• Nenhum resultado encontrado

A redução da discricionariedade como conseqüência da aplicação das técnicas

CAPÍTULO 2 – CONCEITO E PRESSUPOSTOS DA REDUÇÃO DA

2. A redução da discricionariedade como conseqüência da aplicação das técnicas

A redução da discricionariedade somente pode ser percebida no contexto da investigação judicial ou administrativa dos limites das competências discricionárias que ocorre no processo de aplicação do direito. Em outras palavras, a supressão no caso concreto de alternativas de comportamento abstratamente legítimas perante a ordem jurídica resulta sempre da aplicação das variadas técnicas de identificação das fronteiras da discricionariedade, desenvolvidas no quadro de uma complexa interação entre o legislador, a dogmática jurídica, os tribunais e a própria Administração. Além desse atores institucionais, em muitas ocasiões – sobretudo, mas não apenas, nos atos administrativos em sentido estrito de que resultem agravos à esfera jurídica – os destinatários das prescrições emanadas da Administração também devem participar da construção do âmbito legítimo da discrição.

Importa dizer que se trata efetivamente de uma construção – e não de uma descoberta – porque os limites da discricionariedade não estão dados a priori, independentemente dos dados da experiência, nem são incondicionais. Há, por óbvio, uma variabilidade imensa das situações da vida que deflagram a incidência de normas jurídicas e o exercício de deveres-poderes administrativos. A adequação do conteúdo das prescrições ou da atividade material da Administração a essa realidade, que não se deixa aprisionar em esquemas rígidos e imutáveis, deve afastar-se da suposição de que existe um limite certo, previamente dado, como se ao aplicador do direito coubesse apenas revelá-lo mediante técnicas adequadas.

Para que a discricionariedade cumpra sua função específica, que é a de proporcionar a solução mais adequada para o caso concreto de acordo com um juízo estimativo racionalmente fundamentado, os limites têm de ser fluidos e relativamente imprecisos. Não prescindem da mediação do intérprete. Os expedientes técnicos para interpretar fatos e normas não podem estar nesses mesmos elementos e, ainda que se achem dispersos em outras normas do sistema jurídico, elas terão de ser interpretadas, e assim sucessivamente. Nenhuma norma

pode estabelecer ela própria os critérios de sua interpretação.

Alguns pontos extremos da competência discricionária são, por assim dizer, mais evidentes, mais sólidos: os pressupostos subjetivos (em especial, a competência) e a formalização de um ato administrativo, por exemplo, raramente se abrem à liberdade decisória da Administração. Nenhuma será a discricionariedade para decidir se os fatos que compõem o suporte fático de uma norma habilitante ocorreram ou não, apesar de haver uma certa liberdade de valoração das provas obtidas no processo administrativo, que se confunde amiúde – e desastrosamente – com discricionariedade15.

15 Essa confusão entre discricionariedade e liberdade de valoração do material probatório – temperada com o “direito líquido e certo” no mandado de segurança, que veda a “dilação probatória”, também confundida com revaloração de prova – é comum na revisão de processos administrativos disciplinares. Dois exemplos do STJ: ROMS 15.648, rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJU de 03/09/3007; MS 8858, rel. Min. Jorge Scartezzini, DJU de 08/03/2004. A valoração da prova – que não tem nada a ver com a atividade probatória propriamente dita – consiste na operação de atribuir pesos de importância às provas produzidas no processo e, depois, de determinar o grau de certeza com que determinado fato foi provado, de acordo com o peso de cada elemento probatório. Isso é claramente questão de legalidade que pode ser controlada pelo Poder Judiciário; não tem nada a ver com o mérito administrativo, nem com a impossibilidade de produzir novas provas no mandado de segurança (a “liquidez e certeza” do direito passível de tutela mediante o writ). A prova pré-constituída – exigida pelo mandado de segurança – não exime o julgador do dever de valorá-la. Aceitar, sem mais, a valoração administrativa é insistir numa distinção rigorosa e anacrônica entre questões de direito e de fato; se a linguagem das provas deve ser interpretada, então há uma metalinguagem que fornece os critérios de interpretação; ora, essa metalinguagem é a linguagem do direito positivo e não algo estranho ao direito, um critério subjetivo da Administração; se a ordem jurídica não adotou o sistema de “provas tarifadas”,

De outro lado, os limites que dizem respeito à finalidade têm uma compostura mais líquida; e, finalmente, a aplicação da razoabilidade e da proporcionalidade, que estariam ligadas à causa do ato administrativo no sentido adotado por Celso Antônio Bandeira de Mello, é de difícil realização na maioria dos casos16

. Entre um extremo e outro, podemos vislumbrar diferentes graus de vinculação e discricionariedade no que concerne também aos motivos e ao conteúdo do ato discricionário.

Em todo caso, os limites da discricionariedade dependem fundamentalmente da estrutura e densidade de regulação da norma habilitante, bem como das conexões de sentido com outras normas pertencentes ao sistema, porquanto se tem

tampouco deixou sem critério algum a valoração do material probatório. Deve haver, por certo, limites à revaloração pelo juiz das provas colhidas no processo administrativo, sob pena de reduzir – em vez de aumentar – a qualidade das motivações, mas os critérios, nesse caso, tendem a ser bem menos elásticos do que no controle do exercício da discricionariedade, porquanto assentados em pressupostos diversos. Ou seja, pode admitir-se um controle bem mais amplo da “liberdade de valoração probatória”, que se situa no âmbito da motivação tanto de atos vinculados quanto de

atos discricionários, do que da verdadeira discricionariedade.

16 Adotamos, para esta exposição, a definição que Celso Antônio Bandeira de Mello oferece para a “causa” do ato administrativo: correlação lógica entre o pressuposto (motivo) e o conteúdo do ato em função da finalidade tipológica do ato. Celso Antônio Bandeira de MELLO, Curso de Direito Admnistrativo, p. A discussão sobre a causa dos atos administrativos é daquelas em que ninguém se entende porque cada autor usa a palavra numa acepção própria; como todos falam de coisas diferentes, ninguém concorda com o que o outro diz sobre a “causa”. Embora a proposta definitória de Celso Antônio possa ser criticada, ela tem o inegável mérito de fornecer um referencial claro e destacado, na teoria dos atos administrativos, para a aplicação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Apenas por curiosidade, uma das críticas que podem ser dirigidas a seu conceito de causa reside em que, para ser útil, pressupõe a existência de atos tais que: (a) a Administração seja livre para escolher o motivo (pressuposto de fato) do agir administrativo; e (b) a finalidade, sozinha, não dê conta de permitir a invalidação do ato, se o motivo eleito pela Administração for inadequado. Celso Antônio não menciona em nenhum momento a condição (b), é verdade, mas ela está implícita no raciocínio, ou, dito de outro modo, na definição de causa que ele propõe a condição (a) implica (b). A não ser assim, a finalidade bastaria para resolver os casos em que o conteúdo do ato não atinge a finalidade quando verificado aquele motivo específico que a Administração, discricionariamente, elegeu. É que a finalidade, em qualquer caso, põe um limite aos motivos; ela, por si só, restringe o universo de possíveis motivos e, portanto, talvez não seja concebível uma hipótese em que um dado motivo escolhido pela Administração para a prática do ato, não obstante comportado pela finalidade, não convenha ao conteúdo do ato. Deve-se lembrar que o jurista português André Gonçalves Pereira, que trabalhou com um conceito de causa enquanto relação entre elementos (ou pressupostos) do ato administrativo, excluía o fim da estrutura dos atos administrativos. Talvez não seja mera coincidência. Ver André Gonçalves PEREIRA. Erro e ilegalidade do Acto Administrativo.

por certo que as normas jurídicas não podem ser compreendidas isoladamente17. Desse modo, os primeiros e mais elementares juízos sobre a extensão da competência discricionária pressupõem, necessariamente, algum tipo de mediação hermenêutica, o que, por si só, elimina a possibilidade de haver uma “descoberta” ou “revelação” de limites ocultos nas normas quando interpretadas por um sujeito administrativo que tem de exercer a competência ou pelo Poder Judiciário.

Ocorrerá sempre uma verdadeira construção, historicamente condicionada e aberta, de sentidos para as normas diante dos fatos recolhidos no mundo fenomênico, imersos na corrente do tempo, e sujeitos, eles mesmos, às mais diversas interpretações por serem reconstruções, em linguagem competente (a linguagem das provas, regulada pelo direito), de algo que se perdeu definitivamente. A prova disso está em que os limites da discricionariedade variaram – e ainda variam – de modo perceptível de acordo com as condições históricas de cada sistema jurídico, do que nos dá testemunho por demais eloqüente a exuberante jurisprudência do Conselho de Estado francês na matéria.

É apenas no processo de identificação do espaço de liberdade atribuído pelo ordenamento jurídico à Administração que se pode concluir por seu inteiro preenchimento no caso concreto e, pois, pela ocorrência da redução da discricionariedade a zero (Ermessensreduzierung auf Null) ou por uma redução parcial do âmbito discricionário, com a supressão de algumas das alternativas de regulação jurídica do caso previstas abstratamente na norma habilitante. A redução da discricionariedade é a conseqüência necessária do caráter limitado das

17 Esse é o fundamento da interpretação sistemática. Veja-se, por todos, Juarez FREITAS. A Interpretação Sistemática do Direito.

competências discricionárias e da aplicação, pelo órgão administrativo ou judicial, das técnicas de determinação desses limites. Por isso, devemos mirar um pouco mais de perto, conquanto não exaustivamente, as técnicas mais conhecidas.

Antes, convém fazer uma ressalva. Não há quase nenhum consenso na dogmática jurídica nacional a respeito da sistematização das técnicas de identificação e controle dos limites da competência discricionária. Também não fez a jurisprudência grandes avanços na matéria. Não dispomos, por isso, de um conjunto de testes aceito pela communis opinio e aprovado pelos tribunais para demarcar as fronteiras da discricionariedade legítima. A elaboração dogmática está toda por ser feita. Isso justifica – e, de certo modo, impõe – as referências ao direito estrangeiro, que têm o único sentido de fornecer a base necessária para a construção de um conjunto de técnicas e métodos aplicáveis ao sistema jurídico brasileiro.

Nos próximos itens, adotaremos para fins expositivos, com significativas variações de conteúdo, a proposta de sistematização de Tomás-Ramón Fernández e Eduardo García de Enterría. Há na Constituição espanhola norma expressa que proíbe a arbitrariedade dos poderes públicos (art. 9.3), à qual podem ser reconduzidas em última análise as técnicas de identificação e controle da discricionariedade administrativa18

. Embora nunca se duvidasse de que o arbítrio, a

18 No direito americano, do qual, para o bem ou para o mal, o direito brasileiro tem se aproximado nos últimos vinte anos, o Administrative Procedure Act de 1946 (APA) também proíbe expressamente comportamentos “arbitrary and capricious” dos órgãos administrativos, na seção 706 (2) (A), e com base nela desenvolveu-se robusta jurisprudência sobre “reasonableness” na revisão da “discretion”. Diz o APA nesse texto que a corte deverá considerar ilegais e afastar as decisões administrativas que forem “arbitrary, capricious, an abuse of discretion, or otherwise not in accordance with law”. Ocorre que o direito americano aderiu há muito tempo a uma distinção não muito clara entre “questions of fact” (questões de fato), “questions of law” (questões de direito) e “discretion” (que seria a liberdade de formular a regra para o caso concreto, o juízo concreto de dever ser, ou seja, a determinação da conseqüência jurídica dos fatos por ela estabelecidos, à luz da interpretação do direito por ela realizada). Além disso, alguns parâmetros de “common law”

pura vontade desnuda, estivesse interditada pelo ordenamento jurídico brasileiro, a doutrina sempre vacilou quanto à fundamentação concreta da proibição. Se tomarmos a construção dos referidos autores com a observação – feita por eles mesmos – de que se trata mais de um guia heurístico do que rigorosa ordenação do material normativo positivo, talvez seja possível considerá-la, pelo menos, como um ponto de partida para a elaboração sistemática da redução da discricionariedade no Brasil.

Em seguida, passaremos em revista brevemente a doutrina alemã dos “vícios

(criados pelos tribunais), não expressamente referidos no APA, são introduzidos freqüentemente no controle das decisões administrativas (fala-se em clarity, consistency e fairness), e os tribunais ainda separam a atividade normativa da Administração (rulemaking) da aplicação do direito aos casos concretos (adjudication) para fins de alcance do controle jurisdicional. O resultado é de uma complexidade estonteante. Isso porque, em cada um desses tópicos de controle, a Suprema Corte aplica testes diferenciados, com critérios próprios. Vejamos brevemente: nas questões de fato, o teste é o da substantial evidence, pelo qual a corte avalia a “razoabilidade” da instrução realizada pela agência, e não necessariamente se os fatos são “verdadeiros” ou “corretos”. Esse teste julga se a agência foi cuidadosa na colheita e avaliação dos dados disponíveis e se o material resultante se presta a fundamentar a decisão. Ver as decisões da Suprema Corte e do Tribunal Federal do 2º Circuito no caso Universal Camera [Universal Camera Corp. v. NLRB, 340 U.S. 474 (1951); NLRB v. Universal Camera Corp. 179 F.2d749 (2nd Circuit); NLRB v. Universal Camera

Corp.190 F.2d 429 (2nd Circuit)]. Ainda nas questões de fato, podem os tribunais proceder ao

controle denominado “de novo review”, refazendo toda a prova dos fatos e valorando-as independentemente, apenas se a atividade da agência for “adjucatory” e os procedimentos de instrução e valoração da agência forem inadequados, ou se num processo judicial que trate da execução (enforcement) de uma atividade “non-adjucatory” surgirem questões de fato novas, que não haviam sido antes consideradas pela agência [Citizens to Preserve Overton Park, Inc. v. Volpe. 401 U.S. 402 (1971)]. Esse “de novo review”, na prática, é quase inexistente. No plano das questões de direito, o teste mais conhecido é o definido na polêmica e importantíssima decisão

Chevron [Chevron, Inc. v. Natural Resources Defense Council. 467 U.S. 837 (1984)], o precedente

mais freqüentemente citado hoje nos tribunais federais (mais que Madison v. Marbury, sobre o controle de constitucionalidade, ou Roe v. Wade, que proibiu os Estados de criminalizarem o aborto nos três primeiros meses de gestação). De acordo com Chevron, se o Congresso referir-se especificamente à questão no texto da lei, o tribunal pode rever amplamente a interpretação realizada pela agência; agora, se a lei for silente ou ambígua em relação à questão específica, o Poder Judiciário poderia indagar apenas se a interpretação da agência era “permissível” ou, como também disse a corte, “razoável”. Já o controle da discretion submete-se, de modo geral, ao teste conhecido como “hard look”, ou “adequate consideration”, pelo qual a Suprema Corte exige que a agência considere os fatores relevantes, e se limita a avaliar, desse modo, a qualidade do processo de tomada de decisões – mas não, necessariamente, a decisão em si (por isso, o remédio mais comum nesses casos é o “remand”, ou seja, o retorno da questão para que a agência delibere e o tribunal inferior reaprecie, então, a questão à luz dos parâmetros fixados pela Suprema Corte). Esse teste de “hard look” veio definido em SEC v. Chenery Corp. 318 U.S. 80 (1943) e SEC v. Chenery Corp. 332 U.S. 194 (1947) e foi desenvolvido também em Citizens to Preserve Overton Park Inc. v. Volpe. 401 U.S. 402 (1971). Para essas questões e transcrições das decisões, ver Stephen G. BREYER, Richard B. STEWART, Cass R. SUNSTEIN e Adrian VERMEULE. Administrative law and regulatory policy. Problems, text and cases, pp. 191-447.

do poder discricionário” (Ermessensfehler), cuja riqueza conceitual servirá, mais adiante, para fundamentar a proposição de que toda violação dos limites jurídicos da

discricionariedade administrativa configura, no direito brasileiro, uma infração ao

devido processo legal em sentido substantivo (ou amplo). Em outras palavras: o

devido processo legal é que circunscreve, envolve, a discricionariedade legítima e a extrema do arbítrio ilegítimo. A chave dogmática para abrir (e justificar) a extensão que deve ter o controle jurisdicional do exercício da discricionariedade está – como veremos – na cláusula do devido processo legal.

Assim, na medida em que a redução da discricionariedade, segundo entendemos, nada mais é do que um resultado possível do processo de identificação dos limites da competência discricionária, pode-se dizer que a redução da discricionariedade, quando ocorre, sempre decorre do devido processo legal em sentido substantivo. Antecipando outra conclusão, pode-se dizer também que o devido processo legal em sentido processual ou procedimental (ou estrito) é condição necessária, mas não suficiente, para que se cumpra o devido processo legal em sentido substantivo ou material (ou amplo) e, portanto, para que a discrição se contenha nos limites juridicamente assinalados.

3. Os elementos vinculados da competência administrativa e o desvio de