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GEÓGRAFOS UNIVERSITÁRIOS FRENTE A GEÓLOGOS E HISTORIADORES

No ensino superior francês, o período posterior a 1830 conheceu um estancamento científico, depois de algumas decádas nas quais as reformas da época revolucionária e napoleônica haviam dado à ciência deste país a primazia indiscutível na Europa. A ciência perdeu atrativos ante a existência de outras oportunidades na política, na indústria, nos negócios, na filosofia social ou na literatura. A burocratização e centralização da docência e das instituições científicas e, como conseqüência disso, a

331 Cit. por TORRES CAMPOS, 1896, pág. 226.

inflexibilidade, frearam as possibilidades de adaptação às novas necessidades da tecnologia naqueles anos.332

Depois do impacto da derrota que acabou com o Segundo Império, as reformas empreendidas tenderam a imitar o modelo alemão de ensino superior. Por iniciativa do diretor da Educação Superior, Alfred Dumont (de 1879 a 1884), uma comissão presidida pelo historiador Ernest Lavisse e pelo químico Berthelot, iniciaram um conjunto de reformas da universidade francesa, as quais em seguida seriam continuadas pelo sucessor de Dumont, Louis Liard, entre 1884 e 1902. As universidades recuperaram sua autonomia, foram criados novos cursos e ampliado o número de cargos para professores universitários, que passaram de 503 em 1884 a 1.048 em 1902, ao mesmo tempo em que suas funções de docência completavam-se com as de pesquisa. O número de estudantes universitários chegou a 30.000 no princípio do século XX.333

A criação de novas cátedras teve notável influência no desenvolvimento das disciplinas científicas afetadas. Este é um fato que se repete no século XIX, já que a especialização repercute no crescimento da ciência.334 Entre as cátedras que então foram criadas encontra-se a geografia, que naquele momento conheceu uma fase de desenvolvimento espetacular.

É nesse momento que se produzem as "conversões" e a chegada de universitários procedentes de outras disciplinas à geografia. Paul Claval escreveu que até a década de 1870 "os geógrafos estiveram quase sempre isolados: a geração que tomou posse das cátedras recentemente criadas na Alemanha e na França não recebeu necessariamente uma formação geográfica. Compreende um grande número de indivíduos que chegaram

por acaso à geografia".335

Ainda que não esteja de acordo com a expressão "por acaso", já que dificilmente se pode aceitá-la na base de um movimento social como é o caso do aparecimento de uma comunidade científica, é evidente que estas palavras dão conta do tardio e surpreendente desenvolvimento da comunidade científica dos geógrafos e suscitam a necessidade de se discutir os fatores que influem em sua constituição.

De uma maneira geral, pode-se dizer que na França a geografia se desenvolveu primeiramente através de historiadores e a partir da História, consolidando-se de forma crescente seu caráter "científico" ou "moderno" com o desenvolvimento da geografia física. Historiadores de profissão, e a maior parte com teses sobre história antiga, foram os homens que iniciaram ou arcaram com a reforma posterior a 1870: Auguste Himly (1823-1906), catedrático de Geografia da Sorbonne desde 1862; Émile Levasseur (1828- 1911), o responsável por levar adiante as reformas;336 L. Drapeyron (1839-1901). Historiadores foram também muitos dos primeiros professores que ascenderam ao

332 BEN DAVID (1971), ed. 1974, págs. 127-129. Veja-se também uma análise do sistema de patronato francês e dos efeitos negativos do sistema de "fazer carreira" sobre a qualidade do trabalho científico em FRANKEL, 1978.

333 BEN DAVID (1971), ed. 1974, págs. 133-134 e GERBORD, 1965. 334 CROSLAND, 1977, PÁG. 104.

335 CLAVAL, 1974, pág. 35, cursivas acrescentadas.

336 Veja-se sobre ele, CLAVAL-NARDY, 1968; CLAVAL, 1974; e o art. de Jean Pierre NARDY, em FREEMAN-PINCHEMEL, 1978, vol. II.

ensino superior: Paul Vidal de La Blache (1845-1918); Bertrand Auerbach (1856-1942), catedrático de geografia da Universidade de Nancy desde 1892;337 Étienne Émile Berlioux (1828-1910), professor de Lyon desde 1874.338

Todos estes historiadores chegaram à geografia através da oportunidade profissional que se lhes ofertava, e do ponto de vista intelectual, atraídos pela idéia da relação dos fatos históricos com o contexto geográfico no qual se desenvolviam. Mas todos eles tentaram promover uma ciência moderna, aprofundando primeiro na topografia e no estudo dos mapas, e em seguida, cada vez mais, em uma geografia física que era considerada "o ramo essencial" da disciplina.

Isto supunha uma mudança importante em relação ao passado imediato. Até as reformas dos anos 1870, os professores universitários de geografia – em particular os da Sorbonne – possuíam, sobretudo, uma formação e uma preocupação histórica. Eram cursos de geografia histórica o que ministravam, e isso os obrigava a olhar o passado para reconstruí-lo e explicar a história antiga, ou para realizar estudos sobre a história dos descobrimentos geográficos.

Provavelmente, este interesse pela história facilitou a recepção das idéias de Ritter. Sua geografia geral comparada havia sido traduzida parcialmente para o francês em 1836, e conhecida também, sem dúvida, em sua versão alemã.339 Em todo o caso, foi nas idéias de Ritter que Himly se apoiou depois de sua conversão à geografia em 1858,340 o que certamente era facilitado por seu conhecimento do alemão pois era de Strassbourg e por seus estudos em Berlim. Tal como foi demonstrado por Vincent Berdoulay, são sobretudo as idéias do geógrafo alemão que se refletem em seus cursos da Sorbonne.341

Himly adotou de Ritter, sobretudo, o método comparativo. Também procede dele sua idéia de que a geografia era uma ciência que "deveria estudar cientificamente as relações entre a Terra e o homem". Apesar de aceitar que o estudo geográfico deveria começar com a Terra em si mesma, Himly não realizou estudos de geografia física, interessando-se somente pelos aspectos históricos da geografia.

No entanto, nos anos de 1870-1880, a geografia física adquire uma importância crescente. Certamente pela associação que vinha-se consolidando ao longo do século XIX entre a geografia física e as ciências da natureza, esse ramo passou a ser considerado por muitos como "a verdadeira geografia".342 Particularmente entre 1880 e 1890 a geografia física era a essência da geografia. Isto sem dúvida, facilitou a incorporação dos naturalistas e geólogos atraídos à docência da geografia pelas

337 Veja-se sobre ele BROC, 1974. 338 BROC, 1975.

339 É necessário não esquecer que um geógrafo como Reclus houvesse assistido pessoalmente os cursos de Ritter em Berlim.

340 Foi por razões de oportunidade profissional que Auguste Himly chegou à geografia. Após uma formação em história medieval, influenciado por Ranke, e depois de trabalhar como paleógrafo na Escola de Chartes, foi nomeado responsável pelo curso de história na Sorbonne, em 1858. Sua dedicação à geografia se ocorreu, segundo V. Berdoulay, "somente devido a uma contingência de sua carreira, quando substituiu Guigniant na Sorbonne, em 1858", com a idade de 35 anos. Foi somente então que ingressou na Sociedade de Geografia de Paris, ainda que nunca tenha ocultado que preferia a história à geografia, sendo, ao que parece, praticamente inexistentes suas relações de amizade com os geógrafos. (Veja-se sobre isto BERDOULAY, em FREEMAN, OUGHTON e PINCHEMEL, 1977, vol. i, pág. 43.)

341 BERDOULAY, em sua tese de doutorado, e em sua biografia de Himly, cit. na nota anterior. Veja-se também o discurso de VIDAL DE LA BLACHE, 1899. 342 Por exemplo, DRAPEYRON em 1881, cit. por BROC, 1974 (c), pág. 557.

oportunidades que se lhes ofereciam, assim como a relação com os geólogos que ministravam a disciplina de "geografia física" nas faculdades de ciências. Geólogos como Albert Lapparent (1839-1908), Emmanuel de Margerie (1862-1953) ou Charles Velain realizaram naqueles anos contribuições importantes neste ramo da disciplina.

A institucionalização e o desenvolvimento da geografia teve um de seus primeiros apoios na difusão do ensino de Topografia. Dele se afirmava no Congresso de Geografia de Paris de 1875 que era "a alma da Geografia", e como escrevia F. Hennequin, "o prefácio da Geografia".

Desde inícios dos anos 1870 existia já ensino de topografia em várias cidades. Assim Frédéric Hennequin era professor de topografia na cidade de Paris, e no congresso de Paris de 1875, adotou como a primeira de suas conclusões que "o estudo da geografia em todos os níveis deve começar pela topografia, e não pela cosmografia", acrescentando de forma categórica: "o professor utilizará o mapa do Estado Maior e o estudo do terreno".343

Propagador desta linha pedagógica foi também, (além do citado Hennequin), Ludovic Drapeyron, que depois do congresso de Paris se converteu em incansável propagandista do método topográfico e da criação de museus geográficos. Nessa linha, em 1876 foi criada a "Sociedade de Topografia de Paris", da qual Drapeyron será seu secretário geral até sua morte em 1901, e cujo objetivo declarado era "a reconstituição progressiva da geografia por meio da topografia".

A Sociedade organizou-se em seis seções que se referiam tanto às ciências naturais como às humanas: 1) Topografia propriamente dita; 2) Geografia; 3) Geografia aplicada ao estudo da história; 4) Geografia industrial e comercial; 5) Estatística; e 6) Geologia botânica e zoologia. Chegou a ter 900 membros em 1881, certamente atraídos tanto pela geografia quanto pelos enfoques positivistas que propunham.

Estudando esta iniciativa, Numa Broc assinalou que "como obra de patriotismo prático a Sociedade de Topografia é inseparável do clima revanchista dos anos de 1880, e perderá sua razão de ser depois de 1900, quando o ensino da geografia havia adquirido certa consistência".344

Desde o final da década de 70, a pressão para a institucionalização da geografia nos centros de ensino superior era muito forte. A necessidade de formar os professores que as reformas pedagógicas dos níveis primários e secundários exigiam era, sem dúvida, o fator decisivo para a gênese e a consolidação deste processo.

A criação das cátedras de geografia foi sentida como uma ameaça por outros cientistas universitários em particular historiadores e geólogos. Por isso o desenvolvimento do processo institucionalizado teve de se realizar com a oposição, mais ou menos aberta, destes grupos acadêmicos.

343 Cit. por BROC, 1974 (c), pág. 554. 344 BROC, 1974 (c), pág. 556.

Dentro desta luta de interesses profissionais, uma batalha importante foi a que tinha como objetivo conseguir que se desse maior atenção à dos conteúdos de geografia nos concursos em "História e Geografia". A estratégia dos geógrafos consistiu em destacar a necessidade de possuir uma formação ampla de caráter "científico" e em particular de topografia, cartografia, leitura de mapas e geografia física e ciências naturais. Nesta linha também, em 1885, Vidal de La Blache conseguiu a introdução de teses de geografia no concurso e em 1886, com a iniciativa de Drapeyron, o Congresso Nacional de Sociétés

Savantes concorda em apoiar o projeto. Mas este, inesperadamente, encontrou a

oposição de Himly, que apoiou os historiadores, considerando desnecessária a criação de um curso de geografia, porque segundo dizia, "o homem é mais interessante que os pedregulhos".345 Himly declarou também explicitamente que "se exagera a importância [da geografia] ao se englobar nela todo tipo de ciências físicas e naturais" e considerava que o ensino da história era "muito mais importante na educação".346 Por estas razões apoiou, em troca, a criação de cátedras de geografia física nas universidades.347

Desde 1886, a atividade de Himly e de grande número de historiadores, entre os quais Lavisse, parece dirigir o ministério à criação de cátedras de geografia física, dividindo a geografia em um ramo humano e outro natural. Insiste-se que a geografia física das faculdades de Letras é uma espécie de introdução à geografia histórica e política, e que, realmente, a verdadeira geografia física deveria ser estudada nas faculdades de Ciências. Em 1886-87 iniciam-se por esta razão, cursos de geografia física em Paris, Nancy e Lille.348 O perigo de uma ruptura e ainda do desaparecimento da geografia era evidente, tanto mais porque nas faculdades de Letras a geografia era ministrada geralmente por professores com formação em História, e como contexto para explicar a evolução dos fatos históricos (geografia da Grécia antiga, do Império romano e do Oriente Próximo). Corria, assim, o perigo de consolidar-se como uma disciplina puramente auxiliar da história.

Ante a ofensiva dos historiadores, os geógrafos negaram-se a aceitar a divisão da geografia e trataram de manter o controle de seu desenvolvimento, obstaculizando as tentativas de criação de ensinos independentes nas Faculdades de Ciências. Sua estratégia dirigia-se à conversão das disciplinas científicas em ciências "auxiliares", de forma que a síntese sempre fosse realizada pela corporação dos geógrafos. As palavras de um observador estrangeiro participante do Congresso de Geografia de Paris de 1889 (o espanhol Torres Campos), são um bom testemunho das estratégias de uns e outros.

Frente à proposta de alguns participantes, (especificamente o alemão Laubert, a quem se uniu Torres Campos), que dizia: "para que a geografia seja devidamente cultivada sob seu duplo aspecto natural e humano não são suficientes as cátedras da

345 BROC, 1974 (c), pág. 562. 346 Cit. por BROC, 1975 (c), pág. 57.

347 Sobre esta questão veja-se BROC, A. G., 1974 (c). A reforma do Bacharelado de 1895 dividiu o concurso em duas séries de provas, a primeira das quais, consistindo em defender uma tese, explicar um texto e ministrar uma aula, ocorria ante os professores da universidade em que houvesse estudado.

348 BROC, 1974 (c), págs. 562-563.

Faculdade de Letras, é indispensável que esta seja ministrada nas de Ciências", a reação foi que:

"por razões circunstanciais, a maioria francesa, crendo ver ameaçada a Geografia humana ou histórica [...] se negou a admitir uma conclusão radical neste ponto; porém reconhecida a exatidão do princípio, ficou acertado um padrão ao declarar que se devem fazer todos os esforços possíveis para facilitar, nas Faculdades, as relações orgânicas entre o ensino de Geografia e o das Ciências que podem servir-lhe de auxiliares".349