemos, todavia, ter cautela em atribuir a génese da criatividade melódica de Chopin à utilização de elementos folclóricos polacos, pois o seguinte comentário de Liszt lhe atribui, também, a autoria de muitas melodias populares:

Como as famílias polacas que vieram depois para Paris estavam todas ansiosas por travarem conhecimento com ele, ele continuou a misturar-se principalmente com a sua gente. Ele continuou, através deles, não só ao corrente de tudo o que se passava no seu país, mas até numa espécie de correspondência musical com ele. Ele gostava que aqueles que visitavam Paris lhe mostrassem os airs ou novas canções que tivessem trazido, e quando as letras destes airs lhe agradavam, ele frequentemente escrevia uma nova melodia para eles, desta forma popularizando-os rapidamente no seu país, apesar do nome do autor ser frequentemente desconhecido. Tendo-se tornado considerável o número destas melodias, devidas apenas à inspiração do coração, ele pensou amiúde em recolhê-las para publicar. Mas pensou nisso demasiado tarde, e elas permanecem espalhadas e dispersas, como o aroma das flores perfumadas abençoando o deserto e adoçando o desert air em redor de algum viajante errante, que o acaso tenha conduzido através do seu caminho remoto. Durante a nossa estadia na Polónia ouvimos algumas das melodias que lhe são atribuídas, e que são deveras dignas de serem da sua autoria; mas quem se atreveria agora a fazer uma selecção incerta entre as inspirações do seu poeta nacional, e os sonhos do seu povo? (Liszt 1877/2005: 97) 124

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As the Polish families who came afterwards to Paris were all anxious to form acquaintance with him, he continued to mingle principally with his own people. He remained through them not only au courant of all that was passing in his own country, but even in a kind of musical correspondence with it. He liked those who visited Paris to show him the airs or new songs they had brought with them, and when the words of these airs pleased him, he frequently wrote a new melody for them, thus popularizing them rapidly in his country although the name of their author was often unknown. The number of these melodies, due to the inspiration of the heart alone, having become considerable, he often though of collecting them for publication. But he thought of it too late, and they remain scattered and dispersed, like the perfume of the scented flowers blessing the wilderness and sweetening the “desert air” around some wandering traveller, whom chance may have led upon their secluded track. During our stay in Poland we heard some of the melodies which are attributed to him, and which are truly worthy of him; but who would now dare to make an uncertain selection between the inspirations of the national poet, and the dreams of his people? (Liszt 1877/2005: 97)

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Para confirmar a dificuldade que existe em atribuir a autoria de determinada melodia, temos o seguinte relato do seu compatriota, Ferdynand Dworzaczek (1804-1877):

Um dia Chopin estava a improvisar. Eu estava reclinado no sofá; eu estava extasiado, a escutá- lo e a sonhar acordado. De repente, a sua música soou com uma canção que foi directa ao fundo da minha alma…uma canção bem conhecida…uma canção da pátria…amada…do lar familiar…da infância...O meu coração bateu com ansiedade, lágrimas vieram-me aos olhos – eu levantei-me: ‘Fryderyczku!’ - Exclamei, - ‘Eu conheço essa canção desde pequeno…a minha mãe costumava cantá-la…eu tenho-a na alma, e tu acabaste de tocá-la!’ Ele olhou em redor com uma expressão estranha. Os seus olhos brilharam; os seus dedos moviam-se delicadamente sobre as teclas; ‘Nunca escutaste esta melodia antes!’ - declarou. ‘Mas eu tenho- a aqui, aqui, na minha alma!’ - exclamei, pressionando a minha mão de encontro ao peito. ‘Oh!’ – ele levantou-se e abraçou-me – ‘Acabaste de me tornar indescritivelmente feliz, não existem palavras para isso! Tu nunca soubeste esta cantiga….só o seu espírito: o espírito da melodia polaca! E eu estou tão feliz por ter sido capaz de o compreender e revelar.’ (Eigeldinger et al 2010: 284) 125

Estas citações sugerem, pois, reciprocidade no processo de criação. Esta situação não é exclusiva de Chopin. Todos os grandes compositores europeus fizeram uso de elementos populares e étnicos na sua música; estes foram uma fonte onde muitos criadores, tais como J. S. Bach, J. Haydn, W. A. Mozart, L. Beethoven e, depois, F. Schubert foram beber muita da sua riqueza rítmica, melódica, harmónica e tímbrica. A música de dança - que tem as suas raízes na música popular - está na génese de muitas obras de Chopin e de Bach. No caso deste último, podemos encontrar elementos estilizados nas Suítes, Partitas, e mesmo nas Invenções, como o demonstra o ritmo de siciliana da Sinfonia numero treze.

Em Chopin, estes elementos de dança servem, tal como em Bach, para criar uma dinâmica rítmica. As danças são maioritariamente de origem polaca - como as Mazurcas e as Polcas - mas também utiliza danças provenientes do resto da Europa, como a Tarantela e o Bolero. As Suítes e Partitas de Bach e dos seus contemporâneos pretendem reunir

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One day Chopin was improvising. I was lying on the sofa; I was in ecstasy, listening to him and day-dreaming. All of a sudden his music rang out with a song which went to the heart of my soul…a well known song…a song from the homeland…beloved…from the family home…from childhood years…My heart throbbed with yearning, tears sprang to my eyes – I leapt up: ‘Fryderyczku!’ I cried, ‘I know that song from the cradle…my mother used to sing it…I have it in my soul, and you just played it!’ He looked round with a strange expression. His eyes shone; his fingers were moving delicately over the keys; ‘You never heard this tune before!’ he declared. ‘But I have it here, here, in my soul!’ I cried, pressing my hand to my breast. ‘Oh!’ – he rose and embraced me – ‘you have just made me indescribably happy, there are no words for it! You never knew this song…only its spirit: the spirit of the Polish melody! And I am so happy to have been able to gasp and reveal it.’ (Eigeldinger et al 2010: 284)

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danças de diversos pontos da Europa, como a Allemande, Polca, Sarabande, Gigue e Chopin tem o mesmo propósito ilustrativo.

Ao contrário de Liszt, que utiliza motivos folclóricos emprestados nas suas Rapsódias Húngaras ou na Rapsódia Espanhola (neste caso um Fandango português), Chopin, tanto quanto se sabe, só o faz nas danças de origem polaca. Na Tarantela e no Bolero, o título e o ritmo servem mais para uma evocação. A presença de elementos folclóricos é distinguível, também, na procura de sonoridades diferentes, mediante a adição de notas às harmonias tradicionais. O compositor visa imitar, desta forma, sons de instrumentos populares e sons alheios à linguagem musical. A confirmar esta ideia temos o seguinte comentário de Cosima Wagner (1837-1930):

Então ele [n.t. - R. Wagner] encontra um livro dos Prelúdios de Chopin no piano; tendo tocado o quarto (em mi menor) ele comenta com desaprovação que um acorde ambíguo fora entreposto no final, como para chocar. Eu tento desculpar isso dizendo que este esboço é uma tentativa para reproduzir algo como um estranho som natural, mas só muito depois, quando se encontra deitado na cama, ele diz, ‘Um som natural – isso é muito bonito, mas é precisamente estes que devemos tentar reconciliar com as nossas leis harmónicas.” (Wagner 1994: 373) 126

Esta alusão a ‘sons naturais’, encontra paralelo na música folclórica, que, muitas das vezes, imita sons onomatopaicos, numa referência a diversas tarefas do dia-a-dia e à natureza. Este aspecto não encontra eco na obra de Bach sendo, no entanto, comum nos compositores oitocentistas franceses, especificamente no âmbito da música para tecla, como Louis-Claude Daquin (1694-1772) e Jean-Philippe Rameau (1683-1764).