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II Parte Prática interpretativa

4. Interpretação de Chopin e Bach: uma análise comparativa

4.2 Elementos musicais

4.2.2 Tonalidades, escalas e modos

Chopin referiu, nos seus Esquissos de um Método de Piano, mi e si maiores como as melhores tonalidades para o estudante iniciar a abordagem do instrumento. Na sua opinião, estas tonalidades eram as que melhor se adaptavam à forma da mão, em oposição à tonalidade de dó maior. Acerca desta preferência, é interessante ler a seguinte passagem do seu esboço de Método, referida por Eigeldinger: “É inútil começar a aprendizagem de escalas no piano em dó maior, a mais fácil de ler, e a mais difícil para a mão, já que não tem pivô. Inicie com uma que ponha a mão à vontade, com os dedos longos nas teclas pretas, como si maior por exemplo.” (Eigeldinger 2010: 34) 106

Para Chopin, outra tonalidade de eleição era lá bemol maior. Nesta tonalidade tocou a Sonata no. 12 de Beethoven (pelo menos o primeiro andamento), como descrito por Lenz: “ …Chopin acrescentou, em jeito de desculpa: ‘Em poucos dias eu tenho de tocar a

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It is useless to start learning scales on the piano with C major, the easiest to read, and the most difficult for the hand, as it has no pivot. Begin with one that places the hand at ease, with the longer fingers on the black keys, like B major for instance. (Eigeldinger 2010: 34)

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sonata em lá bemol, de Beethoven (op. 26) para umas senhoras russas. (…) Chopin foi chamado para tocar a Sonata de Beethoven – o andamento das variações.” [n. t. – o primeiro andamento] (Lenz 1872/1995: 46-47) 107 Há o relato anónimo, feito por uma senhora escocesa numa carta para James Cuthbert Hadden (1861-1914), datada de 27 de Março de 1903, de Chopin ter tocado os restantes andamentos no decurso de uma aula:

Chopin permitiu-me terminar o belo air, e então tomou o meu lugar e tocou a Sonata toda [Beethoven op.26] Foi como uma revelação. (…) Ele tocou a Marche funèbre de Beethoven com um grande, orquestral, poderoso efeito dramático, no entanto com uma espécie de emoção contida que era indescritível. Por último, ele apressou-se no andamento final com uma precisão sem falta e uma delicadeza extraordinária – nem uma só nota perdida, e com um fraseado maravilhoso e alterações de luz e sombra. Ficámos sem palavras, nunca tendo escutado nada assim. (Hadden 1903: 186) 108

Há que ter em conta que, à época, não era costume tocar integralmente Sonatas, ou outras peças de envergadura. Chopin tocou também o Concerto de Field nesta tonalidade, por diversas vezes. Nas suas obras a tonalidade de lá bemol maior surge mesmo quando a tonalidade principal não é essa. Isso acontece, por exemplo, no início e fim da primeira Balada op. 23 em sol menor e no Bolero (comps. 156 a 167).

Para conferir as preferências tonais de Chopin foi elaborado um Quadro tonal e cronológico, que permite visualizar a quantidade de obras de determinada tonalidade e a sua variação durante a sua carreira de compositor. Esta desenvolveu-se, essencialmente, entre 1817 e 1849. Para a elaboração deste quadro, que foi construído por uma amostragem muito significativa da sua obra, foi feita uma lista que contém a maior parte da obra de Chopin, e na qual estão indicadas, por um asterisco, as peças utilizadas para a construção do Quadro tonal e cronológico da sua obra. Esta lista refere-se às obras utilizadas para construir o Quadro Tonal das obras de Chopin, referido como Quadro II. Ela contém, sempre que possível, as peças com a indicação das datas de composição e com a referência de dois métodos de catalogação: Opus e Brown. Apesar de, originalmente, as obras de Chopin terem sido catalogadas em números de Opus, mais tarde, a par da inclusão de

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…Chopin added, by way of excuse, “In a few days I must play the A flat Sonata of Beethoven (Op. 26) to some Russian ladies. (…) Chopin had been sent to play the Beethoven Sonata – the variation movement. (Lenz 1872/1995: 46-47)

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Chopin allowed me to finish the beautiful air, and then took my place and played the entire sonata [Beethoven op. 26]. It was like a revelation […] He played that Marche funèbre of Beethoven´s with a grand, orchestral, powerfully dramatic effect, yet with a sort of restrained emotion which was indescribable. Lastly he rushed through the final movement with faultless precision and extraordinary delicacy – not a single note lost, and with marvelous phrasing and alternations of light and shade. We stood spellbound, never having heard the like. (Hadden 1903: 186)

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novas obras, foram propostas novas formas de organização: Maurice Brown (1906-1975) propôs, em 1972, um catálogo com organização cronológica no seu livro Chopin: an index of his works in chronological order, que aparece referenciado com Br.; O musicólogo Józef Chominsky (1906-1994), propôs um novo catálogo por título e aparece referenciado como C.; A musicóloga polaca Krystyna Kobylanska (1925-2009) propôs em 1977, na sua obra, publicada em alemão com o título Frédéric Chopin: Thematisch-bibliographisches Werkverzeichnis, um novo catálogo temático da obra de Chopin, que aparece referenciado como KK.

Os Opus 1 a 65 foram publicados durante a vida de Chopin e os Op. 1 a Op. 58 aparecem no catálogo temático preparado para Jane Stirling por F. Chopin e A. Franchomme. Antes de falecer, Chopin pediu que as obras não publicadas fossem destruídas, mas, posteriormente, a irmã e a mãe pediram a J. Fontana que seleccionasse aquelas que achasse merecerem serem publicadas. Fontana seleccionou vinte e três peças, que agrupou em oito Opus (66 a 73). Estas foram publicadas em 1855. As restantes peças forma publicadas posteriormente, por diversas entidades, com a indicação op. post.

O musicólogo Maurice Brown contabiliza, na sua lista de obras de F. Chopin, 165 itens, pelos quais distribui as peças por ordem cronológica de composição e afinidade. Por isso, alguns itens contêm diversas peças pertencentes ao mesmo opus ou selecção de obras, como acontece nos Prelúdios op. 28 e Estudos.

A lista presente no Apêndice I contém, ainda, as datas de composição das obras, tal como são fornecidas no livro de M. Brown, e totaliza 165 obras. Constitui, por isso, uma amostragem bastante significativa da obra de Chopin, bem como das tonalidades e períodos criativos deste. Algumas obras não foram incluídas no Quadro II (Tonal e Cronológico das Obras de Chopin) por diversos motivos, que se explicam de seguida. O Bolero não tem uma tonalidade principal, sendo constituído por diversas secções em tonalidades predominantes (sol – fáM – lám – láM – lábM- láM – sibm – lám), isto, embora M. Brown só refira as tonalidades de lá M e m. Outras obras, como a parte de contrabaixo de um canon de Mendelssohn, não constituem, minimamente, referências para a obra de Chopin, sendo, neste caso, um mero exercício. M. Brown chama-lhe: ”…uma paródia livre e florida escrita nos compassos livres do baixo da partitura de Mendelssohn.” (Brown 1960: 70) 109 e, por esse motivo, não foi incluída. Outras obras não têm uma data

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de composição certa, e, a serem incluídas, poderiam falsear os resultados. Por esse motivo, foram também excluídas. As obras incluídas no Quadro II estão sinalizadas com um asterisco. No entanto, as obras incluídas, pela quantidade e relevância no todo da obra de Chopin, colmatam quaisquer lacunas deixadas pelas obras excluídas. Esta informação é depois utilizada, em conjunto com a tonalidade, para construir o Quadro Tonal e cronológico das obras de Frédèric Chopin, referenciado como Quadro II.

Pela contabilização das tonalidades utilizadas por Chopin, no conjunto da sua obra, podemos confirmar a preferência pela tonalidade de lá bemol maior. As tonalidades de fá e lá menor são aquelas que se seguem, quase na mesma quantidade que as de dó e mi maior e dó sustenido menor. As tonalidades de dó # maior, ré ♭e sol♭menor, ré # maior e menor, não são utilizadas.

Quadro II – Quadro Tonal e Cronológico das obras de Chopin

No que respeita à obra de J. S. Bach, o Quadro Tonal das obras para Cravo e Clavicórdio de J. S. Bach, referenciado como Quadro III, serve de indicador para as preferências tonais do compositor, mas também pode dar pistas para o sistema de afinação utilizado. As tonalidades mais utilizadas, por ordem de preferência, são lá e ré menores, sol maior e menor e mi e dó menor. As tonalidades de ré e sol♭maior e menor não são utilizadas. Algumas tonalidades não são utilizadas, apesar de actualmente os seus tons inarmónicos o serem. A este respeito, o caso mais emblemático é de mi bemol maior e ré sustenido maior. No primeiro Caderno, o VIII Prelúdio BWV 853 aparece em mi bemol

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menor, mas a fuga está escrita originalmente em ré sustenido, embora em muitas edições apareça em mi bemol. No segundo caderno, já só aparece a tonalidade de ré sustenido menor. Outras tonalidades, como lá bemol, só são usadas no Das Wohltemperierte Klavier. Para identificar as obras, é utilizado, para além do nome, a catalogação de W. Schmieder (Bach-Werke-Verzeichnis). São excluídas as Variações Goldberg (BWV 988), por estarem escritas em dois modos diferentes (sol M e m), a Applicatio (BWV 994), em dó maior, do Klavierbüchlein für Wilhelm Friedemann Bach, por se tratar de um exercício e quatro outras peças de autoria duvidosa, ou incompletas (BWV 898, 923, 990 e 991).

Quadro III – Quadro Tonal das obras para Cravo e Clavicórdio de Bach

No que toca à utilização de modos na obra de Chopin, há que referir que esta se encontra associada à utilização de melodias populares religiosas, que têm como base os modos religiosos eslavos, como diz Ferguson: “Durante o século XIX a harmonia modal fez uma reaparição ocasional, geralmente no contexto de algum género de música nacional, como as Mazurkas de Chopin.” (Ferguson 2002: 108) 110

A utilização de modos na obra de Chopin aparece, de facto, bastante associado às Mazurcas, mas está presente, também, noutras formas musicais. Os seguintes exemplos do aparecimento de modos ilustram esse facto. Na Tarantela op. 43 (fig. 4.4) é utilizado o modo dórico, meio-tom abaixo do seu

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During the 19th century modal harmony made an occasional reappearance, generally in the context of some kind of national music, such as the Mazurkas of Chopin. (Ferguson 2002: 108)

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estado original (réré♭); na Mazurca op.41 no. 4 (fig. 4.5) o modo frígio, transposto para dó sustenido (mi  dó #); e na Mazurka op. 24 no. 2 (fig. 4.6), o modo lídio.

Fig. 4.4 - F. Chopin: Tarantela op. 43, lá♭maior, comps. 20-24

Fig. 4.5 - F. Chopin: Mazurka op. 41 no. 4, dó# menor, comps. 1-4

Fig. 4.6 - F. Chopin: Mazurka op. 24 no. 2, em dó maior, comps. 25-28

Os modos religiosos aparecem, também, em dois Nocturnos, mas são utlizados com a finalidade de evocar uma atmosfera religiosa. Ganche refere-se assim a estas obras: “No meio de dois nocturnos em sol menor (op.15, nº 3 e op. 37, nº 1), Chopin introduziu um canto litúrgico, mas a essa música de igreja, de sonoridades pesadas e austeras de órgão, falta originalidade.” (Ganche 1921: 120) 111É de recordar que Chopin era católico praticante, e que, quando jovem, tocou órgão na igreja das Irmãs da Anunciação em Varsóvia, segundo conta a tradição. Dessa forma, deve ter tido contacto com música religiosa que utilizava os modos litúrgicos. Esta vivência pode também estar na origem da sua prática, observada pelo seu contemporâneo Wilhelm von Lenz, de mudar frequentemente de dedo na mesma tecla.

O cromatismo e consequente utilização de escalas cromáticas é uma característica presente na obra de Bach e de Chopin. O cromatismo dos temas aparece amiúde em Chopin, em especial nas Mazurkas. Os Estudos op. 10 no. 2, op. 25 no. 6 e 11 são exemplos claros da utilização de escalas cromáticas. No Estudo op. 25 no. 11, ela aparece associada à utilização de uma polifonia na mesma linha melódica (fig. 4.7). Uma das vozes é uma escala cromática descendente.

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Au milieu de deux nocturnes em sol mineur (op. 15, nº 3 et op. 37 nº 1), Chopin a introduit un chant liturgique, mais cette musique d’église, aux sonorités Lourdes et graves d’orgue manque d’originalité. (Ganche 1921: 120)

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Fig. 4.7 - F. Chopin: Estudo op. 25 no. 11 – voz superior da mão direita

Estas passagens, habitualmente descendentes e, muitas vezes, enquadradas por polifonia contrapontística, como acontece no primeiro (Fig. 4.8) e quarto andamento (Fig. 4.9) da Sonata op. 58, encontram ascendência na obra de Bach.

Fig. 4.8 - F. Chopin: Sonata op. 58, 1º and., comps. 72 e 73

O quarto andamento da Sonata op. 58 está repleto de passagens cromáticas descendentes no baixo.

Fig. 4.9 - F. Chopin: Sonata op. 58, 4º and., comps. 114-119

Um dos exemplos mais claros de cromatismo descendente no baixo, em Bach, é- nos dado na Invenção no. 9, BWV 795:

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As Fugas de Bach estão, também, repletas da utilização de escalas cromáticas, muitas vezes descendentes, mas, por vezes, também ascendentes. Estas escalas aparecem frequentemente no desenvolvimento das peças, associadas a uma progressão harmónica, como está patente nos seguintes extractos tirados das Fugas BWV 904 (fig. 4.11), BWV 948 (fig. 4.12) e da Fuga BWV 853 do I Caderno do Das Wohltemperierte Klavier (Fig. 4.13).

Fig. 4.11 - J. S. Bach: Fuga BWV 904, comps. 47/48

Fig. 4.12 - J. S. Bach: Fuga BWV 948, comps. 10 – 11

Fig. 4.13 - J. S. Bach: Fuga BWV 853, comps. 10 – 12

Outras vezes, o cromatismo é parte constituinte do próprio tema. Os temas da Fuga BWV 857 do I Caderno de Das Wohltemperierte Klavier (fig. 4.14) e da Fuga da Fantasia Cromática BWV 903 (fig. 4.15) são disso exemplo.

Fig. 4.14 - J. S. Bach: Fuga BWV 857 – tema

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O cromatismo, principalmente descendente no baixo, é uma característica comum à obra de ambos os compositores. Por ser um elemento característico na literatura Barroca, a sua presença na obra de Chopin ajuda à caracterização como bachiano.