• Nenhum resultado encontrado

A dimensão da expressão de género: «São os maricas da escola»

Capítulo 4. Perspetivas, discursos e experiências de jovens estudantes sobre violência e bullying na escola

4.2.3. A dimensão da expressão de género: «São os maricas da escola»

Como se tem vindo a discutir, perguntar se existe bullying homofóbico não é a melhor alternativa para inquirir sobre a homofobia na escola pois necessita que se reconheça alguém como “homossexual” para se saber se se está perante bullying homofóbico ou não, o que nem sempre é possível. Contudo, isto não significa que o bullying não possa ser e seja acionado contra pessoas específicas. Quem são essas pessoas específicas? Quando perguntava se haviam jovens que sofriam bullying na turma ou na escola é de destacar os comentários que indiciavam uma maior vitimização de muitos/as jovens devidamente identificados e reconhecidos por todos, e sobre os quais recaía o rótulo de “maricas”. Este rótulo de maricas não era atribuído à toa, mas eram aqueles rapazes cujo comportamento de género mais destoava da norma:

“Hugo: - Conhecem alguém da vossa escola que tenha sofrido bullying homofóbico? Marcos: - Ninguém, que eu saiba…

Pedro: - Aquele do 10º, que era da turma da Magali. Aquele do «ai, filha!» [risos] Miguel: - O que anda sempre com aquele de barbinha?

Pedro: - Ya, esse!

174

Pedro: - São os maricas cá da escola, stôr [alguns risos e ares de choque]. A gente não tem nada contra, mas uma coisa é ser homossexual, prontos, mas outra é ser [pensa] nem sei como designar…” (GDF2, Escola Vermelha).

Quando os/as jovens descreviam geralmente situações de bullying ou violência que tinha testemunhado, geralmente, indicavam uma determinada pessoa e faziam referência subtil à questão da expressão de género, sobretudo os «tiques» e muitas vezes recorrendo a um determinado discurso de «gay, mas não bicha» que se explorará adiante (Santos, Silva & Menezes, 2017):

“Inês: - Eu já, nestas coisas de bullying homofóbico. Não sei se alguma vez a alguém já aconteceu, mas quando andei no colégio tinha uma turma onde tinha um rapaz, pronto, não sei se era ou não mas tinha uns tiques mais, pronto, mais efeminados, e realmente punha toda a turma [a gozar]; não é uma coisa grave a nível de se bater e aqueles insultos, mas sim, assistíamos a muita coisa que o punham de parte em muita coisa. Ficava sempre sozinho nas coisas e assim.” (GDF1, Escola Branca).

“Hugo. – Vamos começar outro tópico de conversa: quando é que vocês se aperceberam que existem pessoas que não eram heterossexuais?

Catarina: - Hey lá! [admirada com a pergunta]

Micaela: - Quando comecei a gostar de raparigas? [com este comentário a Micaela revela gostar de raparigas]

Francisco: - Quando comecei a ver coisas no Facebook, relativo a casais homossexuais. Barbara: - Eu, por acaso, fui uma vez que vi numa revista, “Sábado” ou “Visão”, e dizia que no Brasil existia 6 ou 7 tipos de orientação sexual, entre outras coisas.

Fred: - Acho que foi na escola. Jorge: - Eh pá, não sei…

Catarina: - Hey, quero falar [Catarina estava com o dedo no ar para falar com os colegas]. Eu comecei a perceber isso quando via pessoas a gozarem com outros sobre isso. Foi já na escola primária e pensei: “Eh pá, alguma coisa está diferente!”. Crianças entre si a chamar “homossexuais” como um insulto.

Hugo: - E eram “homossexuais” que chamavam? Fred: - Não. Gays!

Jorge: - Paneleiros! [risos]

Catarina: - Estou a imaginar uma criança de 5 anos: “és mesmo homossexual!”. Nem sei dizer todos os nomes!

Barbara: - Mas também existe aquilo do “Maria-rapaz”! Começa logo pelo “maria-rapaz” ser muito diferente daquilo que uma rapariga é suposto ser…

175

Fred: - Também.

Hugo: - Qual é a tua opinião?

David: - Eu? Eu acho que foi como a Catarina ali. Foi na primária também. Havia um aluno que andava na mesma escola que que era transexual. Não tenho certeza se era um rapaz ou uma rapariga. Ouvia pessoas a chamarem nomes, ele andava pelas casas de banho. Era algo confuso para mim e na altura não sabia o que fazer!” (GDF1, Escola Rosa).

Estes outros/as jovens cuja a sua expressão de género sai fora da masculinidade e que se tornam mais bullificáveis, tornando-se mais vulneráveis ao insulto e à agressão. São indivíduos (ou situações) que causam “falatório” (Fonseca & Simões, 2015: 239). É sobre estes rapazes em particular que recai o rótulo estigmatizante de «maricas», estigmatizante no sentido goffminiano do termo (Goffman, 1990), e que se constituem como mais vulneráveis ao bullying e às consequências psicossociais que dele podem decorrer. Muitas vezes, esses rótulos de homossexualização são acionados mais a partir de um “rumor” do que da enunciação ou afirmação da sexualidade por parte dos jovens, o que significa que não são necessariamente homo-, bi- ou transexuais, mas em muitos casos são.

O fag discourse pode não ter uma intenção homofóbica, mas… acaba por ter quando a pessoa, direta ou indiretamente, personifica o estereótipo daquilo que se pensa ser o homossexual. Em certa medida, estes jovens efeminados têm um papel de «bode expiatório. Numa revisão da literatura, Douglas (1995) identificou três elementos essenciais relacionados com este papel específico: i) com a sua morte ou sacrifício, os bodes expiatórios restauram os membros da comunidade na posição de favor àqueles que eles veneram (i. e., os seus deuses); ii) asseguram a sobrevivência da comunidade e iii) a sua morte reforçaria um sistema particular de crenças através do exemplo. Na verdade, estes jovens não só são usados para construir a masculinidade de jovens heterossexuais como também dão o exemplo a outros jovens LGB normativos do que (hipoteticamente) vai acontecer se se assumirem (Santos, 2013b).

O que é importante referir é que não são propriamente os jovens LGB que não são assumidos/as e/ou que têm expressões de género normativas que sofrem interpelações diretas como o bullying, mas são sobretudo estes jovens – cis ou trans – cujas expressões de género não só não cumprem as normas do género como até procuram imitar o (o arquetípico do) género oposto (Elliot, 2012). Não significa isto que o primeiro grupo não possa ter os seus conflitos intrapsíquicos particulares, muitos deles envolvendo, inclusive, a tensão entre assumir/expressar ou não assumir/expressar a sua homossexualidade, nem que não existam jovens heterossexuais cujas expressões de género também os coloque nessa posição de scapegoating, mas são, sobretudo, estes jovens LGB que claramente se colocam à vista da interpelação e, muito embora

176

jovens heterossexuais possam ser também interpelados, há uma tendência maior para que sejam LGB. Maria do Mar Pereira conta a história do Orlando onde dá para perceber que o bullying se mistura com falta de masculinidade, timidez e homofobia:

“O Orlando é explicitamente descrito como sendo diferente dos outros rapazes na medida em que não cumpre os requisitos de uma masculinidade «respeitada»: não joga futebol, não reage quando é gozado, fala pouco e timidamente, não se veste de forma considerada «estilosa» e não tem namorada. Como tal, é excluído de variados espaços e grupos pela maioria dos rapazes e raramente está incluído nas suas referências a «nós», os rapazes ou «os rapazes da turma». (2012: 143).

Enquanto que a masculinidade (nas raparigas) tem, geralmente um certo efeito de produção de algum respeito, a feminilidade (nos rapazes) parece gerar um distúrbio de tal ordem (não em todos, mas) em muitos rapazes, geralmente heterossexuais, e quase convidar ao confronto físico. Como explica Badinter (1996), “um homem efeminado suscita uma formidável angústia em muitos homens; a visão desencadeia neles uma tomada de consciência das próprias características femininas, como a passividade ou a sensibilidade.” (157).

Sobre estereótipos de género, Lígia Amâncio (1994) verifica que a maior parte das conotações negativas eram endereças à feminilidade. Enquanto que à “masculinidade” eram atribuídos adjetivos socialmente valorizados como coragem, bravura e esforço, à feminilidade eram atribuídos adjetivos menos valorizados como fraqueza ou fragilidade.

O problema da homofobia escolar se deve mais ao não enquadramento ou transposição das expressões de género convencionais do que a desejos ou práticas sexuais, repercutindo-se muito particularmente na luta compulsória da expurgação da feminilidade arquetípica no homem (Santos, Silva & Menezes, 2017)81. Isto obviamente não significa que as raparigas “masculinas”

não possam sofrer interpelações neste sentido (Mandel & Shakeschaft, 2000), como aliás alguns jovens foram referindo, mas são muito particularmente os rapazes efeminados os mais visados. Isto também não significa que jovens LGBT sejam automaticamente excluídos se efeminados (McCormack, 2012), mas sem dúvida que ficam expostos a uma maior interpelação (Elliot, 2012). Como não sexualmente desejados nem por rapazes heteros (obviamente) nem por outros gays, estes grupos de rapazes encontram-se claramente à margem da obtenção de capital social, salvo raros nichos ou áreas (e. g., teatro, dança). Alguns jovens apresentavam, inclusive, a tese

81 Não existe melhor imagem desta expurgação da masculinidade no seu sentido pré-moderno do que a sua

representação pelos rituais tribais de passagem para a adolescência onde a expurgação da feminilidade se faz à custa da violência.

177

de que “ser assumido” significaria ser ou apresentar-se como mais resiliente ao bullying e à homofobia:

“Maria: - Porque, por exemplo uma pessoa que assume que é gay é preciso ser forte para isso. É preciso saber aguentar e ouvir e calar ou até responder, mas quem não assume é porque tem medo das consequências. E acho que isso afeta mais. Porque uma pessoa que tem medo de assumir o que é, ao ser atingido com isto, ao gozarem e tudo, é mais frágil. Uma pessoa que assume já é mais forte, já aguenta melhor.” (GDF2, Escola Amarela).

Não são de negligenciar aqui os processos psicológicos através dos quais uma maior melancolia depositada à homofobia reside dentro do próprio sujeito.