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A teoria alemã dos “vícios da discricionariedade”

CAPÍTULO 2 – CONCEITO E PRESSUPOSTOS DA REDUÇÃO DA

5. A teoria alemã dos “vícios da discricionariedade”

A doutrina e a jurisprudência alemãs desenvolveram a teoria dos “vícios da discricionariedade” (Ermessensfehler) com a pretensão de sistematizar as vinculações jurídico-positivas da competência discricionária. Essa expressão, contudo, revela-se um tanto equívoca, pois o defeito nunca será da discricionariedade em si mesma, legítima enquanto contida nos limites opostos pela ordem jurídica, mas da circunstância de a Administração ir além da discricionariedade, invadindo o campo da juridicidade que circunscreve todos os

deveres-poderes administrativos, ou ficar aquém da expectativa do legislador no exercício da liberdade administrativa de escolha do comportamento a ser adotado no caso concreto.

De todo modo, a teoria dos “vícios da discricionariedade” cumpre, no direito alemão, a mesma função dos “limites” ao exercício de competências discricionárias no Brasil, que é a de aferir a extensão do espaço de liberdade estimativa da Administração e, por conseguinte, o âmbito em que se moverão os controladores da legalidade, especialmente o Poder Judiciário, na revisão das decisões administrativas. Explica-se: pode-se definir os vícios da discricionariedade como violação dos limites (intrínsecos e extrínsecos) da competência discricionária; e, inversamente, a violação dos limites pode ser definida como infração à ordem jurídica (ou seja, vícios no exercício da discricionariedade). Assim, a consideração dessa teoria pode também servir de ponto de apoio adicional para determinar o lugar sistemático da redução da discricionariedade no ordenamento jurídico brasileiro.

Impende deixar assentado que não há semelhanças estruturais nem funcionais entre a teoria dos vícios da discricionariedade e a antiga doutrina italiana dos “vícios de mérito”, que se opunham aos “vícios de legalidade” para definir os limites da cognição deferida, por lei, ao órgão de controle da legalidade37

. Nas

37 Nas palavras de Antonio AMORTH. Il merito dell'atto amministrativo, pp. 2-3. “por vício de

mérito deve-se entender aquilo que afeta uma qualidade verdadeiramente típica do ato administrativo – a qual o diferencia decisivamente dos atos jurídicos privados – que é a sua conveniência, a sua utilidade, a sua adequação, em suma, à consecução daqueles fins públicos gerais e especiais que com a emanação do ato se pretende atingir, qualidade que se costuma precisamente denominar, em linguagem técnica, com o vocábulo 'mérito'. Vício de mérito, vício de oportunidade do ato, não dos seus elementos jurídicos” [sem grifos no original].

Essa linguagem é confusa e pertence a outra época do direito administrativo; o mérito, no conceito que Amorth desenvolve em sua conhecida monografia, na verdade quase se sobrepõe ao que se denomina hoje “razoabilidade” e “proporcionalidade”. Se na Itália da primeira metade do século XX talvez fosse preciso haver norma expressa para o controle jurisdicional desse “mérito”, hoje o que

palavras esclarecedoras de Hartmut Maurer:

“contra isso [a denominação de “vício do exercício do poder discricionário”] nada pode ser objetado, contanto que seja considerado que esse vício no exercício do poder discricionário são, na realidade, vícios de direito. Os tribunais estão obrigados a revisar a observância das vinculações do poder discricionário e a revogar (sic) uma decisão de exercício de poder discricionário vicioso por causa da antijuridicidade”38.

Desse modo, na Alemanha os “vícios da discricionariedade” (Ermessensfehler) podem ser definidos como as situações em que o desempenho de uma competência discricionária ultrapassa os limites juridicamente impostos, ou fica aquém deles, e deve, em conseqüência, ser revisto pelos tribunais administrativos. Na definição um pouco mais restrita de Robert Alexy, são “todos os vícios de direito, controláveis judicialmente, do resultado e do processo da atuação discricionária39”. Há diversas tentativas de sistematização, pouca uniformidade terminológica e uma grande dificuldade de articulá-los sob conceitos que se estruturem numa ordem sistemática, a ponto de alguns juristas renunciarem à construção teórica e se limitarem a enunciar, em clave denotativa, uma relação de vícios da discricionariedade40

. A doutrina mais tradicional, porém, distingue

Amorth define como “mérito” está inserido quase totalmente, sem necessidade de norma expressa alguma, na competência dos órgãos de controle da legalidade. No mesmo sentido, Eros Roberto GRAU. Direito, conceitos e normas jurídicas.

38 Hartmut MAURER. Elementos de direito administrativo alemão, p. 50.

39 Robert ALEXY. “Vícios no exercício do poder discricionário”. in: RT 779, p. 26. Por “resultado” da atuação discricionária, Alexy entende o “dispositivo da decisão discricionária”, o que seria, na linguagem do direito brasileiro, o “conteúdo” do ato administrativo. Por “processo”, Alexy entende não o procedimento (Verfahren), tal como definido nas leis de procedimento administrativo, mas o “processo de idéias, decisão e argumentação que conduzem o resultado”, ou seja, os processos cognitivos e volitivos mediante os quais a decisão administrativa é tomada. Esse “processo”, por sua vez, pode ser visto em suas dimensões lingüística e exterior (a “motivação” do direito brasileiro, que na tradução de Alexy surge como “fundamentação”) e psíquica e interior (o “móvel” do direito brasileiro, traduzido por “motivação). O esclarecimento é necessário para evitar confusões sobre o conceito de “vícios do poder discricionário” na peculiar construção teórica de Alexy, que se distancia, voluntariamente, da tradição do direito administrativo alemão. Voltaremos, oportunamente, à teoria de Alexy.

40 É o caso de Walter Jellinek, no início do século XX, e de Hans-Joachim Koch, na década de 1980, conforme nos dá notícia Robert ALEXY. “Vícios no exercício do poder discricionário”.

normalmente algumas categorias41.

A primeira é o excesso ou transgressão dos limites do poder discricionário. Consiste na escolha de uma conseqüência jurídica não situada no quadro de possibilidades do conseqüente da norma jurídica, ou que pressupõe erroneamente a existência de fatos que abririam o exercício da discrcionariedade. Neste último caso, temos não propriamente um vício da discrição, mas uma invalidade que acomete atos vinculados que a autoridade supõe erroneamente serem discricionários. Esta classe de vícios equivale à violação pura e simples da regra de competência ou à determinação equivocada do suporte fático, por deficiência de prova, de valoração da prova ou de aplicação de conceitos aos fatos provados.

A segunda é o não-exercício do poder discricionário ou “deficiência do poder

discricionário”. Consiste no fato de o órgão competente julgar-se, erroneamente,

vinculado pela lei quando, na verdade, tem um espaço de liberdade decisória, o que pode igualmente resultar de uma investigação deficiente do suporte fático. Deve-se observar que a discricionariedade se atribui à Administração para ser usada, ou seja, se uma decisão administrativa foi adotada sem consideração, confronto e escolha das alternativas igualmente legítimas – procedimento inerente ao exercício da discricionariedade –, então o ato administrativo será inválido, devendo o controlador da legalidade anulá-lo e exigir da Administração se for o caso a apreciação dos demais comportamentos previstos na norma habilitante.

41 Hartmut MAURER. Direito administrativo geral, pp. 149-151. Andreas J, KRELL. “A recepção das teorias alemãs sobre conceitos jurídicos indeterminados e o controle da constitucionalidade no Brasil”. in: Interesse Público 23, pp. 46/47.

É interessante observar que a decisão pode até situar-se na moldura normativa que atribuiu a competência discricionária – não se cuida, portanto, de um vício de conteúdo do ato administrativo – e que a Administração talvez pudesse, legitimamente, escolher aquela solução para o caso. Entretanto, a falta de escolha, o não-exercício da liberdade estimativa, vicia o ato e obriga a Administração a reproduzi-lo sem o respectivo defeito. Trata-se precisamente de um caso em que a motivação não formula escolha entre alternativas de comportamentos (fundamentação não escolhedora, nas palavras de Alexy), e não necessariamente que a solução alvitrada seja em si mesma contrária a direito.

A terceira é o uso defeituoso, abuso ou desvio do poder discricionário. Consiste no fato de a autoridade não se deixar dirigir exclusivamente pela finalidade prescrita na outorga de competência discricionária. Atuará de modo viciado o administrador que não observar as concepções de objetivos definidas na lei (e, claro, na Constituição), ou não incluir, em suas considerações, pontos de vista juridicamente relevantes. Por exemplo, a dissolução de uma passeata somente pode ter por fim a garantia da segurança pública – preservação da ordem pública, incolumidade das pessoas e do patrimônio (CF 144, caput) – e nunca a repressão a determinadas concepções político-ideológicas.

No direito alemão, deixar de considerar um fator juridicamente relevante para a decisão também configura esse vício. Se a autoridade ignora a gestação avançada de uma policial (e, conseqüentemente, o risco à saúde da mãe e do nascituro) na elaboração da escala de plantão numa delegacia, a decisão será inválida por esse

motivo42. Trata-se, pois, de uma variante do desvio de finalidade do direito francês.

Por fim, a doutrina mais tradicional faz menção à infração a direitos fundamentais e a princípios administrativos gerais como vícios da discricionariedade. Dá-se como exemplo o princípio da igualdade (cuja projeção específica no campo administrativo, de acordo com a Constituição brasileira, será a impessoalidade) e a conseqüente “autovinculação” da Administração: o “direito geral” de igualdade exige que a Administração seja consistente, vale dizer, que ela respeite as práticas administrativas reiteradas e os entendimentos já consolidados acerca da interpretação e aplicação das normas jurídicas, das quais apenas com motivação idônea se pode afastar.

Deve-se observar que a infração a direitos fundamentais ou princípios administrativos gerais não constituiria, para um setor da doutrina, propriamente um vício autônomo, mas ou bem representa uma barreira objetiva ao exercício da discricionariedade ou se cifra num ponto de vista que deve ser considerado na motivação do ato. Isso porque, além de limites objetivos à discricionariedade administrativa, os direitos fundamentais e os “princípios gerais do direito

42 A falta de consideração de fatores relevantes pode resultar em infração a direitos fundamentais e princípios administrativos gerais, como no exemplo, referido por Maurer, da expulsão de estrangeiro casado com uma alemã: “Assim deve, por exemplo, na expulsão de um estrangeiro

que está casado com uma alemã, ser observado que a expulsão provavelmente conduz à separação dos cônjuges e, por isso, infringe a proteção do casamento e da família, segundo o artigo 16, I, da Lei Fundamental. A autoridade não atua antijuridicamente se ela examina esse ponto de vista, mas, mesmo assim, na ponderação de todas as circunstâncias, declara a expulsão; porém, ela atua antijuridicamente quando, no fundo, não considera esse ponto de vista”

(Hartmut MAURER. Elementos de direito administrativo alemão, p. 52). Andreas J. Krell, seguindo Fritz Ossenbühl, inclui a violação de direitos fundamentais e princípios da Administração Pública no “abuso ou desvio do poder discricionário”. Andreas J. KRELL, “A recepção ...”, p. 47. Essa variação classificatória deixa bem claro que não há fronteiras rígidas entre os tipos de vícios da discricionariedade na doutrina alemã contemporânea e que a classificação tradicional não consegue incorporar de maneira satisfatória as dificuldades preparadas pela aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais também à atividade administrativa.

administrativo” obviamente fornecem elementos que devem ser considerados no processo de tomada de decisão.

Assim, essa classe de vícios resulta, no primeiro caso, em “excesso” do poder discricionário (por subtrair da liberdade administrativa determinada conseqüência incompatível com o direito fundamental ou com o princípio) ou, no segundo caso, em “uso defeituoso” do poder discricionário (por não consideração de um ponto de vista juridicamente relevante – o direito fundamental ou o princípio). É também na infração a direitos fundamentais e princípios que se incluiriam a análise da proporcionalidade e, de modo geral, as exigências de ponderação.

A existência de apenas uma decisão administrativa discricionária “livre de vício” é o que os alemães denominam redução da discricionariedade a zero (Ermessensreduzierung auf Null). Se das alternativas de solução previstas abstratamente restar uma só que não apresente vícios da discricionariedade, então a Administração não disporá de liberdade de eleição entre comportamentos igualmente válidos, e os tribunais, em vez de apenas anular o ato administrativo e remeter a matéria a uma nova apreciação administrativa, poderão adotar diretamente a única solução conforme ao direito, exercendo um “controle positivo” do mesmo modo que nos atos vinculados.

6. Os princípios jurídicos e a proporcionalidade: compreendendo a redução da