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CAPÍTULO II – SER FRATERNO, “ESTILO” CRISTÃO DE HABITAR O MUNDO

1. A educação, lugar de encontro

1.1. A disciplina de EMRC na educação

Na reflexão sobre a educação, campo vasto de interpretações, consideramos aqui os aspetos que permitem proporcionar o desenvolvimento de cada pessoa, não apenas na perspetiva da mimetização dos aspetos bebidos da sociedade, mas aqueles que, num contínuo processo de inculturação, permitem a capacitação individual dos alunos para desempenharem um dia, maduramente, as tarefas pessoais e as funções sociais que lhes permitam aceder a um patamar equilibrado de realização pessoal.

No horizonte de qualquer processo educativo está a pessoa (assim o entendemos) e a preocupação pelo desenvolvimento humano, nas suas mais variadas áreas. Neste particular, encontramos a dimensão religiosa, e a educação para esta dimensão, que não é um acrescento ou anexo da educação, mas dela faz parte. No âmbito do desenvolvimento de cada um, a dimensão religiosa, presente na educação, apresenta-se como um campo de aprendizagem permanente que procura ajudar a encontrar respostas para o conjunto de expetativas e ansiedades pessoais e coletivas, buscando-se o sentido da existência humana e procurando a convergência com a realidade a que se pertence.

Na escola, trabalham-se todos os aspetos que atravessam a pessoa: constrói-se identidade, firmam-se convicções, debatem-se e assumem-se posições perante a conjuntura política, económica, social, familiar e religiosa. Neste terreno, a religião, presente nas

407 Licenciada em Serviço Social, Mestre em Ciências da Educação, pela Universidade Católica Portuguesa, é

docente de EMRC e orientadora de estágio desta disciplina.

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propostas curriculares, mais do que ser uma questão de confessionalidade (apesar de colocar enfoque nas suas tradições e certezas de fé), é uma instância de resposta que procura alicerçar e sustentar a ininterrupta experiência de sociedade.

Assim, o aspeto religioso, que não é, não pode ser, estrangeiro ao currículo, integra esse processo largo de capacitação de cada um, mediante a descoberta do que se é, de quem se é e a que é que se está chamado ser. Por isso, a educação tem a obrigação de abrir o horizonte do leque de possibilidades de realização humana de cada aluno, na escola. É tarefa da educação despertar consciências para a liberdade e para a responsabilidade, lutando contra as amarras da indiferença baseada no vazio e na incompreensão. Afirma Guilherme de Oliveira Martins que “ao contrário do que muitos entendem, o conhecimento do fenómeno religioso, constitui um ponto fundamental na formação pessoal e cívica em democracia”409.

Neste sentido, a disciplina de EMRC, como proposta de presença na escola, e num enquadramento curricular, visa proporcionar, de modo gradual, um sentido para a vida, ajudando cada aluno a desabrochar e a crescer, acompanhando-o nas múltiplas etapas escolares de desenvolvimento humano, marcando presença quer nos momentos mais difíceis, quer nos de maior alegria. Pretende-se ajudar o aluno a viver e a saber viver com os outros, tendo como referência a perenidade do Evangelho que procura ser farol e caminho de plenitude. No entanto, esclareça-se, a proposta educativa da EMRC não se confina a um processo de endoutrinamento, mas à abertura para a experiência religiosa que ajuda a lidar com as vicissitudes da vida de todos os dias.

Em Portugal, o percurso legislativo da disciplina de EMRC é extenso.410 Por isso, debruçamo-nos sobretudo na legislação em vigor para contextualizar brevemente a presença desta disciplina nos mapas curriculares nacionais.

409 Guilherme de OLIVEIRA MARTINS, “O conhecimento do fenómeno religioso”, in Pastoral Catequética,

n.º 5, 2006, 70.

410 Apesar de sabermos que no ensino primário oficial do tempo da monarquia se ministrava a disciplina de

“Doutrina Cristã e Moral”, para fazer história do caminho legislativo da disciplina de EMRC, recuamos apenas até 1940 (data da assinatura da Concordata entre o Estado Português e a Santa Sé) para no artº 21º da Concordata lermos que “O ensino ministrado pelo Estado nas escolas públicas será orientado pelos princípios da doutrina e moral cristãs tradicionais no País. Consequentemente ministrar-se-á o ensino da religião e moral católicas nas escolas públicas elementares, complementares e médias aos alunos cujos pais, ou quem suas vezes fizer, não tiverem feito pedido de isenção”.

Após o Estado se ter afirmado como não confessional (cf. Constituição Portuguesa de 21 de agosto de 1911, art. 3º, n.º 10 – “O ensino ministrado nos estabelecimentos públicos e particulares fiscalizados pelo Estado será neutro em matéria religiosa”), é apenas com o Decreto-Lei n.º 36.507, de 17 de Setembro de 1947, artº 6º, que surge pela primeira vez a designação de ‘Religião e Moral’. Depois deste normativo legal, a 22 de outubro de 1948, o decreto n.º 37112 aprova os programas do ensino liceal, entre eles o de Religião e Moral. Em 28 de Maio de 1960, o Decreto-Lei n.º 42 994 publica novos programas do ensino primário, nomeadamente o de Religião e Moral. A Portaria n.º 20 380, de 19 de fevereiro de 1964, sobre as instruções de educação social, moral, cívica e religião, realça a importância do testemunho do professor para uma educação moral eficaz. A Portaria n.º 490/70, publicada a 3 de outubro de 1970, fala da importância da formação da consciência moral face à crise do mundo moderno, e, consequentemente da importância da

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Partimos da informação sistematizada pela CEEC, em 2007, quando anunciou, em documento próprio, o Programa de Educação Moral e Religiosa Católica para o ensino básico e ensino secundário411. Ali se destaca que a disciplina se encontra legitimada em normativos legais, uns específicos, outros de caráter geral, que lhe reconhecem o estatuto de paridade com as outras disciplinas, ainda que seja proposta como de frequência facultativa nas escolas públicas.

A CEEC recorda a importância do Ensino Religioso Escolar e enuncia princípios, que transcrevemos, onde é possível enquadrar a sua inserção nos sistemas educativos, nomeadamente referindo:

“- A liberdade dos encarregados de educação de escolherem o género de educação a dar aos filhos (DUDH, art. 26.°; cf. CRP, art. 36.°, ponto 5) e de fazerem assegurar a educação religiosa e moral dos seus educandos, em conformidade com as suas próprias convicções (PIDCP, art. 18.°; PIDESC, art. 13.°; Protocolo Adicional à CPDHLF, art. 2.°; CDFUE, art. 14.°) e, correlacionado com os direitos referidos, o dever do Estado de colaborar com os pais na educação dos filhos (CRP, art. 67.°, alínea c), o qual se concretiza prioritariamente através da criação de condições necessárias para que os pais ou encarregados de educação possam optar livremente pelo modelo educativo que mais convenha à educação integral dos seus educandos; “- A educação integral da pessoa, que tem como finalidades proporcionar o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido da sua dignidade e reforçar o respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais, bem como a formação do carácter e da cidadania, preparando o educando para uma reflexão

Religião e Moral na educação. Em 1971, é publicada a lei sobre liberdade religiosa (Lei n.º 4/71 de 21 de agosto). Entretanto, a reforma de Veiga Simão em 25 de julho de 1973 reitera que o ensino da religião e moral obedecerá aos princípios estabelecidos na Constituição e na lei da liberdade religiosa (Lei 5/73, BASE III, 3). Assente em princípios democráticos e na dignidade da pessoa humana (art. 1º), a Constituição de 1976 vem realçar o respeito e os direitos e liberdades fundamentais de cada um (cf. art. 2º), lembrando que ninguém pode ser beneficiado ou prejudicado em função da ascendência, do sexo, da raça, da língua, da religião, das convicções políticas ou ideológicas, da situação económica ou condição social (art. 13º, n.º 2). Estes direitos têm a sua expressão na educação. A mesma constituição vem realçar o direito dos pais em poderem optar pelo tipo de educação dos seus filhos (art. 36º, n.º 5). De acordo com esse direito, o Estado deve cooperar com os pais quanto às suas escolhas em matéria religiosa. Surge o Decreto-Lei n.º 323/83, onde o Estado assegura o ensino das ciências morais e religiosas na escola pública (cf. art. 1º). Este decreto só fica completo com o Despacho 121/ME/85, de 19 de julho de 1985, onde são estabelecidas orientações relativamente a inscrições dos alunos, faltas, avaliação, constituição de turmas e horários. Finalmente, neste elenco de documentos legais surge, por exigência da Comunidade Europeia, a Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE), lei n.º 46/86 de 14 de outubro de 1986. Nela se expressa a garantia do direito à educação e à formação global da personalidade (cf. art. 1º, n.º 2). Para concretizar estes princípios, em termos de organização curricular é criada uma área de formação pessoal e social no ensino básico (cf. n.º 2), a qual passa a integrar também o ensino da moral e da religião católicas, a título facultativo (cf. n.º 3).

411 Cf. COMISSÃO EPISCOPAL DA EDUCAÇÃO CRISTÃ, Programa de Educação Moral e Religiosa Católica – Ensinos básico e secundário, Lisboa, Secretariado Nacional de Educação Cristã, 2007.

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consciente sobre os valores espirituais, estéticos, morais e cívicos (DUDH, art. 26.°; PIDESC, art. 13.°; LBSE, art. 3.°, 7.° e 50º);

“- A defesa da identidade nacional e o reforço da fidelidade à matriz histórica em que nos inserimos, através do contacto com o património cultural, no quadro de uma tradição universalista europeia e da crescente interdependência e necessária solidariedade entre todos os povos do mundo (LBSE, art. 3.°)”412.

Partindo do estabelecido n.º 2 do artigo 1º, e do conteúdo dos artigos 2º e 3º da Lei de Bases do Sistema Educativo413 (LBSE), percebemos que no alicerce do sistema educativo português está contemplado o querer dar uma resposta “às necessidades resultantes da realidade social, contribuindo para o desenvolvimento pleno e harmonioso da personalidade dos indivíduos, incentivando a formação de cidadãos livres, responsáveis, autónomos e solidários” (artº 2º, n.º 4), impulsionando-se o “desenvolvimento global da personalidade” (art. 1º, n.º 2) e regendo-se a atuação escolar pelo princípio da “liberdade de aprender e de ensinar” (art. 2º, n.º 3). Além disso, verificamos que o Estado revela neutralidade face ao Ensino Religioso Escolar (cf. artº 2º, n.º 3b), apesar de organizar o sistema educativo de modo a “contribuir para a defesa da identidade nacional e para o reforço da fidelidade à matriz histórica de Portugal, através da consciencialização relativamente ao património cultural do povo português”, assegurando “a formação cívica e moral dos jovens” (cf. artº 3º, alínea a) e c)).

A mais recente reorganização curricular introduzida pelo Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 91/2013, de 10 de julho, vem garantir no artº 15º, de resto confirmar o definido em documentos normativos anteriores414, a presença da disciplina de EMRC no currículo nacional, bem como a estrutura horária da disciplina para o ensino básico e para o ensino secundário415, afirmando que

“as escolas, no âmbito da sua autonomia, devem desenvolver projetos e atividades que contribuam para a formação pessoal e social dos alunos,

412 COMISSÃO EPISCOPAL DA EDUCAÇÃO CRISTÃ, Programa de Educação Moral e Religiosa Católica – Ensinos básico e secundário, op. cit., 13.

413 A Lei de Bases do Sistema Educativo foi aprovada pela Lei n.º 46/86, de 14 de outubro, e alterada pelas Leis

n.º 115/97, de 19 de setembro, 49/2005, de 30 de agosto, e 85/2009, de 27 de agosto.

414 Neste âmbito teríamos de considerar aqui o conteúdo dos normativos anteriores a 2012 que estabeleceram a

presença da EMRC nas escolas portuguesas, nomeadamente o Decreto-Lei 209/2002 de 17 de outubro, anexos I, II e III, relativo ao Desenho Curricular do Ensino Básico, e o Decreto-Lei 74/2004, artº 6º, n.º 5, e anexos, aplicado ao Ensino Secundário. Estes documentos legislativos estabelecem que em todos os anos de escolaridade seja oferecida pelas escolas a possibilidade de frequência da disciplina.

415 Cf. Anexo I do Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho, in Diário da República, I Série, n.º 129, 2012,

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designadamente educação cívica, educação para a saúde, educação financeira, educação para os media, educação rodoviária, educação para o consumo, educação para o empreendedorismo e educação moral e religiosa, de frequência facultativa”416.

Dá-se, assim, substância curricular ao previsto no n.º 1 do artº 19º da Resolução da Assembleia da República n.º 74/2004417, de 16 de novembro, que, considerando o texto da Concordata de 1940, vem proceder a uma atualização ao acordo da década de 40 “em virtude das profundas transformações ocorridas nos planos nacional e internacional”418, afirmando que

“A República Portuguesa, no âmbito da liberdade religiosa e do dever de o Estado cooperar com os pais na educação dos filhos, garante as condições necessárias para assegurar, nos termos do direito português, o ensino da religião e moral católicas nos estabelecimentos de ensino público não superior, sem qualquer forma de discriminação”419.

Deste modo, considerando a mais recente legislação sobre a disciplina de EMRC420, o Estado português, de acordo com as diretrizes concordatárias, a doutrina constitucional e os documentos da Igreja sobre a liberdade religiosa e a educação cristã, garante o ensino da EMRC nas escolas considerando os princípios emanados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, os pactos com as Nações Unidas e os dados do direito comparado no que ao ERE diz respeito.421

Contudo, alerta D. António Francisco dos Santos que

“a existência e a qualidade do Ensino Religioso Escolar depende dos cidadãos cristãos, muito mais do que do Estado, da Hierarquia da Igreja e dos próprios professores. Depende sobretudo dos pais cristãos. Num Estado laico não há Concordata que resista, nem voz dos bispos que se ouça nem tao pouco a competência dos professores que se imponha, se não houver pais

416 Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho, in Diário da República, I Série, n.º 129, 2012, 3479.

417 A Concordata de 2004 entre a Santa Sé e a república Portuguesa é o suporte jurídico fundamental que

legitima a presença da disciplina de EMRC nos estabelecimentos de ensino público não superior.

418 Resolução da Assembleia da República n.º 74/2004, de 16 de novembro (Concordata entre a República

Portuguesa e a Santa Sé), in Diário da República, I Série-A, n.º 269, 2004, 6741.

419 Ibidem, 6743.

420 Cf. Decreto-Lei n.º 70/2013, de 23 de maio.

421 Cf. D. Tomaz SILVA NUNES, “Sobre as finalidades da Educação Moral e Religiosa Católica”, in Pastoral Catequética, n.º 5, 2006, 76.

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cristãos, cidadãos conscientes, uma sociedade esclarecida e adulta, também na fé, que afirme, defenda e promova o Ensino Religioso Escolar”422.

Afirmada a sua legitimidade e possibilidade aberta de presença nas escolas portuguesas, resta à disciplina de EMRC um esforço de provar (e de se deixar “provar”) junto dos alunos e respetivas famílias a pertinência da sua existência na escola, não como um modo de ocupar os tempos livres ou manchas horárias, mas como proposta válida para uma verdadeira educação do caráter humano, em vista à formação completa da pessoa.