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3.3 SUBSUNÇÃO VERSUS COMPREENSÃO: A PRODUÇÃO DO DIREITO NO

3.3.3 A Dimensão Prospectiva em Luiz Edson Fachin

Por fim, na doutrina brasileira, partindo da perspectiva sistemática da unidade do sistema jurídico preceituada acima, Fachin589 analisa as dimensões do Direito Civil

na contemporaneidade: primeiramente um pilar formal, onde identifica o direito positivo, seja constitucional ou infraconstitucional, considerado em sua normatividade; em segundo lugar, a vertente substancial, identificada na força normativa e vinculativa dos princípios constitucionais; e, por fim, a dimensão prospectiva fundada na “atuação

587 CANOTILHO, José Joaquim Gomes Direito constitucional e teoria da constituição. 7.

ed. Coimbra : Almedina, 2003. p. 1221.

588 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito I. Trad. Peter Naumann, Eurides Avance de

Souza. 1. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. Livro eletrônico. Cap. XIII.

589 FACHIN, Luiz Edson. Direito civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.

da reconstrução do significado de significantes que integram a teoria e a prática jurídica”.

Na primeira dimensão, formal, Constituição Federal e Código Civil aparecem como normas regulamentadoras da vida em sociedade. Mesmo reconhecendo-se os fenômenos da constitucionalização e repersonalização do Direito Civil, o Código ainda é reconhecido como “obra de pensamento estruturado emergente de um sistema de normas de Direito Privado que corresponde às aspirações de uma dada sociedade”.590

Tal materialidade teve sua importância histórica e a mantém nos dias atuais, pois tutelam grande parte dos fatos da vida cotidiana.

Essa dimensão não exclui a necessidade da prestação jurisdicional, pois é por meio da atuação do Poder Judiciário que se agasalham e concretizam as pretensões inclusivas.591 Ainda que o Código tenha a ambição da completude, não se verifica nele

uma “muralha para a hermenêutica”, pois tanto o Judiciário quanto a doutrina continuam a exercer o papel de “integrar, interpretar e dar sentido de limite e de possibilidades” aos fatos jurídicos. Daí dizer que, mesmo que empiricamente, constata-se um diálogo entre legislador-julgador-doutrinador que pode propiciar transformações no Direito e na vida.592 Perlingieri corrobora esse entendimento e

ressalta o papel crítico da doutrina, em especial no equilíbrio do sistema de fontes (ainda que parte da doutrina não tenha consciência disso).593

No segundo pilar, substancial, o autor identifica a força normativa dos princípios e a supremacia da Constituição Federal. Essa dimensão é constatada não apenas no ordenamento brasileiro, mas também em vários sistemas estrangeiros. Nessa fase identifica-se um Direito Civil mais aberto e sensível aos problemas e exigências da

590 FACHIN, Luiz Edson. Direito civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.

p. 16.

591 FACHIN, Luiz Edson. Direito civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.

p. 21; 34.

592 FACHIN, Luiz Edson. Direito civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.

p. 47-8.

593 “Si trascura sovente di discorrere del ruolo che la dottrina (la comunità degli studiosi del diritto e le

opere da esse prodotte) deve svolgere per un equilibrato sistema delle fonti. Allora o la dottrina ha perso prestigio e credibilità o è la stessa dottrina che non ha consapevolezza del dover assolvere il suo compito, ivi compreso quello di critica alle decisioni giurisprudenziali, sí da concorrere mediante la interpretazione alla formazione del sistema. Il ruolo critico, quando c’è, è quasi sempre limitato al particolare e non investe le ragioni del disfunzionamento”. PERLINGIERI, Pietro. Profili del diritto

sociedade e, adequado às normas constitucionais, positivadas ou não, constrói respostas para as celeumas que lhe são postas. 594

Contudo, constata-se que a construção principiológica trouxe consigo críticas significativas, em especial aquelas que imputam à primeira dimensão a certeza e a segurança jurídica, mas se não se pode duvidar da importância dessa dimensão intermediária como caminho a evoluir para a terceira dimensão.

Nessa terceira, denominada prospectiva, que é de maior interesse ao presente estudo, identifica-se a reconstrução permanente do Direito Civil pela teoria e pela prática, ou seja, papéis da doutrina e da jurisprudência, respectivamente. Importa ressaltar que essa não exclui as duas primeiras, formal e substancial595, que

coexistem harmonicamente. Pode-se perceber nessas afirmações a visão da hermenêutica filosófica gadameriana quando aponta uma aproximação entre teoria e prática596.

Na prospectividade identifica-se função relevante da hermenêutica, que a partir da abertura de caminhos na legislação, terá função integrativa, ampliando espaços decisórios e de reconstrução de significados597, ainda que tanto a doutrina quanto a

jurisprudência não gozem atualmente do prestígio devido no cenário jurídico.598

Silva599 aponta que na atividade processual não mais se verificam petições ou

sentenças fundadas em doutrina, apenas em jurisprudência colacionada ao bel prazer e sem vinculação com o caso ou com o resultado. Esse aparte entre a prática forense com o comprometimento doutrinário é apontado pelo autor como um dos fatores da crise narrada no presente estudo.

Menke600 analisa a posição protagonista da doutrina em especial na realidade

alemã afirmando que “num sistema onde normas de textura aberta ganham relevo, além de aumentar a responsabilidade dos magistrados, cresce também o papel

594 FACHIN, Luiz Edson. Direito civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.

p. 63-4.

595 FACHIN, Luiz Edson. Direito civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.

p. 83.

596 ENGELMANN, Wilson. Direito natural, ética e hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado,

2007. p. 117.

597 FACHIN, Luiz Edson. Direito civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.

p. 83.

598 FACHIN, Luiz Edson. Direito civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.

p. 86.

599 SILVA, Ovídio Baptista da. Da função à estrutura. Revista de Processo, São Paulo, v. 158/2008,

p. 9-19. out./2008.

600 MENKE, Fabiano. A interpretação das cláusulas gerais: a subsunção e concreção dos conceitos.

desempenhado pela doutrina, que terá o dever de assumir a postura crítica-construtiva no que toca ao trabalho dos juízes”.

No mesmo sentido, alinhado à realização do direito na práxis histórico- social, Castanheira Neves601 recupera o sentido da prática no modelo do jurisprudencialismo,

considerando que a lei se realiza na jurisdição.

Fachin602 apresenta a constitucionalização do Direito Civil como pressuposto

para essa terceira feição, considerando que o fenômeno da constitucionalização traz uma nova fundamentação para os pilares do mundo civilista, quais sejam, contrato, família e propriedade. O autor, desde antes da aprovação do Código Civil em 2002, desde a primeira edição da Teoria Crítica do Direito, apontava os novos paradigmas do Direito Civil contemporâneo, especificamente à visão interdisciplinar603 e afirmando

que “O Tribunal, por mais supremo que seja, ao menos nasce abstrato como defensor da Constituição e, então, se torna concreto com o desvelar histórico-cultural de seus julgados”.604

Aponta a nova realidade social com a massificação do consumo e do contrato, com a mudança paradigmática do ser humano na sociedade, e com as novas famílias que surgem a cada dia, como fatores de dificuldade de acompanhamento da lei positivada aos fatos sociais. Daí a função prospectiva ganha força, na medida em que é possível construir uma solução conforme o ordenamento, sem que haja um dispositivo específico regulador do fato.

Tal concreção somente se torna possível pela identificação do método sistemático e da unidade do sistema, pois o próprio ordenamento, aberto e plural605,

permite a criação de uma resposta. Não se pode ficar limitado à lei positivada, pois não é ela a única norma jurídica que compõe o ordenamento606, daí se admitir a

abertura ao sistema de fontes.607

601 CASTANHEIRA NEVES, Antonio. Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”,

“função” e “problemas”- Os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do Direito. In: Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra. v. LXXIV. Ano 1998. p. 1-44. Coimbra: Instituto Jurídico, 1998.

602 FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 12-3. 603 FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 176. 604 FACHIN, Luiz Edson. O Supremo Tribunal Federal e a jurisdição constitucional: da preservação à

justificação material dos direitos. In: CLÈVE, Clèmerson Merlin. FREIRE, Alexandre. Direitos

fundamentais e jurisdição constitucional: análise, crítica e contribuições. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2014. p. 694.

605 FACHIN, Luiz Edson. Direito civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.

p. 90.

606 FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 180. 607 FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 199.

O autor elenca exemplos do Supremo Tribunal Federal – STF – que comprovam essas afirmações: a impossibilidade de prisão civil do depositário infiel em caso de alienação fiduciária em garantia; o reconhecimento da união homoafetiva; a autorização de pesquisas com células-tronco embrionárias. Em todos os casos não se verifica na legislação uma resposta pronta e acabada, mas sim uma construção tópico-sistemática no Judiciário, a partir de problemas concretos, buscando-se no sistema a melhor entre as possíveis soluções.608

Reconhece que, no momento atual, o Direito Civil ultrapassa a simples estrutura chegando de fato à função, tal como preceituou Bobbio609, em resumo:

A dimensão prospectiva do Direito Civil toma a interpretação como questão constituinte do Direito Civil , daí a relevância do pensamento sistemático nesse contexto. Traduz-se, por essa via, um pensar por meio de problemas, hauridos não apenas do sentido fático dos casos como também das hipóteses teóricas como questões. Esses

problemas podem ser localizados tanto nas possibilidades

hermenêuticas da aplicação das normas de Direito Civil , quanto na força construtiva dos fatos por intermédio da doutrina e da jurisprudência. 610

Dessa forma, a visão prospectiva busca não apenas uma tutela jurisidicional, mas um juiz que possa reconhecer a complexidade social, adequar a ela os valores do sistema jurídico e do problema, e conceda uma efetiva tutela jurisidicional, daí a relevância das cláusulas gerais, princípios, recuperação histórica e demais componentes do sistema.611 No mesmo sentido Nunes612 afirma que o aumento da

complexidade social e também dos litígios atribuem à jurisdição e ao processo novos contornos e também Reale613que já antevia a dimensão prospectiva da hermenêutica

e sua vinculação ao caso concreto.

608 FACHIN, Luiz Edson. Direito civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.

p. 92-4.

609 BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de Teoria do Direito. Tradução de

Daniela Beccaccia Versiani. Barueri: Manole, 2007.

610 FACHIN, Luiz Edson. Direito civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.

p. 115.

611 FACHIN, Luiz Edson. Direito civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.

p. 120-1.

612 NUNES, Dierle. Direito fundamental a um efetivo processo civil constitucionalizado. In: CLÈVE,

Clèmerson Merlin. FREIRE, Alexandre. Direitos fundamentais e jurisdição constitucional: análise, crítica e contribuições. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 343.

Fachin614 explica que a construção e reconstrução dos significantes

fundamentais do Direito Civil – contrato, propriedade e família – deve se dar dentro dos limites do sistema aberto, poroso e plural, partindo-se de alguns compromissos: deve-se colocar o Direito Civil dentro do sistema, sem que se retorne à subsunção de outrora, pois deve-se analisar a atividade hermenêutica como compreensão da norma; o intérprete deve adequar tal compreensão ao tempo e lugar em que está inserido, afastando imobilidades; a norma não precisa estar necessariamente positivada para obrigar um comportamento ético, pois mesmo não escrita pode ser considerada precisa e de vinculação geral.

Diante disso, percebe-se que não basta a constatação da existência de princípios e valores615 formadores do ordenamento, deve-se buscar a sua efetividade,

sua concretização.616 Para tanto é necessário um julgador que assuma o

protagonismo necessário à sua atividade, e que esse exercício se dê com serenidade e firmeza.617

Do estudo desenvolvido por Fachin, comprova-se a necessidade e possibilidade de um Judiciário forte e preparado, para compor os desafios da sociedade contemporânea e complexa. A importância da jurisprudência na concretização do Direito é uma constante, e a visão prospectiva do Direito Civil, contribuirá para fundamentar a legitimidade do Poder Judiciário no preenchimento de cláusulas gerais pretendida nesse estudo.

Pode-se então concluir parcialmente que, independentemente de se denominar de compreensão, criação, concretização ou prospecção é necessário que o acesso à justiça seja visto como uma forma de participação do indivíduo para fazer valer os seus direitos e garantias fundamentais, ao mesmo tempo em o Judiciário deve estar preparado e legitimado para esse mister. Para isso é necessário a abertura do sistema de fontes, reconhecendo a unidade do sistema, mas admitindo a sua abertura para influências externas, reconhecer que a norma é produzida nos limites do caso concreto, mas para tanto deve se ter presente um intérprete preparado para essa

614 FACHIN, Luiz Edson. Direito civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.

p. 144.

615 Sobre a utilização de valores na concretização da dogmática juridica v. LARENZ, Karl. Metodologia

da ciência do direito. Trad. José Lamego. 3.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p.

312-20.

616 FACHIN, Luiz Edson. Direito civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.

p. 170.

617 FACHIN, Luiz Edson. Direito civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.

complexa missão. Por isso, visando afastar julgamentos subjetivos e merece discussão essa responsabilidade.