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Capítulo 4. Perspetivas, discursos e experiências de jovens estudantes sobre violência e bullying na escola

4.1.3. Estratégias de enfrentamento

Não existindo menção a estratégias preventivas, os/as jovens vão enumerando algumas estratégias para lidar com o bullying quando ele ocorre sendo eles/as intervenientes reais dentro do processo e, pelo menos, colocando-se numa posição imaginada. Há menção a estratégias mais formais, i.e., estratégias em que os/as jovens recorrem a outras identidades (geralmente adultas) dentro ou fora da escola para o efeito, e estratégias mais informais em que os/as jovens procuram resolver a situação por eles/as próprios e/ou, pelo menos, com outra pessoa ou grupo próximo dentro do seu microcontexto. Como uma estratégia informal, a menção ao recurso dos (grupos de) amigos é muito comum contra o bullying:

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“Hugo: - Em situações de bullying, em que vocês estejam a ser vítimas de bullying, a quem vocês recorrem? Telmo: - Eu a ninguém porque nunca sofri.

André: - Os amigos, talvez. Hugo: - Os amigos?

André: - Sim, são as pessoas que nos compreendem melhor e a quem podemos contar coisas que se calhar não contávamos a outras pessoas, tipo, os pais, ou isso.

Telmo: - Se eu contasse aos meus pais ainda era pior [risos].

Margarida: - Se a pessoa estiver sozinha é pior. Agora se tiver acompanhada não recebe tanto bullying. Eu acho. Acho que aqueles que fazem bullying só fazem contra quem está mais isolado. Se tiverem num grupo maior, um grupo de amigos, não fazem tanto.

André: - Ou nem fazem…

Margarida: - Ou nem fazem, exatamente. Agora, se estiverem sozinhos é mais provável fazerem” (GDF2, Escola Azul).

“Os amigos” são parte importante dos processos de relação escolar (Pais, 2012; Pereira, 2012). Este grupo de amigos pode ser positivo em termos de apoio e suporte emocional depois de ocorrido, ou como prevenção impossibilitando o isolamento da pessoa: quando a pessoa está rodeada de amigos (ou outras pessoas) (e, portanto, não isolada) a pessoa que faz ou quer fazer bullying vai sentir-se mais reprimida a executar o seu ato, até porque pode haver testemunhas. Quando os insultos ocorrem, procurar um grupo de “pares significativos” (Luckmann & Berger, 2004) dentro da escola pode ser uma estratégia importante com o sentido de produzir testemunhas do ato em si, desmobilizando o próprio bullying.

A “família” tende a ser menos mencionada como recurso de denúncia. Existem jovens que referem como até mesmo queixar-se à mãe (e sobretudo) ao pai pode ser demonstrado como um sinal de fraqueza que é interpretado pelos pais como uma extensão da sua própria. Isso revela-se particularmente grave no bullying de cariz homofóbico onde a denúncia aos pais traz o estigma de se ser homossexualizado e/ou a assumpção da sua homossexualidade, razão pela qual ambos muitas vezes não são reportados (Mishna, Newman, Daley & Solomon, 2009). Num estudo europeu de Athanasiades e Deliyanni-Kouimtzis (2010) é revelado que muitos/as jovens não divulgam o bullying de que são alvo à família, descrevendo, por vezes, a situação como indiferente e as intervenções como inefetivas.

Uma outra estratégia enunciada era “responder da mesma moeda”. Muitas vezes, esta estratégia de “violência imaginada” (Halberstam, 1993) é enunciada no calor do momento por parte de alguns jovens para os quais o bullying é uma realidade inadmissível que suscita neles uma grande raiva como no exemplo do Rodolfo:

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“Hugo: - E o bullying de forma genérica, eles não conseguem resolver? [a turma em peso: “NÃO!”].

Carina: - Porque ignoram [encolhe de ombros].

Rodolfo: - Não, porque muitas vezes a única forma é lutar de volta. Muitas vezes metem-se comigo e eu respondo. Não é com diplomacia que se resolve.

Carina: - E até as vezes se podia confrontar a família, mas, às vezes, as pessoas da família até concordam com quem faz bullying, apoiam o filho. É difícil!

Rodolfo: - E depois há aqueles que se bateram no “menino” e depois vem cá o pai, a mãe, o cão e a troupe toda e pronto [a turma ri-se]. A única resposta é: “olha, metes-te comigo, eu meto-me contigo também de volta. É a única resposta! Não se pode resolver com democracias e assim, e fazer queixa aos s’tores porque isso ainda é pior!” (GDF2, Escola Roxa).

É inespecífico se os/as jovens assumem esta estratégia como um desabafo pelo sentimento de injustiça que o bullying lhes provoca (sendo ou não vítimas), e também é verdade que é suspeito se esta estratégia se apresente como eficiente ou eticamente aceitável: facilmente se pode imaginar situações onde a vítima se converte num bully. Kimmel & Mahler (2003) questionam até que ponto os autores do atentado do Columbine não eram jovens que, de modo indireto, também não sofreram bullying de cariz homofóbico –, mas não se pode negligenciar que, para muitos/as deles, “fazer o mesmo”, se apresente como uma técnica, ora de acabar com o próprio bullying, ora até mesmo de o prevenir futuramente. Muitas vezes é exatamente esta comoção que o bully procura, não só saciando o seu ego desse modo, como também colocando a vítima num estado de descontrolo onde qualquer tentativa de libertação só a emaranha mais.

Essa talvez seja a razão pela qual outros/as jovens enveredavam por uma outra estratégia quase ideologicamente inversa em relação à anterior: “ignorar”. Muitos/as jovens revelam que ignorar é algo que serve como desmobilizador do próprio bullying na medida em que se o objetivo da outra pessoa é provocar, ignorar significa parar com a situação:

“Bernardo: - Quando me faziam bullying eu ignorava. Cátia: - É o melhor às vezes, ouvir e calar.

Telmo: Fazer de conta. Eu tinha um truque que era andar sempre com os fones, os fones do telemóvel. Às vezes, eu passava com os fones [alguns risos]. Outras vezes desligava a música de propósito só para ver o que estavam a dizer…

Hugo: - Quem?

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Num dos GDF não deixa de ser curiosa a técnica de recurso a smartphones por parte de um dos jovens revelando o papel das novas tecnologias nestes processos de violência. O que está subjacente ao ato de ignorar é que ele pode ser desmobilizador do conflito. Nesse sentido, ignorar significa não alimentar a correia de energia conflitual a que o bullying procura dar continuidade. Em vez de se responder da mesma moeda, o que só alimentaria o ato de bullying com um possível desfecho cruel para ambas as partes, obriga-se o/a bully a deparar-se com o seu próprio eco por falta de respaldo. Travar o bullying, muitas vezes, é identificado como uma aptidão pessoal de cada um/a sendo que não raras vezes é sugerido pelos/as jovens que a pessoa ponha logo um travão quando assistir a situações que a constituam como «alvo»:

“Fred: - O início do bullying depende da pessoa. A pessoa recebe um comentário negativo e não diz nada, então a pessoa que fez o comentário já sabe que pode continuar a fazer comentários até a outra pessoa se passar. Se nós pusermos logo um travão no início, acho que é melhor.

Catarina: - Só que isso é difícil.

Fred: - Lá está, depende da pessoa.” (GDF1, Escola Rosa).

Muitos/as jovens também referiam não intervir justificando com o receio de represálias. Existe o medo de represálias para quem se envolve, de algum modo, no processo, ora procurando parar a situação, ora denunciando-a a instâncias superiores. O medo latente de que fazer queixa pode originar ser-se também vítima de bullying é sentido e expresso por vários jovens. Outros mencionam o papel estatutário do «queixinhas» como um papel ingrato, i.e., aquele ou aquela que se vitimiza não se só se expõe a uma forte descredibilização, como se inscreve no papel ingrato de «queixinhas» e, muitas vezes, de modo profundamente perverso, é até esse estatuto de «queixinhas» que pode ser usado para o bullying (Dupper, 2013). Há um forte estigma em dizer- se vítima ou até mesmo testemunha de bullying que aliás era mencionado pelos/as jovens. Também não se pode esquecer que, em sentido genérico, vive-se numa cultura neoliberal de apregoada popularidade em que ser-se vítima não é «cool», não corresponde às exigências sorridentes da fotografia do Facebook. O estatuto do «queixinhas» implica inscrever-se numa posição identitária de não popularidade. Essa constatação é adensada pelo próprio gozo paródico atribuído à expressão “bullying”, produzindo um certo descrédito sobre a assunção que este implica.

A somar a isto, muitos/as jovens faziam referência não só á complexidade na resolução dos casos de bullying, como também à impossibilidade da sua resolução. Ou seja, enveredavam pela ideia naturalizadora e derrotista de que nada pode ser feito. Num estudo sobre cyberbullying com recurso a GDF, Smith e colegas (2008) reparam que um tema comum era o jargão pessimista

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de que nada poderia ser feito. Na verdade, muitos/as jovens tendiam a referenciar como o bullying é tão frequente que “não existe muito que se possa fazer contra ele”, dando a sensação de uma atitude mais derrotista sobre as intervenções contra o próprio, que são melhor compreendidas na sua injunção com os meios institucionais.

Quanto às estratégias formais – estratégias de resolver o bullying e a violência interpessoal com recurso a meios institucionais, nomeadamente envolvendo figuras de autoridade (adulta) como professores/as, a administração escolar, o staff, enfim, a escola ou outras instâncias como a família ou até mesmo a polícia –, estas eram explicitadas por alguns jovens como “ineficientes”. Na verdade, muitos/as jovens revelavam como “falar não adianta de nada”. Os/As jovens muitas vezes descreviam os sentimentos de frustração que derivavam da parca mudança depois de terem reportado o bullying no passado, levando-os a situações de evitamento ou retaliação. Sem dúvida que esta estratégia tem a vantagem de estar dentro dos rituais de respeitabilidade institucional, representando uma lógica que era menos passível de repercussões para as vítimas (Meyer, 2008). Porém, estas estratégias eram também bastante rejeitadas pelos/as jovens pela sensação que tinham que nada poderia mudar. Grosso modo, há, por parte dos/as jovens, uma certa descrença no recurso a estes meios formais. A descrença não se relaciona só com os processos de vitimização passiva eventualmente desgastantes, mas reside no facto de se achar que o recurso institucional vai descambar no recurso à conversa com os intervenientes e que muitas vezes a conversa não vai resolver nada. Quando indagados se a escola queria saber de casos de bullying, muitos/as jovens prontamente referiam que não:

“Hugo: - Como é que vocês acham que a escola lida com esse tipo de situações? Acham que não lida, lida, …?

Debora: - Não lida. Inês: - Não lida.

Sara: - Depende. As questões do bullying nem se quer chegam aos ouvidos dos outros alunos quanto mais [da escola].

Daniel [ironiza]: - É tudo feito!

Hugo: - Vocês aqui na escola têm um gabinete de apoio ao Aluno? Daniel [ironicamente]: - Se temos, desconheço.

Cátia: - Temos psicólogo, agora isso não.

Hugo: - Vocês acham que é útil consultar o psicólogo em situações relacionadas com o bullying?

Sara: - Nesse caso, no caso do bullying, não tenho tanta certeza se tem ido tanta gente, porque eu acho que as pessoas que sofrem de bullying, eu acho que elas se escondem, encobrem o problema e deixam andar…

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Inês: - Mas às vezes elas não vão por causa disso, mas porque os pais sentem uma diferença no rapaz ou na rapariga, metem-no no psicólogo, e depois o rapaz ou a rapariga desabafa sobre isso sem os pais saberem que é esse o problema.

Sara: - Sim, mas muitas vezes, os rapazes ou raparigas – como vou-te dizer? – chegam a casa, escondem- se, não há problema nenhum. Os pais também não descobrem até porque cada vez mais os pais têm menos tempo para acompanhar os filhos então eles encobrem o problema e não resolvem.

Hugo: - E acham que a escola pode resolver esse tipo de situações, …? Inês: - Esse é um problema psicológico complicado até porque não há provas…

Sara: - Pois. E tanto podem fazer na escola como fora da escola e através de cyberbullying. Há muitas maneiras de fazer bullying.” (GDF1, Escola Branca)

Sempre reconhecendo a complexidade dos casos, alguns/mas jovens mencionavam que muitos não chegavam aos Conselhos Diretivos por várias razões, nomeadamente o estigma da denúncia. O discurso da ineficácia e até desinteresse da escola em resolver casos de bullying era dominante. Era raro encontrar algum ou alguma jovem que defendesse a ideia de que a escola conseguisse resolver situações de bullying ou que se importe com os casos. Como parar o bullying se a própria instituição escolar, segundo os jovens, se demite da sua responsabilidade? Este caráter demissionário da escola, por vezes, é particularizado (ou estendido aos/às) professores/as:

“Ivo: - Nós temos aula à beira de uma turma – deve ser para aí de sétimo ano – e é uma turma muito grande, muitos rapazes, é tipo, uma turma para aí de 30 pessoas, ou seja, há muitos rapazes, e eles estavam para lá fora a jogar à bola, e um colega meu disse-me que um daqueles miúdos sofria de bullying. É assim, mais gordinho e tudo, e sofria de bullying. E eles estavam todos a jogar à bola, e eu estava a reparar na turma, nos comportamentos deles, e esse miúdo, para já, foi logo ele para a baliza, sempre; não foi mais ninguém! E depois ele falhava, não apanhava a bola, olhavam para ele de lado, e depois eram assim – eu ouvi um miúdo a dizer baixinho: “voltas-me a fazer essa cara e vais ver o que te vai acontecer”, e eu vi logo que era mesmo verdade, ele sofria mesmo de bullying. Passado um bocado, veio a minha professora, e eu “Ó stôra, já viu aquela turma ali, aquele menino de vermelho, já viu como os colegas o tratam?” e a minha professora vira-se para mim: “Ah, pois é, ele sofre de bullying.” E eu: “e você sabe que ele sofre de bullying e não faz nada!”, para a professora saber – mais gente sabe, aliás; e ela: “Ah, é uma situação muito complicada” e não sei o quê. Assim [refere indignado].” (GDF1, Escola Amarela)74.

Não se ignora como estes discursos de descrédito carecem de algum fundamento objetivo, mas também não se pode ignorar um certo laxismo e negligência por parte da própria instituição (Abrantes, 2003; Lopes, 1997; Meyer, 2008). Este caráter demissonário da escola não

74 Tem-se que ponderar a possibilidade de muitas dessas histórias se referirem ao próprio sujeito que as conta, ainda

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pode ser perspetivado em termos profundamente intencionais ou maquiavélicos, mas também em termos estruturais e sistemáticos relacionados com dificuldades inerentes à própria escola como o facto de não ter meios ou know-how para lidar com situações que de si já só complicadas (Meyer, 2008; Rosen, Scott & DeOrnellas, 2017). Um dos aspetos a salientar é a ausência total de política escolar (no duplo sentido de “politics” e “policies”) em relação ao bullying, de acordo com os/as estudantes. Não existe a integração da prevenção e/ou intervenção da violência e do bullying nas atividades escolares e no currículo tal como foi evidenciado noutros estudos (Bibou-Nakou et al., 2012).

A ampla existência e prevalência de fenómenos de bullying (ou violência) já nos leva a interrogar até que ponto se pode falar não só de uma “cultura de bullying” (Dupper, 2013) na escola, adensada pela violência simbólica (Bourdieu, 1999), mas de uma cultura de violência onde os comportamentos se interalimentam (Žižek, 2009). Desde as suas formulações iniciais que as políticas antibullying tem-se concentrado na desmistificação de que o bullying seria um “ritual de passagem” já que essa noção parece encerrar a ideia fatalista da sua inevitabilidade e consequente inação (Dupper, 2013; Minton, 2016). Mas simultaneamente, tem que se estar preparado/a para a possibilidade real que o bullying seja estrutural à natureza humana e às relações de poder que a partir dela emana, sendo parte constitutiva da natureza cruel da humanidade. Esta é aliás a tese fundamental de Arendt com a “banalização do mal”: a ideia de que qualquer um de nós se não se autovigiar, incorre no risco de cometer atrocidades.

Isto não é dizer que nada deva ser feito, pelo contrário: é precisamente o reconhecimento de que o bullying é um problema endémico e estrutural que deve sempre levar a mecanismos de o prevenir e/ou combater. Mas também é bom não esquecer que o bullying se inscreve dentro da própria cultura humana, que todos/as nós, de um modo ou de outro, direta ou indiretamente, acabamos por fazer bullying sendo uma roda de engrenagem numa alavanca de violências. Como refere Cheri Joe Pascoe (2013), vivemos numa “sociedade de bullies”. Nesse sentido, o bullying deixa de ser apenas um ato isolado que diz respeito a grupos particulares e passa a comportar um questionamento mais amplo, político até, de relação com o Outro. É nesse sentido que, mais do que o descrever ou criar mecanismos isolados de intervenção, as respostas que se dá ao bullying dependem também, não só, mas sobretudo, das respostas latas que damos às relações entre as pessoas e aos modos de gerir a diversidade. O mesmo é dizer que se quisermos acabar com o bullying, devemos começar não só, mas sobretudo por nós próprios/as, assim como pela transformação ética do contexto em questão, neste caso, a escola.

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4.2.1. Interrogando o bullying homofóbico: o papel da linguagem e a naturalização do fag