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Capítulo 4. Perspetivas, discursos e experiências de jovens estudantes sobre violência e bullying na escola

4.1.2. A natureza do bullying: alguns aspetos

Um aspeto sobre a natureza do bullying muito referido pelos/as jovens – enunciado geralmente aquando da visualização do vídeo – era a distinção operada entre a idade/ciclo escolar na expressividade do próprio bullying. Era muito comum os/as jovens explicarem que existia muito bullying nos primeiros anos de escola – presume-se que seja o 2º e 3º ciclo –, atribuindo esse facto a uma espécie de infantilidade típica da idade, mas que tendia a diminuir ou até mesmo a acabar no secundário, um lugar onde as pessoas eram “mais maduras”:

“Marta: - Eu acho que ocorre muito bullying, mas é nos primeiros ciclos, noutros anos [não] Raquel: - Sim, aqui no secundário não é tão frequente.

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Marta: - As pessoas são mais maduras e não precisam de ofenderem-se para se sentirem bem com elas ou encaixarem-se no grupo porque já estão encaixadas [ri-se e pensa]. É verdade, acho que o bullying se faz muito para as pessoas se encaixarem num determinado grupo. No secundário, nem tanto, não se vê muito. A cena de se encaixar no grupo há sempre, mas não vês aquela cena de pegar com outros, mandar bocas à descarada, não.

Kevin: - Sim, mas também tens aquela cena das pessoas irem para áreas diferentes… Marta: - Sim, diferente. Bullying, bullying aqui no secundário não há tanto.” (GDF1, Escola Azul)

Esta ideia do bullying como um determinado tipo de violência típica dos primeiros ciclos escolares na sua correspondência com uma determinada infantilidade ou imaturidade era uma ideia bastante forte, amplamente partilhada por jovens de vários GDF71. Na verdade, a literatura

tem demonstrado que o bullying é particularmente intenso nos primeiros ciclos escolares e que os episódios de bullying tendem a diminuir à medida que os/as alunos/as vão sendo mais velhos (Olweus, 1993; Rivers & Smith, 2006; Rivers, 2011; UNICEF, 2017). Costa, Pinto, Pereira e Pereira (2015) referem que o bullying atinge “o seu auge aos 13 anos de idade” (Costa, Pinto, Pereira e Pereira, 2015: 146) o que corresponde geralmente ao 8º ano de escolaridade. Verifica-se que a maioria dos comportamentos de bullying ocorre no sexto, sétimo e oitavo ano (i.e., middle school), e isso é particularmente revelante para a frequência do bullying físico e verbal-direto (Rivers & Smith, 2006).

Ainda assim é inespecífico a que tipo de bullying os/as jovens se estão a reportar, sendo possível que se estejam a referir a formas mais diretas de agressividade que são também aquelas que mais merecem receber o estatuto de bullying. Para entender a natureza do bullying como os/as jovens o descrevem é preciso compreendê-lo nas suas diferentes manifestações comportamentais, diretas e indiretas: há um bullying físico (e. g., bater, empurrar), há um bullying verbal (e. g., insultar, mandar piadas), há um bullying social (e. g., ignorar), há um bullying sexual (e. g., apalpar)72. Em termos da natureza das agressões era mencionada sobretudo a violência

verbal em todos os graus de ensino, inclusive no secundário, como a mais frequente, consubstancializada no triunvirato “insultos, comentários e piadas”. Muitos/as jovens admitem que, ao longo da sua experiência escolar, já sofreram e/ou viram muitas situações de bullying nestes termos. Uma das formas mais comuns de bullying enunciadas é o “bullying verbal” sendo aquele que os/as jovens reconhecem como mais frequente:

71 Não se pode esquecer que estes/as jovens são jovens do ensino secundário a falar sobre as suas experiências. Por causa disso, as descrições da natureza do bullying são muitas vezes invocadas a partir de experiências (bastante) passadas ou imaginárias.

72 Pode-se considerar que existe um “bullying psicológico”, mas, de algum modo, o bullying psicológico parece ser

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“Hugo: - Que tipo de bullying é mais comum? Marta: - Como assim?

Hugo: - O tipo de bullying: verbal, físico, …? Marta: - O verbal.

Raquel: - Sim, o verbal. É mais comentários… Marta: - Ou insultos.” (GDF1, Escola Azul).

Uma vasta literatura sobre bullying tem elucidado como a maior parte dos atos de bullying se baseiam em comentários e insultos (Costa, Pinto, Pereira & Pereira, 2015; Rivers, 2011). Uma explicação plausível é que a agressão física pode implicar consequências físicas mais objetivas e graves do ponto de vista biontológico, e nesse sentido a violência verbal tende a ser preferida para ridicularizar o outro. Como explica a Bárbara:

“Bárbara: - Talvez o [bullying dominante seja] verbal, mas acho que é mais na brincadeira. Principalmente entre amigos. Acho que é isso. Andar à porrada, acho que não. Acho que é mais conflitos entre as pessoas do que [faz aspas com os dedos] bullying até porque o bullying físico, se alguém oficial da escola vir, podemos entrar em problemas. Normalmente é o verbal que se faz. E também afeta muito as pessoas. Talvez se calhar mais – depende da pessoa, claro – mas o estado mental é muito importante e se for físico podemos entrar em problemas e por isso as pessoas optam pelo verbal.” (GDF1, Escola Rosa).

Em muitos casos, os/as jovens tendem a fazer uma separação entre os “casos mais graves” e “coisas mais subtis”, o que por vezes também não deixa de estar ligado também ao tipo de bullying: quando é físico e direto é “grave”, quando é verbal (ou social) e/ou indireto é menos grave. Na verdade, os/as jovens tendiam a fazer uma grande separação entre o bullying físico e verbal-direto – aquele que era considerado o real “bullying” e que acontecia muito nos primeiros ciclos – e o bullying social – um determinado tipo de bullying que raramente recebia o nome de “bullying” e que ocorria também no secundário73:

“Hugo: - Vocês já presenciaram situações de bullying? [algum silêncio]

Telmo: - Casos mais graves nunca tivemos, agora coisas mais subtis sim, temos sempre…

73 Esta ligação muitas vezes referida pelos/as jovens faz interrogar até que ponto o bullying verbal e social e/ou indireto, muitas vezes, tende a ser negligenciado como “grave” ou, muitas vezes, não sendo catalogado como “bullying” ainda que também seja verdade que muitos/as jovens parecem destacar isso mesmo: que formas mais mitigadas de bullying são igualmente graves.

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Tiago: - É o que acontece mais, piadas, comentários, de resto, nunca vi ou ouvi assim nada de muito grave…” (GDF2, Escola Laranja).

“Antónia: - Na minha escola tivemos um caso mais grave de uma rapariga que era assim mais gordinha – acho que foi no 7º [pensa] acho que foi no 7º…

Romeu [confirma]: - Foi no 7º sim, era a Inês…

Antónia: - A Inês, ya! é do tipo, ela era gozada por toda a gente, era posta de lado. Via-se mesmo que era posta de lado e, entretanto, ela acabou por sair da escola.

Romeu: - Os pais tiraram-na.

Antónia: - Sim, os pais decidiram tirá-la. Ou mudaram-se, não sei. Só sei que ela saiu…” (GDF3, Escola Laranja).

Muitas vezes, os/as jovens referenciam casos mais concretos com sujeitos concretos amplamente conhecidos de todos. Um outro aspeto relevante tinha que ver com as diferenças de sexo/género nas dinâmicas de bullying: em primeiro lugar, os/as jovens tendiam a descrever o bullying sobretudo como um fenómeno intrasexo (i.e., ele ocorre tendo como perpetuadores/as e vítimas membros do seu próprio sexo: rapazes fazem bullying contra rapazes e raparigas fazem bullying contra raparigas), sendo raro um “bullying misto” o que bate certo com alguma literatura (Duncan, 1999). Em termos da natureza de cada um, um dos aspetos mais distintivos diferenciadores é que o bullying dos rapazes era geralmente mais físico e o bullying das raparigas era geralmente mais social:

“Hugo: - Considerado o sexo – rapazes e raparigas –, quem é que vocês acham que faz mais bullying a quem e porquê?

Fábio: - Os rapazes.

Micaela: - Eu acho que é muito relativo. Depende do bullying. Francisco: - Depende. Se for agredir pessoas: os rapazes. Fred: - Mas as raparigas também fazem muito bullying entre si.

Catarina: - As raparigas fazem mais bullying verbal contra outras raparigas ao nível do aspeto [físico]. Os rapazes, pelo que já vi, alternam entre o físico e o verbal. E o aspeto é mais deficiências e essas coisas assim.

Barbara: - Raparigas entre raparigas é mais verbal e ligado ao [aspeto] físico; e rapazes com rapazes é [um bullying] mais físico. Nos rapazes, é mais a questão da orientação [sexual] e nas raparigas é mais o físico. Acho que nós [raparigas] aceitamos melhor a orientação [sexual] dos outros. Isso é talvez mais um preconceito, mas é: nós somos mais tolerantes. Não nos incomoda tanto.

Inês: - Além disso, as raparigas estão sempre a lutar por um ideal de beleza. Hugo: - A rapariga que não se adequa a esse ideal de beleza é alvo de bullying? Inês: - Normalmente é [algumas colegas concordam].

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Micaela: - As raparigas estão sempre a ser pressionadas para ter o peso perfeito, mesmo na televisão, penso que é mais um motivo para [Catarina completa]

Catarina: - Para as pessoas ficarem a pensar dessa maneira.

Bárbara: - Redes sociais também. Temos que estar perfeitas para a fotografia de perfil do Facebook [risos].” (GDF1, Escola Rosa).

Esta ideia do bullying físico ligado aos rapazes e do bullying social ligado às raparigas é bastante mencionada pela literatura. Bjorkqvist et al. (1992) conduziram um estudo com crianças em escolas finlandesas examinando diferenças ao nível do género e da idade na expressão de bullying direto, indireto, verbal e físico. Comparando rapazes e raparigas de 8, 11 e 13 anos, os/as autores/as argumentam que a agressão indireta era mais comum entre raparigas do que rapazes decrescendo com a idade. Em termos de agressividade, observações culturais sugerem sistematicamente que os rapazes são fisicamente mais agressivos que as raparigas que, por sua vez, mostram níveis de agressão mais indiretos como uso malicioso de exclusão social, espalhar rumores ou manipulação de relações (Bourdieu, 1999). A literatura do bullying, desde do seu início, tem demonstrado diferenças significativas de género ao ponto de se admitir que o bullying é um “fenómeno masculino” (Rivers, 2011: 07).

Rogoff (2003) sugere que as diferenças de género observadas entre homens e mulheres nas relações sociais refletem as tradições e práticas associadas com os papéis de género esperados em adultos em muitas comunidades culturais, papéis esses aos quais as crianças desde tenra idade participam e estão preparadas para assumir. Lagerspetz et al. (1988) referem que se a agressão direta é desencorajada pela sociedade para as mulheres mais do que para os homens, é explicável que estas recorram a formas mais indiretas de agressão.

Era comum rapazes e raparigas concordarem neste tipo de diferenças de género, o que ainda assim não deixava de criar algumas “guerrinhas entre sexos” simuladas. Há, porém, algumas descrições de bullying intersexo que assumem geralmente a forma de assédio sexual de rapazes a raparigas – a que Meyer (2008) denomina de “violência (hetero)sexual” – e também são muito reportadas aos primeiros ciclos. Numa das reuniões prévias, a Professora Responsável contou-me que uma das raparigas não queria participar na pesquisa porque assim que soube da temática (“bullying”) desatou a chorar. Confidenciou-me depois que a rapariga em questão era muitas vezes assediada – “apalpada” foi a expressão usada – e que, apesar de ser uma situação já resolvida (na perspetiva da professora), não deixou de criar algum tipo de trauma na jovem estudante em questão:

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“Começando por me agradecer a escolha da escola para a minha pesquisa e parabenezindo-me pelo tema da mesma, a professora avisa-me que uma das alunas, assim que soube da temática, não quis participar. Explica que teve uma crise de choro assim que soube do tema e conta-me que ela, no início do ano letivo, foi bastante assediada por dois rapazes da escola – apalpada – e que, por isso, o tema do bullying lhe era muito caro.” (NT, 09/11/2016).

No decorrer dos GDF há também a menções a slutshamings, i. e., formas de insulto genderizado em que o que está em causa é o comportamento sexual das raparigas. Na sua etnografia, Pereira observa que existe um grupo de raparigas que são rotuladas por uma parte de outros jovens com o rótulo estigmatizante de «p.u.t.a.s.» devido à ideia de eu sejam sexualmente ativas. Explica Maria do Mar:

“As narrativas sobre o caráter desviante e repreensível de uma sexualidade feminina – são convocadas para posicionar certas raparigas da escola como diferentes. Estas narrativas actuam como discurso de regulação das práticas e dos comportamentos não só delas, mas também de outras raparigas da escola, muitas das quais se procuram distanciar da figura das «p.u.t.a.s.» que é representada por estas colegas.” (Pereira, 2012: 127).

Uma curiosidade era que o bullying sobre a aparência física era muito citado em vários GDF como um bullying especificamente feminino enquanto que o bullying de cariz homofóbico era geralmente atribuído aos rapazes. McMaster et al. (2002) evidenciam que para ambos os sexos as três formas de vitimização mais comum são a) chamar nomes homofóbicos; b) fazer comentários, piadas, gestos ou olhares sexuais e c) fazer comentários sobre o corpo. O “corpo” aparece aqui como um dispositivo público do self, aparece como um dispositivo a partir do qual as pessoas são interpeladas (Pais, 2012). Já em termos de papéis, os/as jovens tendiam a descrever os bullies como:

 Frustrados; com raiva, com problemas, traumatizados;

 Exibir popularidade, “armar-se”, integração no grupo;

 O gosto pelo poder;

 Há uma forte menção a outros/as jovens “dos bairro sociais” e a jovens ciganos/as.

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Uma análise mais aprofundada, porém, permite-nos perceber aqui dois diferentes tipos de “bullies”: um “bully” com raiva, frustrado (impopular), mas também um bully popular cujo objetivo é a ascensão social.

“Hugo: - Se vocês tivessem que traçar o perfil daquele que faz mais bullying, como vocês traçariam?

Beatriz: - Como já disseram há bocado, uma pessoa que pratica bullying é uma pessoa que se quer sentir bem com ela própria; na minha opinião. É uma pessoa que na escola não demonstra os seus problemas e assim, e então faz bullying com outras pessoas. Para não demonstrar que está a sofrer da mesma maneira, mas que fora da escola é uma pessoa totalmente diferente porque certamente também está com os seus problemas e a sofrer.

Fred: - É um frustrado.

Jorge. – Psicologicamente fraco.

Barbara: - É uma pessoa com raiva, e que se quer destacar das outras pessoas de alguma maneira, na minha opinião, nem que seja de uma maneira negativa, mas que aos olhos do grupo se destaca como positiva. Pensa ele. Alguém com problemas que não quer mostrar; apenas quer-se sentir superior.

Hugo: - Uma necessidade de afirmação.

Fábio: - Ou alguém que se quer estar a armar perante os amigos ou atenção. Catarina: - Para parecer mais superior; é, tipo, um jogo, né?

Francisco. – Acho que também pode ser em relação aos próprios pais, à própria família. Não um passado problemático, mas um passado mau de mais em que os pais não estão presentes e ele não os vê e tudo, ele acaba por querer sentir-se superior e esse tipo de coisas.

Hugo: - E o perfil da vítima? Fábio: - Mais fraco.

Barbara e Micaela: - Depende.

Jorge: - Depende. Depende do motivo. Se for físico, podia ser alguém pequeno, não sei. Fábio: - Às vezes são frágeis sabendo [da sua fraqueza], por exemplo: uma pessoa que é mais gorda, se calhar é mais frágil porque sabe que é gorda, é mais frágil psicologicamente. Catarina: - Ouve muitas pessoas a dizer as mesmas coisas sobre essa tal característica, leva essa pessoa a aceitar isso. Passa a acreditar o que se diz…

Hugo: - Interioriza isso. Ou seja, a pessoa faz bullying porque percebe que há uma fraqueza que ele pode explorar, aproveitar para atacar o outro.

Fábio: - E ele [o bully] sente-se superior a ele e quer atacar. Catarina: - É uma luta de poder.

Barbara: - Mas ao mesmo tempo quem faz bullying também se esquece que tem uma fraqueza. Essa é a desvantagem.”

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 Frágeis (em termos de estatura, força física e personalidade, i.e., tímidas);

 Impopulares (ou não muito populares);

 “Deixam-se levar” (o circulo da vitimização).

Estas descrições podem basear-se em experiências vividas, mas também em representações pré-constituídas (que é como quem diz: estereótipos) sem fundamento com as experiências reais dos sujeitos, como é óbvio; ainda assim, muitos/as jovens não deixavam de enunciá-las de um modo antiessencialista, questionando-se e colocando a sua própria falta de conhecimento em jogo ou então assumindo experiências concretas de bullying para certificar as suas falas. Não era raro os/as jovens mencionarem situações de bully-vítima revelando como o bullying era acionado como um sistema de circularidade, ainda que muitas vezes não se coloquem na possibilidade de se constituírem como “bullies”, falando sempre num standpoint daqueles/as que julgam (ou pelo menos falam sobre) as atitudes de outros.

Seja num aspeto ou noutro, parece inegável como para os/as jovens o bullying relaciona- se com a dimensão do «poder», categoria que atravessa os discursos juvenis. Para muitos/as jovens, as pessoas fazem bullying como uma forma de impor poder – ou, para usar a sua gíria – “para se armarem” – e de se sentirem bem com isso. Há diferentes perspetivas de “poder”: para Arendt (2014), o poder deve ser distinguindo da «autoridade» e da «violência» enquanto que para Foucault (1999), o «poder» deve até ser entendido em termos produtivos servindo não só lógicas repressivas, mas também – é aqui reside a novidade foucaultiniana ao conceito – lógicas emancipatórias.

O “poder” a que aqui os/as jovens se referem relaciona-se com uma dinâmica antagónica (Mouffe, 1992) que acaba, de uma forma ou de outra, por constituir identidades: quem é superior e quem é inferior. Para os/as jovens, as pessoas fazem bullying para obter ou amplificar o seu “poder”, para se sentirem superiores. Esta justificação entra em linha de conta com uma vasta literatura na qual o bullying é interpretado como uma rede complexa de relações de poder e hierarquias dentro do grupo de pares (Bibou-Najou, Tsiantis, Assimopoulos, Chatzilambou e Giannakopoulou, 2012). Como um exercício de poder, o bullying acaba por produzir determinadas identidades, não só em termos de papéis dentro dos processos de interação – bullies, vítimas, bullies-vítimas, vários tipos de testemunhas, etc. (Salmivalli, 1996), mas também em termos de categorização social produzindo efeitos sobre aquilo que cada um deve pensar sobre si.

Essa é a razão pela qual, ao nível das motivações, uma das grandes justificações para a ocorrência de bullying relaciona-se com o facto de se «sair da norma», i.e., os/as outros/as jovens

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que, na escola, segundo os/as jovens, saem da «norma» - e, que, portanto, são «diferentes» – tendem a estar mais suscetíveis a sofrer bullying. Tornam-se, portanto, «bullificáveis»:

“Hugo: - Quem é que vocês consideram que sofre mais bullying? António: - Quem é diferente, quem sai da norma. São esses.

Cátia: - Quem não se enquadra. Esses são aqueles que sofrem mais bullying. São diferentes e como são diferentes as pessoas acham-se no direito de os atacar, de os gozar, fazer troça. Aqui na escola é assim. Hugo: - São diferentes em que aspetos?

Cátia: - Ou porque são gordos, por exemplo. Ou porque são… António: - Deficientes! [alguns risos]

António: - É verdade. “ (GDF1, Escola Laranja)

Uma vasta literatura sobre bullying tem elucidado como «sair da norma» tende a tornar determinados grupos de jovens mais suscetíveis a sofrerem bullying (Rivers, 2011). As crianças e jovens de grupos minoritários tendem a se tornar “especialmente vulneráveis” (Carvalhosa, Moleiro & Sales, 2009: 139). Mas que «diferenças» - ou, por extensão, que «normas» - são essas? Não existe um consenso entre os/as jovens sobre o que é a «norma» na medida em que se reconhece que qualquer um/a pode sair de uma determinada «norma», mas existem identidades que saem mais da norma do que outras: ser-se gay, ser-se gordo/a, ser-se demasiado alto ou baixo, ser portador/a de uma incapacidade física ou cognitiva, etc.

“Hugo: - Já falamos um pouco do perfil da vítima. Agora, quem é que vocês acham que sofre mais bullying, que grupos? Se tivessem que escolher…

Joana: - Aqueles que são diferentes da maioria. Mais diferentes da maioria, tipo, se é mais gordinho ou mais alto.

Monteiro: - A Girafa! [risos]

Cátia: - Ser gay. Ter tiques. A norma não é essa e há pessoas, outros jovens que se calhar não aceitam essa diferença e fazem bullying. Não pensam… (GDF1, Escola Laranja).

“Filipa: - As crianças não são preparadas desde pequenas que existem as diferenças. Elas só chegam a atingir quando chegam à minha idade, 14 ou até mais novas, e começam a perceber que há diferenças para além do padrão normal.

Sofia: - Eles estão habituados a ver o pai e a mãe, e aqueles meninos têm dois pais. E vão por aí: gozam com ele…” (GDF3, Escola Cinzenta).

A noção de “diferença” era muitas vezes invocada em discurso para dar conta da sinergia do bullying. Os/As jovens reconhecem que ir contra os padrões de género ou sexuais, deficiências

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ou raça/etnia são as caraterísticas identitárias mais atacáveis. Não significa isto que basta “pertencer” a uma dessas identidades para se sofrer automaticamente bullying, mas ser publicamente reconhecidos nelas torna-se mais suscetível a sê-lo. É então importante compreender o bullying como uma forma de organização hierárquica entre diferentes tipos de grupos e subgrupos de jovens. Para se compreender o bullying na sua plenitude é preciso compreender as culturas juvenis como constituídas por inúmeras hierarquias e o modo como os