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DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E SABER GEOGRÁFICO

As reformas educativas e institucionais realizadas na época revolucionária e napoleônica deram lugar a uma fase de intenso desenvolvimento científico durante os três primeiros decênios do século XIX, no qual a geografia propriamente dita esteve praticamente ausente. Para a regeneração do homem e a organização da nova sociedade, os políticos da Revolução consideraram que a ciência e a educação eram essenciais e que o estado tinha a responsabilidade de impulsioná-las. Assim, grandes esforços foram realizados nesta direção e os cientistas e intelectuais foram chamados a assumir importantes responsabilidades políticas.301 A criação de instituições científicas bem dotadas, como a Escola Politécnica, a Escola Normal Superior, o Conservatório de Artes e Ofícios, ou o Museu de História Natural, permitiu que a atividade científica pudesse se desenvolver por tempo integral e se convertesse em uma profissão, uma vez que se implantavam normas impessoais de recrutamento através dos concursos. Foram criados novas cátedras científicas e começaram a ser publicadas revistas especializadas como os Anais de Química, os de Matemáticas ou os do Museu de História Natural.

A contrapartida de tudo isso foi a excessiva centralização da vida intelectual e científica em Paris, o que se momentaneamente deu lugar a desenvolvimentos rápidos e espetaculares, a longo prazo provocou a rigidez do sistema e o empobrecimento das iniciativas provinciais. A universidade imperial criada por Napoleão reunia todos os docentes superiores do Estado e teve sua sede em Paris como universidade central, enquanto que nas províncias só foram criadas faculdades dependentes.

Neste desenvolvimento, a presença da geografia foi débil. Os levantamentos cartográficos exigiam complexas operações astronômicas e geodésicas e haviam passado a ser realizados por físicos ou matemáticos, que foram constituindo corporações científicas diferenciadas. O fracasso da criação do Museu de Geografia de Paris,302 ainda que se tenha devido sobretudo a rivalidades entre as distintas armas, é também o sintoma do fim de uma época na qual a cartografia se identificava com a geografia. Por outro lado, nas Faculdades de Ciências, criadas em 1808, e nas instituições especializadas adquiriam desenvolvimento as ciências da Terra, como a história natural, que teria em Cuvier uma figura de destaque, e a geologia, cujo representante mais destacado seria Léonce Élie de Beaumont (1798-1874). Na cátedra de geografia da Universidade de Paris, ao contrário, a disciplina era de fato uma ciência auxiliar da história, e os sucessivos catedráticos que a ocuparam (J. D. Barbié du Bocage entre 1809 e 1825; A. Barbié du Bocage, de 1825 a 1835; J. D. Guigniaut, de 1835 a 1862; e A, Himly, de 1862 a 1899) eram, sobretudo, historiadores, e explicavam essencialmente a geografia antiga para uso de historiadores.303

Questões tão importantes como a disputa do evolucionismo entre realizava por geólogos e biólogos, sem que seus ecos chegassem à geografia, e sem que os cientistas considerassem esta ciência mais que uma "disciplina prática" que oferecia dados a políticos, comerciantes ou o público em geral. Como ressaltou Numa Broc, nas classificações da ciência realizadas no século XIX a geografia ou bem estava ausente, ou bem se unia seja à geologia, seja à etnologia, ou bem se dividia entre geografia física e política, mas "em nenhuma parte aparece a idéia que o objeto da geografia pudesse ser justamente a colocação em paralelo de fatos físicos e fatos políticos".304

Se a tudo isso acrescentarmos que a Sociedade de Geografia de Paris, fundada em 1828, tinha, sobretudo, objetivos relacionados com a exploração e as viagens;305 que as obras de Humboldt, ainda que em boa parte escritas em francês, tiveram um eco imediato principalmente entre os físicos e naturalistas,306 e que a geografia física estava

302 BROC, 1974 (d).

303Outros testemunhos sobre a decadência da geografia na primeira metade do século XIX em CAPEL, 1977, n° 8, págs. 8-9.

304 BROC: Eugène Cortambert, 1976. Segundo este autor, o único que em meados do século XIX falou de ciências "físico-morais" foi precisamente Cortambert, em seu Place de la Géographie dans la classification des connaissances humaines (1852).

305 Veja-se mais adiante, cap. VII.

306 O Cosmos foi traduzido para francês por "um dos astrônomos do Observatório de Paris", enquanto que Humboldt foi pouco ou nada citado pelos geógrafos, que tinham uma formação e uma preocupação histórica. Como exemplo desta escassa utilização, pode-se citar a obra de M. L. LANTER, "Agregé de l'Université, Professeur d'Histoire et de Géographie au Licée Janson-de-Sailly et à l'École des Hautes études Commerciales", o qual publicou uma obra sobre a América (L'Amérique. Choix de Lectures de Géographie, accompagnées de resumes, d'analyses, de notes explicatives et bibliographiques, Paris, Librairie Classique Eugène Belin, 5.ed. Revue et corrigée, 1887, 656 págs.), na qual apesar do tema, não existe nenhuma leitura procedente de Humboldt sobre a América; Humboldt aparece citado no índice alfabético de nomes, mas isso se deve simplesmente a sua citação por outros autores.

cada vez mais associada à geologia e enfrentava, além disso, a competição incipiente de uma nova ciência, a fisiografia,307 podemos chegar à conclusão de que não existiam razões científicas de peso para a institucionalização universitária e o desenvolvimento da antiga geografia, afetada gravemente em seu conteúdo pelo crescimento da especialização científica.

Mas enquanto isto ocorria, a geografia era uma matéria popular em outros níveis elementares, e seguramente ganhava adeptos. Revistas como o "Journal de Voyages" criada por Malte Brun em 1808, "La Tour du Monde" ou "Lectures Géographiques" forneciam ao grande público letrado informação sobre países exóticos, e sobre os progressos da colonização européia. Obras monumentais de geografia universal, como a do dinamarquês radicado na França, Malte-Brun, Précis de Geographie Universelle (1810-1929), ou a do italiano Adriano Balbi representavam importantes esforços de sistematização dos conhecimentos geográficos dos países da Terra. Mas inclusive nestes casos o domínio geográfico não era indiscutível, já que a incorporação de dados numéricos sobre produção ou comércio aproximava o estudo dos países à ciência da estatística, motivo pelo qual Balbi sente-se obrigado a dedicar grande atenção à distinção entre as duas ciências, e a analisar a obra estatística do Barão von Zeidtlitz (1829).

De início, deve-se reconhecer que esta geografia descritiva de países não se caracterizava pelo rigor de seu método, e que podia dar oportunidade a burlas e menosprezo por parte de outros cientistas. Tomemos como exemplo o Précis de la

Géographie Universelle de Malte-Brun, tantas vezes editado na França e outros países.

A obra começa por um quadro histórico dos progressos da geografia, no qual insiste, sobretudo, nos avanços da exploração da Terra e discute em seguida a teoria geral, dividindo a geografia em matemática, física e política. Por último, se chega à parte essencial da obra, a descrição dos continentes e países, o que exige do autor "grandes meditações antes de encontrar e determinar o método que oferece maior solidez e parece mais agradável". O problema é este:

"Uma ordem puramente geográfica parece que chegaria a eliminar as relações políticas e morais dos diversos quadros que temos que apresentar; uma ordem puramente política dificultaria a descrição de montanhas, mares, rios e climas. Como conciliar de algum modo estes métodos? É necessário tentar mais de um caminho, variar os meios de acordo com os obstáculos que nos propomos a vencer".308

Nesse sentido, nada de um só método científico único, mas diversidade deles, segundo convenha. O mesmo problema se coloca ao tratar concretamente a descrição de cada país, já que "o emprego muito rigoroso destes métodos abstratos [da geografia especial ou regional] é o que dá aos livros de geografia tanta rispidez", e com "essa vã

307 Eugène Cortambert escreveu uma Physiographie, Description générale de la Nature pour servir d'introducion aux sciences géographiques (1836), que constitui um compêndio de ciências físicas e naturais para uso de geógrafos, de formação quase que exclusivamente histórica; Numa Broc o qualificou como uma mescla de noções de "astronomia, geologia, geografia, botânica e meteorologia", uma espécie de "Cosmos do pobre", BROC, 1976 a e b; e o artigo do mesmo autor em FREEMAN e PINCHEMEL, 1978, vol. II. Sobre a fisiografia, veja-se infra, cap. IV, págs. 142-143.

308MALTE-BRUN, Ed. De Victor A. MALTE-BRUN, s. f., vol. I, pág. 12.

aparência de ciência a geografia essa imagem viva do universo, parece apenas uma fria e triste anatomia". Por isso a solução se impõe: "seguir os princípios gerais da arte de escrever, e variando segundo a natureza dos objetos, não só o tom como também a ordem da descrição", tenta-se criar "para a pintura de cada dia, um quadro particular que convenha à magnitude relativa dos objetos".309 Logo se vê que se trata essencialmente de problemas metodológicos relacionados com a apresentação ao grande público, e que dificilmente esta discussão pode ser considerada científica no mesmo sentido que o era, por exemplo, a astronomia de Laplace, ou a biologia de Cuvier.