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A DIMENSÃO ESPACIAL E A PROCURA DE UMA ORDEM SUBJACENTE

As suas preocupações metodológicas refletidas desde os seus primeiros textos geográficos foram-se afirmando e depurando com o passar do tempo, consolidando a dedicação profissional de Ritter à geografia. Enquanto elaborava os 21 volumes de sua obra magna, dedicou também atenção a estas questões nos diversos discursos e comunicações que fez na Academia de Ciências de Berlim, referentes aos fundamentos da geografia científica e que foram dedicados a: A posição geográfica e a extensão dos continentes (14 de dezembro de 1826); Observações sobre os meios que permitem ilustrar as relações espaciais pela forma e número no caso da representação gráfica (17 de janeiro de 1828); O fator histórico na geografia como ciência (10 de janeiro de 1833); A terra como fator de unidade entre a natureza e a história nos produtos dos três reinos da natureza, ou sobre a respeito de uma ciência dos produtos da natureza em geografia (14 de abril de 1836); Sobre a organização da superfície do globo e o seu papel no decorrer da história (1 de abril de 1850)219.

Relendo hoje estes discursos de Ritter, podem ser encontradas muitas idéias que surpreendem por sua modernidade. Destacaremos aqui duas delas. Primeiro: sua valorização da dimensão espacial e geométrica da ciência geográfica; segundo a preocupação pela procura de uma ordem e de leis gerais.

A valorização da dimensão espacial e geométrica da geografia, assim como as relações numéricas entre as unidades geográficas têm a ver, por um lado, com o platonismo do autor, e por outro, com seu interesse pela cartografia. Não há de se esquecer, que Ritter realizou numerosos mapas por razões pedagógicas e como ilustração de suas obras geográficas.

A definição da geografia como ciência do espaço aparece explicitamente formulada: “as ciências geográficas [escreve] tratam essencialmente do espaço, à medida que trabalha com espaços terrestres (seja qual seja o reino da natureza a que pertencem e quaisquer que sejam suas formas); dedicam-se a descrever como as localidades se distribuem umas em relação as outras no espaço e os vínculos que mantêm, tanto nos aspectos mais particulares como nas manifestações mais gerais”220. Esta é uma caracterização escrita em 1833, e que certamente nem o mais exigente geógrafo quantitativo duvidaria em aceitar.

Ritter tinha uma visão finalista do desenvolvimento científico e possuía uma clara consciência da originalidade de sua obra. Igualmente aos outros cientistas de sua época (Humboldt, Lyell) pensava que havia chegado o momento de dar um fundamento

219 Estes discursos foram em seguida reproduzidos em Einleitung..., 1852, op cit. nota 89. Trad. francesa 1974, p. 103.194. 220 RITTER (1833), Ed. 1974, p. 132.

científico, definitivo à ciência que praticava, revelando o verdadeiro objeto da mesma, o qual não havia aparecido até então pela ação de obstáculos diversos. Ritter pensa que: “em virtude da sua natureza específica, a geografia científica somente poderia nascer da ação de considerar diferentes fatos espaciais típicos isolados ou em relação com os fatos relativos aos períodos, também isolados, em que viveram os personagens históricos [...]. Desenvolver-se-ia depois até que, descobrindo seu próprio objeto, o globo terrestre em seu conjunto e suas partes, aprende a descobrir sua verdadeira natureza. Então, da descrição poderia passar a lei e chegar a ser, mais que uma simples enumeração, uma ciência das relações terrestres espaciais [Verhältnisslehre der irdischerfullten Räume), uma cadeia de causalidade dos fenômenos terrestres locais e gerais”221.

A tarefa desta ciência poderia aparecer já em seu tempo de uma maneira clara e consistiria “em estudar suas relações globais, ou seja, observar os espaços, determinar seu conteúdo e a relação de um a outro”. O objeto da geografia científica aparece definido assim em termos que refletem o impacto do platonismo ritteriano: “a geografia científica deve interessar-se, primeiro nas proporções aritméticas dos espaços, ou seja, pela determinação de suas somas, distâncias e magnitudes; depois por suas proporções geométricas, ou seja, pela definição de suas figuras, suas formas e suas posições”222.

O problema do caráter específico da geografia, em relação a outras ciências, é tratado também por Ritter, que pensa que a geografia se interessa pelo conteúdo dos espaços terrestres “não do ponto de vista da estrutura, da forma e das forças inerentes ao material em si ou sob o ângulo das leis naturais às quais obedece”. Este é o objeto dos diferentes ramos das ciências naturais. A geografia, ao contrário, “se interessará, por isso sob a ótica da relação do desenvolvimento diferenciado, da esfera de extensão e das leis de expansão destes espaços ao redor da Terra, e que resultam das combinações terrestres, de suas posições, suas formas, suas dimensões e suas distâncias. A todos esses fenômenos, as outras ciências só se referem acidentalmente.”223

Uma segunda idéia, digna de se destacar é a preocupação de Ritter em mostrar a existência de uma ordem sob a aparente desordem em que se apresentam os fenômenos na superfície terrestre, assim como seu esforço para chegar às leis gerais dessa ordem. Em particular, no discurso, pronunciado em 1o de abril de 1850 a respeito da A organização do espaço na superfície do globo e seu papel no decorrer da história, Ritter trata explicitamente esta questão referindo-se à aparente desordem dos fenômenos:

“O que nos choca ao observar um globo terrestre é a arbitrariedade que preside a distribuição das extensões de água e de terra. Nada de espaços matemáticos, nenhuma série de linhas retas ou de pontos [...] Nenhuma simetria no conjunto arquitetônico desse

221 RITTER, 1974, p. 135.

222 RITTER, Ed. 1974, p. 135. Em 1850 escrevia sobre a possibilidade de usar em geografia, “em acepções muito próximas e intercambiáveis expressões tais como figuras geométricas, romboedros, triângulos, ovais, etc” (Ed. 1974, p. 169-170).

223 RITTER, Ed. 1974, p. 135.

Todo terrestre [...]. Sim, esse Todo terrestre perfeitamente assimétrico, que não obedece a nenhuma regra e difícil de apreender como um conjunto, deixa-nos uma impressão estranha e obriga-nos a utilizar diversos modos de classificação para apagar a idéia de caos que dele se desprende”.

Esta aparente desordem explica, segundo Ritter, que fora difícil deduzir as leis gerais e que em lugar disso os autores haviam-se contentado a realização de descrições parciais, limitando-se mais às partes constitutivas que à aparência global. Assim, “havendo se contentado até agora em descrever e classificar sumariamente as diferentes partes do Todo, a geografia não pode, pois, tratar das relações e das leis gerais, as únicas que podem fazer dela uma ciência e dar-lhe sua unidade”.

A utilização de um modelo da superfície terrestre, como é definitivamente o globo terrestre, pôde facilitar algumas deduções gerais sobre as relações espaciais, ainda que, claramente insatisfatórias:

“Ainda que a Terra como planeta seja muito diferente das representações em escala reduzida que conhecemos dela, e que somente nos dão uma visão simbólica de seu modelado, temos que recorrer a essas miniaturizações artificiais do globo terrestre para criar uma linguagem abstrata que nos permita falar dele como um Todo. E assim, de fato, não nos inspirando diretamente na realidade terrestre, que pudemos elaborar a terminologia das relações espaciais. No entanto, como a rede matemática projetada sobre a Terra a partir da abóbada celeste converteu-se assim no elemento determinante, esta terminologia permaneceu até agora incompleta e não permite hoje uma aproximação científica a um conjunto estruturado, considerado em suas extensões horizontais e verticais ou em suas funções”224.

Ritter considera que a ciência permitiu descobrir a simetria e a ordem existente sob a aparente desordem da natureza: “A assimetria e a aparência informe das obras da natureza desaparecem com um exame em profundidade”. Em razão disto se pergunta se o homem seria o único ser vivo que viveria em um meio modelado pelas forças cegas e desorganizadas, e se teria que admitir que “contrariamente a todas as criaturas que abriga, somente a Terra estaria desprovida desta força criadora que engendra uma forte estrutura interna”. Pensa que não tem se deve confundir aparência e essência, as impressões de uma coisa e a realidade dela ou de um fenômeno, e conclui:

“Quanto mais avançamos no conhecimento da distribuição espacial na superfície do globo terrestre e quanto mais nos interessamos para além de sua aparente desordem, na relação interna de suas partes, mais simetria e harmonia descobrimos e tanto mais as ciências naturais e a história podem nos ajudar a compreender a evolução das relações espaciais. Se através da determinação astronômica dos lugares, a geodésia, a hidrografia, a geologia, a meteorologia e a física, poderiam alcançar até agora grandes progressos em matéria de ordem espacial, resta ainda muito por fazer e podemos esperar chegar a isto fazendo intervir, nos estudos das relações espaciais, nossos

224 RITTER, Ed. 1974. p. 166.

conhecimentos relativos à história dos homens e a distribuição local dos produtos dos três reinos da natureza”225.

Ritter ressalta em seguida, algumas características gerais do globo: a divisão das águas e terras, destacando a forte concentração das massas continentais no hemisfério Norte e a forma afilada dos continentes no hemisfério Sul; a oposição entre um hemisfério marítimo terrestre do noroeste e um hemisfério oceânico do sudoeste, e como “a ponta sul da Inglaterra constitui o centro do universo terrestre”, o que explica que “a Inglaterra tenha estado todo o tempo predisposta ao domínio dos mares”; a existência de um cinturão vulcânico circumpacífico; a oposição entre as grandes formações continentais e insulares, “que foi, é, e continuará sendo o fundamento sobre o qual se desenvolveu a história da humanidade”; a analogia entre o que ele denomina depressões americanas e australianas. No que se diz respeito à organização do Velho continente, encontra nele “a mesma lei que presidiu a constituição do Todo terrestre”; esta lei é reconhecida “na analogia que apresentam entre si, as alturas, os desníveis e as depressões”; também assinala a existência de um cinturão costeiro, no qual quando existem formações tabulares encontra-se a “confirmação da lei segundo a qual os levantamentos do terreno alcançam sua máxima amplitude no sudeste das vertentes abruptas que descem em direção ao grande cinturão costeiro”. Esta lei, “permite atribuir a fenômenos semelhantes as mesmas causas e os mesmos efeitos”226.

Estas seriam as cinco ou seis disposições gerais mais destacadas que se podem identificar na superfície terrestre. A partir daí, Ritter conclui triunfalmente:

“Bastava, pois, tratar de descobrir sob a desordem aparente os elementos de harmonia e de uma simetria superior. No entanto, é verdade que, pelo fato de o olho não estar suficientemente exercitado, uma primeira apreciação das coisas, nos deixa incapacitados de pressentir suas leis. É precisamente porque está presa numa rede extraordinariamente complexa, onde a natureza é muito dinâmica; sendo ela constituída por individualidades regionais muito numerosas para que possa ser compreendida ao primeiro golpe de vista”227.

A modernidade de muitas destas idéias é evidente. Ainda que chegasse a elas a partir de estímulos diferentes, poder-se-ia afirmar que esta preocupação com a geometrização e a procura de uma ordem espacial não estava muito longe dos esforços que realizava, quase ao mesmo tempo, seu contemporâneo, o economista e fazendeiro Johan Heinrich von Thünen (1783 – 1850), e que refletiram em sua obra magna Der isolierte Staat (3 vol.: vol. I, 1826; vol. II, 1850-1863; vol. III, 1863). Ainda também, é necessário que, reconhecer que em outros aspectos há uma grande diferença entre o refinado aparato matemático das teorizações de von Thünen sobre a produtividade e a renda de terra e as considerações relativamente elementares de Ritter sobre a ordem

225 RITTER, Ed. 1974, p. 167-168. 226 RITTER, Ed. 1974, p. 172-174.

227 RITTER, Ed. 1974, p. 176. Idéias semelhantes na p. 185.

espacial. O caráter e os objetivos de uma obra e outra explicam abundantemente as diferenças neste sentido, e também nos tornam conscientes da finalidade essencialmente pedagógica da obra de Ritter e, em definitivo, da geografia da época. E Esta constatação tem grande importância, porque precisamente foi essa função da ciência geográfica que garantiu sua continuidade, justamente num momento em que a especialização científica havia feito aparecer diversas disciplinas que se ocupavam de boa parte do que antes constituía o objeto da geografia.

CAPÍTULO III

Tradução de: Lisandro Pezzi, Jorge Guerra Villalobos, Vera Beatriz Köhler A INSTITUCIONALIZAÇÃO UNIVERSITÁRIA DA GEOGRAFIA ALEMÃ: UM MODELO

PARA A EUROPA