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3.3 SUBSUNÇÃO VERSUS COMPREENSÃO: A PRODUÇÃO DO DIREITO NO

3.3.1 A Compreensão para Karl Engisch

498 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito I. Trad. Peter Naumann, Eurides Avance de

Souza. 1. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. Livro eletrônico. Cap. V.

499 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito I. Trad. Peter Naumann, Eurides Avance de

Souza. 1. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. Livro eletrônico. Cap. IV.

500 MENKE, Fabiano. A interpretação das cláusulas gerais: a subsunção e concreção dos conceitos.

Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 50/2004. p. 9-35. abr./jun. 2004.

501 Além das ressalvas feitas à teoria ponteana acerca do suporte fático nesse item e no item 4.4.2.3

infra discorda-se também do conceito de norma que não pode ficar apenas atrelado à regra e abstratamente sem considerar a realidade social, conforme se vislumbra ao longo dos itens 3.3.1, 3.3.2 e 3.3.3.

502 ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Trad. J. Baptista Machado. Lisboa:

Fundação Calouste Gulbenkian, 2014. p. 95.

503 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito I. Trad. Peter Naumann, Eurides Avance de

Souza. 1. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. Livro eletrônico. Cap. I.

Sobre a subsunção, Engisch505 manifesta-se afirmando que ela faz parte do

processo de interpretação/aplicação da lei, porém, enxerga-a de forma distinta: não vislumbra a subsunção de um fato a uma regra. Afirma que somente se pode subsumir conceitos, ou seja, a subsunção representa uma relação entre conceitos. Deve-se interpretar o conceito jurídico, o conceito de fato e somente depois encaixá-los, num processo de compreensão.

No que diz respeito à compreensão, Engisch identifica-a no processo de aplicação da lei ao caso concreto. Contudo, não se trata de mera subsunção simples e matemática, pois o autor identifica a premissa maior não no texto legal positivado, mas sim no raciocínio complexo do jurista em identificar o conceito jurídico aplicável ao caso, e compreendê-lo no ordenamento como um todo. Parte da ideia de que a regra não pode ser considerada individualmente, mas sim interpretada num todo lógico e sistemático que é o próprio sistema jurídico506, reconhecendo a “unidade da

ordem jurídica” conforme acima exposto.507

No que se refere à interpretação, Engisch508 reconhece que, desde Savigny,

não se trata apenas de interpretação literal do texto legal e sua aplicação, mas sim de uma interpretação por vários vetores, que se podem resumir em: a própria interpretação gramatical, ou verbal, compreendendo o sentido e alcance da regra; a interpretação lógica e sistemática, identificando o texto legal e suas conexões com os demais textos; a intepretação histórica, na qual insere-se o dispositivo num contexto maior e analisa-se a sua evolução; a interpretação teleológica, que vislumbra o fundamento do próprio preceito. Contudo, reconhece que a opção por apenas um dos métodos interpretativos não é muito cômoda, afinal estar-se-ia contribuindo para arbitrariedades. Ao mesmo tempo reconhece que a utilização de todos os métodos conjuntamente poderia ocasionar entendimentos e conclusões contraditórias. Atesta a dificuldade em optar por um dos métodos, bem como de estabelecer uma hierarquia entre eles, portanto propõe uma intepretação além de tais amarras, que se concretizaria na compreensão.

505 ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Trad. J. Baptista Machado. Lisboa:

Fundação Calouste Gulbenkian, 2014. p. 95.

506 ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Trad. J. Baptista Machado. Lisboa:

Fundação Calouste Gulbenkian, 2014. p. 115-7.

507 ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Trad. J. Baptista Machado. Lisboa:

Fundação Calouste Gulbenkian, 2014. p. 123.

508 ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Trad. J. Baptista Machado. Lisboa:

Nesse compreender pode-se buscar a origem e a história do dispositivo legal, papel que cabe aos historiadores do Direito, buscando-se identificar as raízes e contextos da nascimento da norma. Contudo, a compreensão da norma é evolutiva no tempo e no espaço, desprendendo-se da sua origem e autoria e inserindo-se em novos cenários.509 O reconhecimento dessa norma nesse novo cenário é papel que

cabe ao jurista:

A própria lei e seu conteúdo interno não são uma coisa estática como qualquer facto histórico passado (eternamente quieto permanece o passado), mas são algo vivo e de mutável e são, por isso, susceptíveis de adaptação. O sentido da lei logo se modifica pelo facto de ela constituir parte integrante da ordem jurídica global e de, por isso, participar na sua constante transformação, por força da unidade da ordem jurídica.510

Continua o autor afirmando que todas as novas situações técnicas, econômicas, sociais, políticas, culturais e morais devem ser apreciadas conforme as normas preexistentes, concedendo ao juiz a tarefa de interpretar essas normas conforme esses fenômenos presentes. Por isso tudo reconhece no juiz o terceiro poder do Estado, assumindo função igual a do legislador.511

No mesmo sentido Gadamer afirma que “o jurista toma o sentido da lei a partir e em virtude de um determinado caso”512 e mais a frente “é verdade que o jurista

sempre tem em mente a lei em si mesma. Mas seu conteúdo normativo tem que ser determinado com respeito ao caso ao qual se trata de aplicá-la”513 e ainda mais a

frente quando inclusive referencia a obra de Engisch “a tarefa da interpretação consiste em concretizar a lei, em cada caso, isto é, em sua aplicação. A complementação produtiva do direito, que ocorre com isso, está obviamente reservada ao juiz, mas este encontra-se por sua vez sujeito à lei, exatamente como qualquer outro membro da comunidade jurídica”.514

509 ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Trad. J. Baptista Machado. Lisboa:

Fundação Calouste Gulbenkian, 2014. p. 165-72.

510 ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Trad. J. Baptista Machado. Lisboa:

Fundação Calouste Gulbenkian, 2014. p. 173.

511 ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Trad. J. Baptista Machado. Lisboa:

Fundação Calouste Gulbenkian, 2014. p. 173-4.

512 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. V. I. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 483. 513 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. V. I. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 485. 514 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. V. I. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 489.

Não pretende Gadamer, assim, uma ampla e irrestrita liberdade. O autor aponta que os limites do próprio sistema e por vezes até o limite do próprio texto vinculam a atividade judicante. O que demonstra é que existe uma parcela de liberdade na atividade hermenêutica, em especial do juiz (contrapondo-se a atividade hermenêutica do historiador515), que lhe concede parcela de discricionariedade para,

no círculo hermenêutico interpretação – compreensão – aplicação, construir a solução para o caso concreto.516 Daí o papel da tradição e da phrónesis para evitar a

arbitrariedade. 517

Diante dessa posição “legislativa” do Judiciário, assume especial relevância o ordenamento aberto, permitindo que a norma se desprenda da sua origem histórica e o julgador desempenhe a nova função. Nesse novo modelo aberto, não há mais tanta amarra dos aplicadores ao conteúdo da lei, pois, desde o seu nascimento, a lei estabeleceu uma tessitura mais aberta que permite aos intérpretes maior liberdade.518

Engisch identifica quatro fenômenos que comprovam tal abertura: conceitos indeterminados, conceitos normativos, conceitos discricionários e cláusulas gerais (conceitos aprofundados no próximo capítulo). A indeterminação conceitual, portanto, é implícita a todo o ordenamento jurídico.

Tal indeterminação é positiva no ordenamento, pois liberta o intérprete da clausura da lei, permite que ele a adeque às peculiaridades do caso concreto, bem como crie uma solução justa para o problema que lhe é posto sob análise.519

Por fim, importa ressaltar na sua obra, a afirmação de que o julgador, como intérprete do Direito, apesar de inserido no sistema jurídico que é regido precipuamente pela norma, não está adstrito apenas à ela.520

515 Sobre a mesma distinção efetuada por Gadamer, Müller afirma que “a historicidade não está

legitimada no direito para nivelar distinções especificamente jurídicas” [...] “Uma obra de arte de um passado muito remoto tem hoje – embora ela venha inteiramente do seu tempo e é, quanto à época do seu surgimento, multiplamente condicionada e cunhada pelo seu ambiente histórico – não só uma atualidade distinta, mas também uma atualidade maior, mais imediata do que uma norma jurídica oriunda da mesma época; a rigor, esta última não é mais nenhuma norma, é apenas um texto de norma, uma configuração linguística sem normatividade jurídica.” V. MÜLLER, Friedrich.

Teoria estruturante do direito I. Trad. Peter Naumann, Eurides Avance de Souza. 1. ed. São

Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. Livro eletrônico. Cap. V.

516 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. V. I. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 482-90.

517 ENGELMANN, Wilson. Direito natural, ética e hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado,

2007. p. 115-130.

518 ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Trad. J. Baptista Machado. Lisboa:

Fundação Calouste Gulbenkian, 2014. p. 208.

519 ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Trad. J. Baptista Machado. Lisboa:

Fundação Calouste Gulbenkian, 2014. p. 255.

520 ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Trad. J. Baptista Machado. Lisboa:

Tanto o processo de preenchimento dos conceitos indeterminados, quanto a construção da decisão de cada caso concreto, bem como o preenchimento de lacunas na lei ou concreção da norma, é importante vislumbrar a atitude do intérprete a partir de todo o sistema jurídico, em especial a jurisprudência. Os precedentes jurisprudenciais também são componentes importantes no processo decisório, pelo que ganham posição de destaque. Por fim, é de se reconhecer, segundo o autor, que o julgador não pode se limitar a subsumir o fato ao conceito legal preexistente na norma, mas sim lhe cabe uma atitude de significativa interpretação, compreensão e criação do resultado, que é nada mais que a resposta conforme o Direito considerado como sistema.521522

Nesse contexto reaparece a conjuntura da hermenêutica filosófica, em especial ao afastamento dela como método, e propiciando o evento da compreensão na atividade judicante. A compreensão do fato e a conclusão jurídica para o mesmo se afasta do processo subsuntivo e permite uma atividade interpretativa mais completa. Se o julgamento não pode se limitar a subsunção da regra ao caso, a atividade consiste muito mais numa “atribuição de sentido dado ao texto frente às múltiplas facetas do caso concreto”. 523

Diante dessas considerações, a obra de Engisch importa para esse estudo no sentido de verificar como se dá a atuação do Poder Judiciário no caso concreto. Utiliza-se das ideias do autor no sentido de admitir que a resolução do caso concreto não se dá apenas na aplicação da norma, mas sim da compreensão do conjunto de normas que compõe o unitário sistema jurídico. Pretende-se, além disso, ir um pouco mais além, abrindo o sistema de fontes para admitir fontes externas e a tradição.

521 Ferrajoli, em tom de crítica, afirma que no panorama atual estar-se-ia retornando ao modelo de

estado pré-moderno, de direito jurisprudencial, chegando a afirmar que opera-se um retorno à escola de Savigny, onde se “reivindicou a autonomia do direito em relação à legislação e o papel imediatamente construtivo e normativo da ciência jurídica”. V. FERRAJOLI, Luigi. O Estado de Direito entre o passado e o futuro. In: ZOLO, Danilo; COSTA, Pietro. O estado de direito: história, teoria, crítica. Tradução de Carlo Alberto Dastoli. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 422.

522 Corroborando o entendimento de ENGISCH, Menezes Cordeiro, na introdução à edição portuguesa

da obra de Claus Canaris, explicita o Direito em sua natureza histórico-cultural, inserido numa sociedade complexa e que vislumbra a necessidade de acompanhar a sua evolução. Daí a dificuldade de adotar condutas formalistas, pois quando as normas são chamadas a solucionar os fatos da vida, “mostram-se insuficientes: elas não comportam elementos que lhes facultem acompanhar a diversidade de ocorrências e, daí, de soluções diferenciadas.” V. MENEZES CORDEIRO, Antonio. Introdução à edição portuguesa de CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento

sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,

2012. p. XVIII-XX.

523 ENGELMANN, Wilson. Direito natural, ética e hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado,

Ainda, busca-se pelo estudo dos conceitos indeterminados trazidos pelo autor, identificar a origem e conceito das cláusulas gerais que compõe o ordenamento civil brasileiro, conforme se verá no capítulo a seguir.