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Capítulo 1. Da opressão aos direitos, contextualizando cidadanias: breves apontamentos sobre os modos de conceptualizar a diversidade de género e sexual ao longo da história

1.1.6. Orientação sexual

A “orientação sexual” refere-se à atração sexual genérica por pessoas do mesmo sexo biológico, podendo envolver ou não uma dimensão afetiva e/ou relacional. É uma atração intrínseca e involuntária que genericamente envolve o desejo erótico, sendo também relativamente padronizada e estruturada, o que permite distingui-la de qualquer desejo sexual aleatório, mesmo no caso da bissexualidade. Quando é exclusivamente para um sexo diferente, diz-se “heterossexual”; quando é exclusivamente para o mesmo sexo, diz-se “homossexual”; quando é

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ambíguo face ao sexo (e, portanto, a questão do “exclusivamente” deixa de ter relevância), diz-se “bissexual” (Carneiro, 2009; Kinsey, Pomeroy & Martin, 1972; Menezes, 1990; Oliveira, 2010)21.

A orientação sexual, enquanto termo, é relativamente recente (Coleman, 1988) e aparece na literatura como uma alternativa a outros entre os quais “tendência sexual”, “inclinação sexual”, “preferência sexual” ou “opção sexual”, estes dois últimos evitados; o primeiro, geralmente usado para se referir a outros aspetos da atração relacionados com gostos ou fantasias, e o segundo, por sugerir uma noção de “escolha linear” que se confunde com a dimensão moral do comportamento, já que a orientação sexual pode ser descrita enquanto desejo mental, independentemente dos valores morais atribuídos às práticas.

Nuns contextos, mais do que noutros, tende a existir uma grande controvérsia sobre a “origem” da orientação sexual – que, na verdade, curiosamente, só se coloca enquanto problemática quando se trata da “orientação homossexual” (ou não-heterossexual), dado que a heterossexualidade enquanto tal nunca precisou de ser explicada (Katz, 2007). Ora, é a partir do século XVIII que se começaram a verificar as primeiras tentativas de explicação da homossexualidade, adquirindo uma certa sistemacidade a partir do século XIX com a inclusão da homossexualidade como um “distúrbio” no discurso científico (Moita, 2001; Nogueira & Oliveira, 2010)

As tentativas de explicação são inúmeras e dão azo a um conjunto de teorias, linhas de investigação e estudos empíricos – que aliás Gabriela Moita, na sua tese de doutoramento, descreve com bastante minúcia (cf. Moita, 2001) –, mas geralmente tende-se a dividir entre “inatas” (relativas à “biologia”) e “adquiridas” (relativas à “cultura”) (Carneiro, 2009; Naphy, 2006) – ou então a um outro qualquer tipo de tentativa de injunção entre as duas (e.g., a psicanálise, a teoria do “exotic becomes erotic”, etc.). Até hoje não existe consenso sendo que a posição da Associação de Psicologia Norte-Americana (APA) refere que a orientação sexual é o resultado de uma interação profundamente complexa de vários fatores (biológicos, culturais, familiares, etc.) (cf. APA, 2008; 2009b).

Existem vários problemas endémicos nesse debate. Em primeiro lugar, tende-se a “binarizar” quer “hetero” e “homossexualidade” – como se não houvesse possibilidades bissexuais

21 Existem ainda pessoas que se intitulam como “assexuais” alegando que tal seria uma “orientação sexual”. A

“assexualidade” seria então uma ausência ou, pelo menos reduzido, interesse por atividades sexuais, distinguindo-se de certas escolhas comportamentais (e.g., abstinência ou celibato) na medida em que se trata de um processo involuntário. O debate reside no facto se se deve incluir a “assexualidade” como uma “orientação sexual” nos termos em que se define orientação sexual (atração consoante o sexo biológico). Ora, se a questão que se coloca é no reduzido interesse ou intensidade pelas atividades sexuais, não só convém explicitar que pessoas hetero/homo/bis podem ter esse reduzido interesse nunca deixando de identificar como tal, assim como pessoas assexuais pode não deixar de ter uma orientação sexual desse tipo (hetero/homo/bi) já que, na verdade, podem responder fisiologicamente a estímulos sexuais e, por isso, significa que devem ter um sexo como alvo libidinal.

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– quer “natureza” e “cultura” – como se não houvesse diferentes modos de interação entre cada um dos dois polos. Menospreza-se assim intersubjetividades individuais dos processos de vivência e experimentação da sexualidade, inclusive a constatação de uma certa aleatoriedade dos processos de constituição psicossocial do desejo. Em segundo lugar, a atribuição da origem a cada uma destas dimensões (“natureza” ou “cultura”) não está desvinculada, desde logo, de valores pré-atribuídos à homo e à heterossexualidade, tendo necessariamente implicações próprias nos modos de a des/legitimar. Por exemplo, grupos conservadores tendem a atribuir o estatuto de antinatura à homossexualidade com base numa premissa de que todos/as seríamos heterossexuais à nascença, mas a cultura humana, perversa e imoral, desvirtuaria essa sacrossanta “essência da natureza”. A homossexualidade seria então algo que é preciso invisibilizar e/ou destruir, sob pena de se desvirtuar essa heterossexualidade “original”, restando- lhes explicar se a heterossexualidade é, de facto, “natural” ou (e isto é muito importante) se é plástica e, paradoxalmente, impositiva, como deixam a entender em discurso, ou até mesmo, a avaliar pela sua colocação como “regra” ou “modelo”, fruto de uma engenharia social ou parte de uma ideologia eugenista a impor desde a nascença – o que contradiz, desde logo, a sua alegada “naturalidade” (cf. Rubin, 1975; 1984; 2011).

Por contraposição, grupos ativistas LGBT tendem a defender a ideia da homossexualidade como “biológica”, na medida em que o desejo não parece resultar de uma educação (é difícil acreditar que, mesmo numa sociedade como a nossa, onde a visibilidade LGBT é maior, alguém “ensina” outra pessoa a ser homossexual), e como ninguém escolhe sentir-se atraído/a por pessoas do mesmo sexo, o homossexual acaba por ser moralmente desresponsabilizado: ou seja, havendo uma razão biológica – muitas vezes usa-se até uma comparação com o comportamento homossexual observado em espécies animais – o ónus da “culpa” deixa de estar no indivíduo. Em última consequência, a “natureza” (ou Deus, como metonímia dessa mesma natureza) “quis” a homossexualidade. Mas também é possível ouvir grupos conservadores a atacarem a homossexualidade com base na premissa biológica: a homossexualidade seria o resultado de uma má formação fetal, um “erro” ou uma “disfunção genética”, e os homossexuais membros de uma casta “inferior” na hierarquia da evolução no topo da qual estaria uma “heterossexualidade perfeita” geneticamente superior.

Finalmente, também existem outros grupos LGBT que têm questionado as noções naturalistas sobre a sexualidade (e.g., perspetivas mais construtivistas, teoria queer) vendo, inclusive, nesta noção de “escolha” uma potencialidade de enunciação e emancipação políticas, muitas vezes em consonância com os contextos democráticos. Em suma, como explica Jagose:

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“É muitas vezes assumido que entendimentos essencialistas da homossexualidade são conservadores, se não reacionários, nas suas consequências, enquanto que entendimentos construtivistas da homossexualidade se prestam a estratégias progressistas ou radicais. Contudo, é mais correto dizer que a natureza da intervenção política não é necessariamente determinada pela assumpção de ambas as posições. A aclamação essencialista de que pessoas nascem homossexuais tem sido usada em tentativas antihomofóbicas para assegurar reconhecimento baseado em direitos civis para homossexuais; por outro lado, a visão construtivista que a homossexualidade é, de um modo ou outro, adquirida tem estado alinhada com tentativas homofóbicas que sugerem que as orientações homossexuais podem e devem ser corrigidas. Combinações das duas posições são muitas vezes empregues simultaneamente por ambos os grupos, homofóbicos e antihomofóbicos.” (2005: 09).

É ainda importante realçar o caráter ideológico da formulação da própria questão em que se interroga a “origem da homossexualidade”, e nunca a “origem da heterossexualidade”. Como refere Naphy (2006), se perguntássemos aos/às cientistas a origem da orientação heterossexual, eles/as próprios não saberiam dizer com exatidão22. É por isso que, por mais empolgante e

intrigante que esse debate sobre “a origem da homossexualidade” possa parecer, o que deve estar em causa não deve ser a procura da “origem da homossexualidade”, já que, seja ela qual for, grupos “contra” e “a favor” usarão argumentos que lhes sejam convenientes. O que deve estar em causa é inevitabilidade de que o mundo da vida é feito de pessoas com diferentes orientações, identidades e comportamentos e a questão que se deve colocar é de ordem pragmática ou, se se quiser, política. Com inspiração num famoso livro de Alain Touraine (1998), pode-se perguntar: como é que, sendo inevitavelmente diferentes, as pessoas se relacionam entre si?

Ainda assim, muito embora não exista uma explicação linear sobre o assunto, não se pode deixar de clarificar que há hoje um certo consenso de que:

i) a preferência estruturada por um determinado sexo emerge e/ou se torna mais definida com a entrada na puberdade em processos mais ou menos graduais (Aboim, 2010; Coleman, 1988; Menezes, 1990). Segundo Sigmund Freud (1981), as crianças têm uma “sexualidade polimórfica” que, tendo os seus próprios dinamismos, ainda não é suficientemente clara quanto à preferência por um sexo; ii) exceção feita a sugestões simbólicas, não existe uma forma cientificamente objetiva de identificar a orientação sexual de alguém. A única forma mais viável e

22 A esse propósito não se pode deixar de mencionar o questionário irónico criado por Martin Rochlin em 1977 sobre orientação sexual que continha perguntas como “o que causou a tua heterossexualidade?”, “quando é que decidiste ser heterossexual?” etc.

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fidedigna é a partir da “autodescrição” dos sujeitos sobre os seus próprios desejos e, portanto, em última análise, só o próprio sujeito pode dizer o que sente e o que é;

iii) a orientação sexual não é nem modificável nem qualquer terapia de reorientação sexual é apoiada hoje pela maior parte dos especialistas credenciados/as de saúde mental (cf. APA, 2008). Não existe nenhum estudo credível em que se demonstre a modificação do desejo, e ainda que se argumente que o comportamento sexual seja modificável, não se pode deixar de lidar com a questão ética da legitimidade desta (putativa) “mudança”.

Apesar de se sugerir na Psicologia do Desenvolvimento um certo script de vivência da sexualidade – nos scripts sexuais da juventude, geralmente o/a jovem homossexual “descobre” ter uma “orientação sexual”; assume uma “identidade sexual” (para si e/ou para os outros) e/ou tem relações afetivas e/ou sexuais – isto é, “comportamento sexual” (cf., por exemplo, Cass, 1979) – pode não ocorrer tal linearidade: a orientação sexual pode diferir da “identidade sexual”, i.e., os indivíduos podem nunca assumir publicamente a sua orientação ou simular uma outra, e/ou do “comportamento”, i.e., indivíduos podem ter comportamentos sexuais opostos à sua “real” orientação, consensuais ou não, por diversos motivos, ou não ter comportamentos de todo, já que, como explica Oliveira, “apesar de os indivíduos terem uma determinada orientação sexual, não quer dizer que a consumem em actos” (Oliveira, 2010: 19).

Por outro lado, importa esclarecer que a orientação sexual é uma dimensão primária da sexualidade que marca a pessoa a partir de qualquer interpelação a qualquer uma das suas dimensões constituintes (identidade ou comportamento), i.e., não se pode simplesmente referir que os comportamentos homossexuais são “pecado” sem ter um determinado tipo de impacto na pessoa homo, hetero ou bissexual, independentemente desta os “ter” ou não, o que tem implicações especialmente significativas em contextos de educação sexual. Numa perspetiva intersecional, indivíduos homossexuais, heterossexuais ou bissexuais podem ser homens ou mulheres, terem as suas identidades de género e nacionais, pertencerem a diferentes etnias ou estratos sociais, serem pais ou mães de crianças biológicas e/ou adotadas, terem diferentes nacionalidades, gostos, preferências, capacidades mentais e/ou físicas ou caraterísticas da personalidade, aspetos estáticos ou variáveis ao longo do tempo, caraterísticas semelhantes ou muito diferentes entre si (Nogueira & Oliveira, 2010). Podendo cada um/a encará-la de modos distintos, a sua orientação sexual, porém, é um denominador comum a todos/as.

29 1.1.7. Identidade sexual

Nas três últimas décadas, uma boa parte da literatura académica LGBT tem-se debruçado exaustivamente sobre a noção de “identidade homossexual”, problematização essa que adquire o seu auge com a popularidade da teoria queer a partir da década de 90 e cujo cerne da interpelação se dirige ao essencialismo contido na noção de identidade, sobretudo em termos de representatividade política (Jagose, 2005). Desde então, um conjunto variado de perspetivas traz à discussão aspetos tão amplos como a separação concetual entre “desejo/ato homossexual” e “identidade homossexual” até à interseção entre a “identidade homossexual” com outros marcadores identitários como género, etnia, classe social, etc., a partir dos contributos da teoria da interseccionalidade23. O que se entende por “identidade homossexual” aparece numa grande

amálgama de reinterpretações, muitas vezes descoincidentes – ou, pelo menos, diferentes entre si –, gerando uma grande confusão teórica (Carneiro, 2009).

Em termos discursivos, pode-se dizer que a categoria de “homossexual” é atribuída para designar uma “orientação sexual”, i.e., “homossexual” é a pessoa que “tem” uma “orientação homossexual”. Uma das questões iniciais com a qual qualquer estudo sobre (homos)sexualidade tem que lidar é a tensão dicotómica entre “perspetivas essencialistas” vs. “perspetivas construtivistas” (Jagose, 2005; Naphy, 2006; Oliveira, 2010; Weeks, 2016). Para as perspetivas essencialistas, a “identidade homossexual” é uma parte intrínseca da sexualidade; “essas identidades são «verdadeiras» e inerentes (ou essenciais) aos indivíduos e à condição humana” (Naphy, 2006: 13). Para os construtivistas, as “identidades sexuais” são categorias que a sociedade e a cultura inventa para categorizar (dar nome) e qualificar a sexualidade sempre mais complexa do que a sua colocação em categorias. Como explica Naphy, “(…) «homossexual» é alguém que entende que é «homossexual» porque ela/ele vive numa sociedade que classifica o seu comportamento dessa maneira. Em culturas onde esses rótulos não existissem, não existiriam também quaisquer fronteiras ou categorias inerentes” (idem).

De certo modo, a perspetiva essencialista interliga-se mais com a noção de um desejo prévio biontológico (orientação sexual), dando azo a um grupo minoritário de pessoas com essa orientação – aquilo que Sedgwick (1990) chama de “visão minoritária”. A perspetiva construtivista interliga-se mais com uma certa volatilidade dos desejos e dos atos sendo, como refere Sedgwick

23 A teoria queer emerge num contexto onde “homens homossexuais” são constituídos como um “grupo de risco”

dentro das políticas públicas do HIV-sida. Enfatizar a orientação (que existe sem comportamento) e/ou o comportamento (que não necessita de uma identificação homossexual) representaria uma vantagem contra essa própria constituição estereotipada dos homossexuais como “grupo de risco”.

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(1990), uma visão mais “universalista”. Apesar de ontologicamente diferentes, e de derivarem de um processo histórico gradual de entendimento sobre a identidade, não são necessariamente opostas, nem se anulam, podendo coexistir e ser teoricamente invocadas em simultâneo. Como salienta Jagose (2005), e como vimos atrás, ambas têm as suas implicações negativas e positivas na discussão sobre homossexualidade, sendo utilizadas intermitentemente, quer por ideologias conservadoras, quer por ideologias progressistas24.

Em primeiro lugar, para facilitar, desafia-se, desde logo, uma certa ideia proveniente de certas reinterpretações da teoria queer, de que as pessoas são tábula rasa face ao objeto de desejo. Por mais incompatível que a noção da existência de um desejo sexualmente estruturado e exclusivo por um determinado sexo possa parecer, a verdade é que ela faz sentido para milhares de pessoas que se identificam como “lésbicas” e “gays”, e até mesmo as pessoas bissexuais, cujos desejos poderiam contestar um binarismo “homo/hetero”, não deixam, muitas vezes, de deixar bem claro que este é também coerente e estruturado, dando azo a uma identidade. É, nesse sentido, considerando-se a orientação sexual como um elemento prévio e primário, que se esclarece que a noção de “identidade sexual” se refere a uma identidade baseada na orientação sexual, não se referindo propriamente a qualquer aspeto do comportamento sexual (e.g., “ser” polígamo, etc.), mas sim exclusivamente à “orientação sexual” que lhe pré-existe. Trata-se aqui de uma dimensão psicológica para descrever a dinâmica do desejo (Carneiro & Menezes, 2006; Carneiro, 2009). Neste aspeto, a Psicologia tem sido exímia no estudo do desenvolvimento da identidade aos mais variados níveis, desde da “identidade social” com Erickson à “identidade sexual” com Freud (Menezes, 1990).

24 A “perspetiva essencialista” salienta essa relação intersubjetiva entre o indivíduo e a sua orientação sexual. Não há nada de errado que o rótulo de “homossexual” ou “heterossexual” seja usado como um mero descritivo para uma orientação sexual que os sujeitos de orientações sexuais fixas sabem ser exclusivas, perenes e estáveis no tempo e que cada um/a devote a essa identidade uma força, mais ou menos, psicoestruturante (Carneiro & Menezes, 2006; Carneiro, 2009). Porém, levado ao extremo, incorre, de facto, num certo perigo de negligenciar os processos sociais de construção da identidade ou então se transformar em formas mais extremistas de relação com o mundo, constituindo a base de posições radicalizadas e preconceituosas. Em última instância, a “identidade homossexual” (hetero ou bi) não existe, sendo uma categoria inventada por uma sociedade que pré-existe aos sujeitos para catalogar e descrever os seus desejos, havendo todo um conjunto de problemáticas na mobilização discursiva da categoria que se relaciona com a forma como o individuo se conceptualiza, a forma como a sociedade conceptualiza essa categoria e as potenciais discrepâncias e implicações no processo de mobilização identitária (preconceitos, estereótipos, catalogações, etc.). Nesse sentido, a perspetiva construtivista, porque tem uma compreensão mais complexa sobre a identidade, permite dirigir as interpelações da opressão para contextos mais amplos. O problema é que ela pode incorrer no risco de encarar a noção de “identidade homossexual” como um mero subterfúgio, como se não fosse importante para os sujeitos. No limite, é como se ninguém pudesse dizer mais “eu sou homossexual” para simplesmente descrever a sistematicidade do seu desejo sem uma contraposição cínica: “isso é apenas um rótulo!”, quando até mesmo a bissexualidade – que, à partida, poderia ser representada como mais difusa – apresenta um certo grau de estruturação reconhecido, inclusive, pelo próprio ativismo bissexual. Levada ao extremo, a perspetiva construtivista/queer pode ser despolitizadora já que se a identidade é o eixo da representação política e se, em certo sentido, não pode mais ser enunciada (ou, pelo menos, é problemático), dinamita-se a ação política. Ora, como referia Sedgwick (1990), nem que seja pela exposição à violência e objetificação homofóbica, a enunciação pública de uma “identidade homossexual” já merece alguma credibilidade e respeito.

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Existem ainda questões específicas ligadas à assunção ou não da identidade sexual e o modo ela se inscreve em dinâmicas de categorização e reconhecimento social. Numa das “bíblias” da teoria queer, “Epistemologia do Armário”, Eve Kosofsky Sedgwick (1990) explica como a assunção ou não da homossexualidade se inscreve dentro de complexas relações de poder (ou não-poder), que se sustentam no saber (ou não-saber) sobre a identidade sexual de alguém. É, por assim, dizer, uma dimensão social da identidade que, no caso da identidade sexual, adquire uma problemática própria na medida em que a orientação sexual, ao contrário da cor de pele ou do sexo, não é (pelo menos, tão) autoevidente.

Por fim, existe uma dimensão política sobre a identidade relacionada com os modelos políticos de representatividade, i.e., a “política da identidade” (cf. Carneiro, 2009; Young, 1990). Ora, quando se fala de “identidade (baseada na orientação) sexual” fala-se estas três dimensões: psicológica, social e política. Adiantando-se posicionamentos, partilha-se de uma noção de “identidade” que, por um lado, transcende a lógica essencialista (i.e., reconhece-se que a noção de “identidade” não existe propriamente, mas é sempre uma resolução possível entre a forma como os próprios sujeitos se posicionam face aos seus próprios desejos e as categorias que lhes pré-existem e foram inventadas socialmente ou discursivamente para catalogar esses mesmos desejos, coincidindo ou não); por outro lado, não se pode esquecer o quanto ela é importante, quer por razões de estruturação psicológica ou até meramente descritivas para dar conta da nossa orientação sexual (aliás, amplamente reconhecidas pelo senso comum), quer por razões pragmáticas de representação política (Carneiro, 2009).

Em suma: “identidade sexual” refere-se à forma como o sujeito ora se posiciona intimamente ou se enuncia publicamente face à sua orientação sexual (autoidentificação), seja do ponto de vista “pessoal” ou “privado” (isto é, para si, em diferentes graus e intensidades), seja do ponto de vista “social” ou “público” (isto é, para os outros, também em diferentes graus e intensidades, e para diferentes indivíduos ou grupos), ora é reconhecido quando publicitado e/ou lhe é atribuído um determinado rótulo (heteroatribuição), podendo corresponder ou não à sua “real” orientação sexual.