PARTE I – PLANO TEÓRICO
1.2 A DIFERENÇA ENTRE JUSTIÇA RETRIBUTIVA E JUSTIÇA
Na justiça retributiva o conceito de crime é estritamente jurídico, e é o ato lesivo ao Estado, é a violação da Lei Penal e nela existe o monopólio estatal da justiça criminal. O ritual é solene e público, sendo a ação em regra indisponível, o procedimento é contencioso, contraditório, caracterizado pela formalidade de linguagem e atos. A atuação é centralizada nas autoridades e profissionais do Direito, a vítima e o ofensor têm papel de pouquíssima ou nenhuma importância, são coadjuvantes nesse cenário.
As diferenças entre o modelo de justiça retributiva e justiça restaurativa são grandes. A justiça restaurativa, ao que parece, tem uma boa capacidade de prevenção, além da possibilidade de envolver os indivíduos nos seus atos e em sua solução.
Na justiça retributiva, como já mencionado, se pune a infração da norma, a responsabilidade é do indivíduo, o controle é do sistema penal, os protagonistas são o indivíduo e o Estado, o procedimento é adversarial e a finalidade é provar a ocorrência dos delitos, demonstrar a culpa, aplicar castigos e a ressocialização do indivíduo.
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CARLUCCI, A. K. de. Justicia restaurativa: posible respuesta para el delito cometido por personas menores de edad. Santa Fé: Rubinzal Culzoni, 2004. p. 337-338.
Na justiça restaurativa se busca resolver o conflito entre indivíduos. A responsabilidade é individual e social, os protagonistas são a vítima, o agressor e a sociedade, o procedimento é de diálogo, a finalidade é resolver conflitos, assumir responsabilidades e reparar danos. A justiça restaurativa tem como objetivo a pacificação social. A justiça restaurativa é aplicável a qualquer tipo de conflito – na família, na vizinhança, na escola, no ambiente de trabalho, enfim, nas comunidades em geral, inclusive no sistema de justiça.
A justiça restaurativa traz para o conflito a participação da sociedade, seja pela família, comunidade ou sociedades civis que trabalhem com aquele tipo de conflito, o que faz com haja a integração entre a sociedade e o direito penal e cria uma participação democrática na solução do conflito, que não ocorre em regra.
A justiça restaurativa, por sua vez, é um novo paradigma na resolução dos conflitos penais, que tem por escopo consertar, reparar o futuro e restaurar relacionamentos, especialmente, entre a vítima, o agressor e a comunidade visando, ainda, prevenir a ocorrência de novos delitos.
A justiça restaurativa como vemos tem um espectro mais amplo do que os outros institutos citados, de forma que, podemos citar a mediação como uma das formas de operacionalizar a justiça restaurativa, e por isso tal diferenciação acaba sendo por vezes de difícil visualização e compreensão.
Como é de fácil percepção a justiça restaurativa tem por finalidade uma mudança de ótica, busca introduzir uma nova forma de compreender o delito e, também, de tratar o ofensor, a vítima e a comunidade onde os dois primeiros estão inseridos.
A justiça restaurativa visa à desconstrução do conflito, mas seu objetivo é maior: é a reparação, a restauração, a pacificação social. Urge salientar, que quando se fala em reparação, trata-se de uma reparação em sentido amplo, não apenas de cunho material.
Muito elucidativos são os quadros explicativos apresentados por Renato Sócrates Gomes Pinto55:
Tabela 1 – Valores
JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA
Conceito jurídico-normativo de crime - ato contra a sociedade representada pelo Estado - Unidisciplinariedade
Conceito realístico de crime – Ato que traumatiza a
vítima, causando-lhe danos. –
Multidisciplinariedade Primado do interesse público (Sociedade,
representada pelo Estado, o Centro) – Monopólio estatal da justiça criminal
Primado do interesse das pessoas envolvidas e comunidade – justiça criminal participativa
Culpabilidade Individual voltada para o passado – Estigmatização.
Responsabilidade, pela restauração, em uma dimensão social, compartilhada coletivamente e voltada para o futuro
Uso Dogmático do Direito Penal Positivo Uso crítico e alternativo do direito
Indiferença do Estado quanto às
necessidades do infrator, vítima e
comunidade afetados – desconexão
Comprometimento com a inclusão e justiça social gerando conexões
Comprometimento com a inclusão e justiça social gerando conexões
Dissuasão Persuasão
Tabela 2 – Procedimentos
JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA
Ritual solene e público Comunitário, com as pessoas envolvidas
Indisponibilidade da ação penal Princípio da oportunidade
Contencioso e contraditório Voluntário e colaborativo
Linguagem, normas e procedimentos formais e complexos - garantias.
Procedimento informal com Confidencialidade
Atores principais – autoridades
(representando o Estado) e profissionais do
Atores principais – vítimas, infratores, pessoas da Comunidade, ONGs
direito
Processo decisório a cargo de autoridades (policial, delegado, promotor, juiz e
profissionais do direito -
unidimensionalidade
Processo decisório compartilhado com as pessoas envolvidas (vítima, infrator e comunidade) – Multidimensionalidade justiça
Tabela 3 – Resultados
JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA
Prevenção geral e especial - Foco no infrator para intimidar e punir
Abordagem do crime e suas consequências - Foco nas relações entre as partes, para restaurar
Penalização - Penas privativas de liberdade, restritivas de direitos, multa estigmatização e discriminação
Pedido de desculpas, reparação, restituição, prestação de serviços comunitários reparação do trauma moral e dos prejuízos emocionais
- Restauração e inclusão Tutela penal de bens e interesses, com a
punição do infrator e proteção da sociedade
Resulta responsabilização espontânea por parte do infrator
Penas desarrazoadas e desproporcionais em regime carcerário desumano, cruel, degradante e criminógeno - ou - penas alternativas ineficazes (cestas básicas)
Proporcionalidade e razoabilidade das obrigações assumidas no acordo restaurativo
Vítima e infrator isolados, desamparados e desintegrados. Ressocialização secundária
Reintegração do infrator e da vítima prioritárias
Tabela 4 - Efeitos para a vítima
JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA
Pouquíssima ou nenhuma consideração, ocupando lugar periférico e alienado no processo.
Não tem participação, nem proteção, mal sabe o que se passa.
Ocupa o centro do processo, com um papel e com voz ativa.
Participa e tem controle sobre o que se passa.
Praticamente nenhuma assistência
psicológica, social, econômica ou jurídica do Estado
Recebe assistência, afeto, restituição de perdas materiais e reparação
Frustração e ressentimento com o sistema Há ganhos positivos. Suprem-se as necessidades individuais e coletivas da vítima e comunidade
Tabela 5 - Efeitos para o infrator
JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA
Infrator considerado em sua falta e sua má formação
Infrator visto no seu potencial de responsabilizar-se pelos danos e consequências do delito
Raramente tem participação Participa ativa e diretamente
Comunica-se com o sistema pelo advogado Interage coma vítima e com a Comunidade
É desestimulado e mesmo inibido a dialogar com a vítima
Tem oportunidade de desculpar-se ao sensibilizar- se com o trauma da vítima
É desinformado e alienado sobre os fatos processuais
É informado sobre os fatos do processo restaurativo e contribui para a decisão
Não é efetivamente responsabilizado, mas punido pelo fato
É inteirado das consequências do fato para a vítima e comunidade
Fica intocável Fica acessível e se vê envolvido no processo
As diferenças entre a justiça retributiva e a justiça restaurativa não são de difícil identificação, tendo a justiça restaurativa um viés dialógico, uma justiça que se constrói por meio da comunicação e da participação.
A justiça restaurativa pode ser vista como um modelo que visa dar eficiência e humanidade à justiça penal. Na lição de Zehr (2008) a justiça restaurativa tem um componente religioso e destina-se a trazer valores espirituais e humanitários ao sistema de justiça.
Como vimos à justiça restaurativa não possui um formato fechado, é um conjunto de práticas que variam no tempo e no espaço. Assim da maior importância são os valores que a norteiam, pois são os mesmos que a identificam e lhe dão reconhecimento.
Os principais valores restaurativos são a participação, o respeito, a verdade, a responsabilidade, a voluntariedade, a reparação e a reintegração.