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A discricionariedade como liberdade no lado da conseqüência jurídica da

CAPÍTULO 1. A DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA

3. A discricionariedade como liberdade no lado da conseqüência jurídica da

A conclusão que resta é muito simples: a discricionariedade sempre se aloja no lado da conseqüência jurídica. Existe um dever-poder discricionário para a Administração, portanto, sempre que a determinado tipo legal (Tatbestand, hipótese normativa, descritor) correspondam pelo menos duas condutas administrativas igualmente válidas perante o direito, ou seja, “igualmente justas”, de mesmo valor jurídico. Nas palavras de Eduardo García de Enterría, a discricionariedade “é essencialmente uma liberdade de eleição entre alternativas igualmente justas, ou, se se prefere, entre indiferentes jurídicos, porque a decisão se fundamenta normalmente em critérios extrajurídicos (de oportunidade, econômicos etc.) não incluídos na lei e remetidos ao juízo subjetivo da Administração”72.

A eleição entre “indiferentes jurídicos” pressupõe que todas as soluções (todas as condutas prescritas) tenham sido abstratamente consideradas pela norma jurídica como igualmente idôneas para alcançar a finalidade legal. Se existisse uma e somente uma solução ótima, que alcançasse, com perfeição e eficiência, o fim colimado pelo sistema jurídico, a atribuição de um poder de escolha à Administração seria inócua, pois o administrador estaria obrigado, em qualquer caso, a optar abstratamente pela solução mais adequada. Então, sempre que houver discrição teremos, no plano da norma, uma pluralidade de decisões juridicamente corretas.

Entretanto, pode ocorrer, como salienta Celso Antônio, que a análise das

72 Eduardo GARCÍA DE ENTERRÍA e Tomás Ramón FERNANDEZ. Curso de derecho administrativo, pp. 466-467.

circunstâncias particulares do caso concreto reduza a pluralidade de decisões a um

só comportamento possível da Administração73. Nessa hipótese cessará qualquer discricionariedade em concreto, embora se tivesse, no plano da norma, uma potencial liberdade de escolha da Administração. Isso porque, nas palavras de Hartmut Maurer, “à essência do poder discricionário pertence, exatamente, o exame das circunstâncias do caso particular sob o ponto de vista da intenção legislativa”, ou seja, o critério fundamental da discrição é o da finalidade. Se, no cotejo com os dados-de-fato, a finalidade puder ser servida por apenas uma medida administrativa, então haverá um dever de adotá-la – uma vinculação que somente se descobre no momento da aplicação da norma. Daí a importância extraordinária de que se reveste, dentre outros, o princípio da proporcionalidade no controle do exercício de competências discricionárias.

Não aceitamos, contudo, a doutrina que considera existir para cada caso uma e apenas uma solução correta (one right answer), de modo que a discricionariedade, no caso concreto, seria apenas a impossibilidade cognitiva de estabelecer, objetivamente, a providência mais adequada à satisfação da finalidade legal. Em geral, a finalidade consiste num valor, um estado de coisas ideal que se quer proteger e/ou alcançar, implícita ou explicitamente afirmado numa norma jurídica. Esse valor – assim como todos os valores – é inexaurível; ou seja, nunca será alcançado definitivamente, esgotado em sua potencialidade, realizado plenamente no mundo do ser. Segue-se, portanto, que não pode haver, em todos os casos, um comportamento único que satisfaça a finalidade legal de modo perfeito74

.

73 Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO. Discricionariedade e controle jurisdicional, p. 36.

74 Estamos aqui trabalhando com conceitos da teoria dos valores de Miguel Reale. Veja-se: Miguel REALE. Filosofia do Direito. Além dessa obra, temos a tese de Angeles Mateos GARCÍA, defendida na Universidade Complutense de Madri, intitulada A teoria dos valores de Miguel Reale. Essa característica dos valores, que pode ser aplicada aos princípios jurídicos, será melhor analisada quando tratarmos do conceito de princípios, passo indispensável para a compreensão

Há situações de fato em que várias são, mesmo após a consideração de todos os dados relevantes, as soluções possíveis de acordo com o direito. Não se trata de “incognoscibilidade da solução ótima” ou “o resultado da impossibilidade da mente humana poder saber sempre, em todos os casos, qual a providência que atende com precisão capilar a finalidade da regra de Direito”75

. Na verdade, essa providência “ótima” simplesmente não existe em muitos casos; por isso haverá mais de uma solução “perfeita” e o administrador estará legitimado a eleger livremente, segundo critérios extrajurídicos, entre qualquer uma delas. Do dever de realizar a finalidade legal não se pode inferir o dever de praticar uma e apenas uma conduta em todos os casos. A discricionariedade surge precisamente da inexistência de uma única solução correta. Esse “defeito”, por assim dizer, é da própria realidade empírica (que nunca poderá coincidir plenamente com os valores – ou estes não teriam nenhuma força diretiva sobre a realidade, tornando-se, a partir de então, irrealizáveis), não da mente humana, das faculdades cognitivas do ser humano. Embora limitado, o intelecto, nesse ponto, não tem nenhuma culpa pela existência de discricionariedade administrativa.

Mas como identificar na norma a discrição? Em regra a discricionariedade decorre de uma faculdade outorgada à Administração, mediante a qual o dever de atingir a finalidade pode ser exercido pela conduta p ou pela conduta q, para adotar um modelo simples de duas condutas possíveis. Não há nada de estranho nisso. As condutas obrigatórias estão necessariamente permitidas; e se é obrigatório realizar ou uma ou outra conduta (disjunção), então ambas as condutas estarão permitidas,

do fenômeno da redução da discricionariedade.

serão lícitas, de maneira que, se a Administração eleger uma ou a outra, sua escolha será insuscetível de controle de legalidade76. Essa é a própria definição de faculdade: é permitida uma conduta e sua abstenção.

Desse modo, quando a lei diz que a Administração pode realizar uma conduta, pressupõe que pode também não a realizar, seja porque lhe é dado, no caso, omitir-se, seja porque uma conduta diversa também é permitida. Agora, um cuidado se impõe. Nem sempre a lei usa “pode” no sentido de uma outorga de poder discricionário à Administração. Há casos em que o “pode” há de ser tomado como “deve”; o fato de ser obrigatória a conduta implica, como se sabe, sua permissão (no direito positivo isso é exemplificado pela ação de consignação em pagamento) ; logo, se alguém “deve” fazer algo, então “pode” fazê-lo. Inversamente, se alguém “pode” fazer algo, esse “poder” origina-se ou de uma permissão bilateral (“pode”, mas não “deve”; “pode” fazer e “pode” não fazer) ou de um dever (“pode” fazer porque “deve” fazer). Assim temos, na Lei federal de processo administrativo, um “pode” que é “deve”: o art. 55, segundo o qual determinados atos administrativos “poderão” ser convalidados pela própria Administração77

.

Haverá, portanto, discricionariedade sempre que a Administração tiver um âmbito de liberdade volitiva78

:

(a) no que concerne a agir ou não agir;

76 De acordo com as regras da lógica deôntica, o dever de realizar p ou q implica a faculdade de realizar p ou q: O  p∨q  P  p∨q  .Ver Delia Teresa ECHAVE, María Eugenia URQUIJO e

Ricardo A. GUIBOURG. Lógica, proposición y norma, pp. 138, 143/144

77 Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO. Curso de Direito Administrativo, pp. 433-434

78 Essa é – sem a menção aos conceitos jurídicos indeterminados e com mínimas alterações de redação – a relação dos casos gerais de discricionariedade encontrada em Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO. Discricionariedade e controle jurisdicional, p. 17.

(b) no que atina à escolha do momento para agir. Deve-se esclarecer que agir

hoje é uma conduta diversa de agir amanhã; e que, desse modo, o tempo é um

elemento fundamental da conduta. Em regra, a lei concede um prazo para a Administração agir, mas, dentro desse prazo, ela tem uma relativa liberdade para determinar quando realizará a conduta, ainda que, de resto, sua atividade seja inteiramente vinculada, como a concessão de benefício previdenciário, a averbação de tempo de serviço de um servidor público, a expedição de uma certidão ou o lançamento tributário, podendo a lei até mesmo estabelecer que os efeitos do ato administrativo lhe sejam anteriores (retroatividade);

(c) no que diz com a forma jurídica de exteriorização do ato. Pode haver casos em que a formalização do ato se acha entregue à discrição do administrador: por exemplo, a intimação (ato administrativo de comunicação) dos interessados ou pela via postal ou por edital publicado na imprensa;

(d) no que respeita à eleição da medida considerada idônea, perante uma dada situação fática, para satisfazer a finalidade legal.