• Nenhum resultado encontrado

2 COMUNICAÇÃO E A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA SOCIAL

2.2 A disputa das narrativas na configuração da memória

O reconhecimento da hegemonia como um processo socialmente construído “não é, exceto analiticamente, um sistema ou uma estutura” como bem adverte Raymond Williams (1979, p. 15). Nisto, adotamos o pressuposto teórico onde a contraposição de discursos sobre a mesma ocorrência constitui disputa de narrativas e a síntese desta operação produz compreensão comum sobre os fatos. Esta última admite, pois, lugar de atenção uma vez que é

49 um complexo realizado de experiências, relações e atividades, com pressões e limites específicos e mutáveis. Isto é, na prática a hegemonia não pode nunca ser singular [...] Além do mais (e isso é crucial, lembrando-nos o vigor necessário do conceito), não existe apenas passivamente como forma de dominação. Tem de ser renovada continuamente, recriada, defendida e modificada. Também sofre uma resistência continuada, limitada, alterada, desafiada por pressões que não são as suas próprias pressões (WILLIAMS, 1979, p. 115-116)

A contrahegemonia como proposto teórico em Williams (1979) fundamenta-se no reconhecimento das versões, costumes e ações interpeladas pelos setores sociais que se opõem ao fluxo majoritário. Registrar e validar as narrativas como um exercício de flexão do tempo capaz de compor imaginário sobre ocorridos e momentos experienciados é, desta forma, uma tarefa necessária àquelas que urgem pela narração das rupturas cotidianas por outro viés. Ao reconhecermos este ponto, consequentemente situamos a produção de memória social conjugada ao exercício da hegemonia

a cada vez que escolhemos transformar determinadas ideias, percepções ou acontecimentos em lembranças, relegamos muitos outros ao esquecimento. Isso faz da memória o resultado de uma relação complexa e paradoxal entre processos de lembrar e de esquecer, que deixam de ser vistos como polaridades opostas e passam a integrar um vínculo de coexistência paradoxal (GONDAR, 2016, p. 29).

‘Lembrar’ e ‘esquecer’ são verbos conjugados neste trabalho como frutos de uma relação dialética, de modo que o emprego destes impera como reflexo das posições sociais, políticas e econômicas para manutenção de privilégios. Na trama de poderes que (re)organizam a memória social, um bom ponto de observação está na questão retórica de Hannah Arendt (1995, p. 46), onde

as mentiras políticas modernas são tão grandes que requerem um completo rearranjo de toda a textura factual - o fabrico de uma outra realidade, por assim dizer na qual se encaixam sem costuras, fendas nem fissuras, exatamente como os fatos encaixavam no seu contexto original - o que é que impede estas histórias, imagens e não fatos novos de se tornarem um substituto adequado da realidade e da factualidade?

Evocar esta questão em Arendt apresenta-se como interpelação da disputa de narrativas entre a versão sancionada pelas esferas de poder do jornalismo, assumida como orientação oficial dos fatos; em oposição ao substrato das coisas ocorridas, notificadas e experienciadas pelos sujeitos que, em maioria, não dispõem dos privilégios econômicos para noticiar suas observâncias para um número significativo de pessoas.

50 A arena onde “vários grupos sociais e instituições competem entre si e lutas ideológicas se desdobram sobre a definição e a construção da realidade social”, como identificou Gurevitch e Levy (1985, p. 19), é interpretada pela somatória dos poderios que permitem o desempenho de circulação das narrativas. Estamos lidando com um cenário desigual e, para tatear com a relação de concentração de poderes, é salutar referenciar a sentença de Le Goff (1990, p. 426) onde “ser senhor da memória e do esquecimento é ser detentor do poder de fixar o presente para um futuro próximo ou distante”. É imprescindível reconhecer:

como a luta, a resistência, a rebeldia, a desobediência e a revolução seguem constituindo a experiência cotidiana da grande maioria da população mundial; que, no mais, pagam um preço muito alto por isso, a disjunção entre o modo como se vive e o que publicamente se diz sobre eles faz com que o nosso seja um tempo dividido entre grupos muito assimetricos: os que não podem esquecer e os que não querem recordar (SANTOS, 2018, p. 19).

Esta oposição não pode ser toada sem evocar o sentido proposto por Benjamin (1994, p. 224) ao reconhecer, na discussão sobre o conceito de história, que a versão das coisas contadas é a síntese pronunciada pelos vencedores das batalhas: onde os “inimigos” – na perspectiva do materialismo histórico42 – nunca cessou vitórias e, nisto, assim como as memórias dos sobreviventes são escanteadas, “também os mortos não estarão em segurança”. Por esta via, o privilégio de não-recordar das sangrias em nome da manutenção dos poderes e privilégios de uma parcela diminuta da população; impõe a parcela maior o exercício onde “dizer a nós mesmos e aos outros o que somos é recontar as narrativas de como chegamos até onde estamos e para onde estamos indo daqui para frente” (THOMPSON, 1998, p. 184) e, assim, manter acesa as memórias, ritualísticas e outros atos consagrados e reivindicados pelos agrupamentos.

A compreensão onde “nenhum registro apenas registra. Todo ele pressupõe o trabalho da linguagem, pressupõe uma tomada de posição dos sujeitos sociais. Todo registro é discurso e possui, assim, um mecanismo ideológico próprio, uma forma de funcionamento particular” defendida por Ana Paula Ribeiro (2000, p. 37) é ponte para compreender os documentos e peças comunicacionais como artefatos da disputa de narrativas para, consecutivamente, estabelecer uma fotografia a compor a memória social. Nisto, em posições

42 - Em oposição ao Idealismo, o materialismo histórico é formulado por Karl Marx e Friedric Engels. O conceito compreende as relações sociais como resultado dos contributos das forças produtivas e, nisto, busca entender as classes sociais e a relação existente entre elas, bem como os resultados observados – a exemplo do sistema político e das relações de dominação econômica e simbólica.

51 contrapostas, é salutar referendar que estamos lidando com um cenário desigual e com oportunidades díspares, onde,

de um lado, uma memória oficial que atua no sentido de viabilizar a manutenção das estruturas sociais, que seleciona, ordena e classifica fatos segundo critérios próprios e se constrói considerando - ou não – silêncios, sombras, esquecimentos, repressões e estratégias de exclusão. De outro, há várias memórias sociais subterrâneas que, emprenhadas em viabilizar as mudanças reclamadas pela sociedade, transmitem, conservam e produzem lembranças e comportamentos proibidos, desqualificados ou ignorados pelos discursos e pelas representações predominantes (MORAES, 2005, p. 98).

Esta relação é explorada por Jô Gondar (2016, p. 19) ao explicar as diferenças onde “a memória concebida enquanto produção do poder – destinada à manutenção dos valores de um grupo – não é equivalente à memória pensada enquanto componente ativo dos processos de transformação social e de produção de um futuro”.

Atestar a memória social como uma síntese das disputas de narrativas e exercícios de poderes nos coloca, em mesma via, a retomar os escritos de Gramsci (2002, p. 36) nos tratados sobre hegemonia que direcionam este ser um “problema das relações entre estrutura e superestrutura que deve ser posto com exatidão e resolvido para que se possa chegar a uma justa análise das forças que atuam na história de um determinado período e determinar a relação entre elas”. De tal modo, é justo identificar que a síntese da memória social é um fruto das correlaçãoes de forças travadas entre hegemonia e contrahegemonia no palco presente e orientando-se ao devir. Os escritos de Moraes (2005, p. 94) bem conjugam estes termos ao considerar que memória social é expressão política, toando que

A memória se constitui como poder, como um contrato e uma luta pela imposição de uma hegemonia, não conseguindo e não pretendendo ‘dar conta’ da complexidade social e dos processos em curso. Ao contrário, sua dimensão de poder e, portanto, sua eficácia dependem da política, cuja pretensão de controlar ou orientar a memória social é expressão dos interesses em luta.

Na sociedade capitalista em que o direito ao registro das coisas vividas finca-se em exercício de poder, é justo notar a dinâmica de produção contrahegemônica de notícias a fim de disputar a narrativa como um ato de desobediência às regras do jogo; e que, sem elas, pouco conheceríamos sobre as versões que se opõem a norma social. Esta relação, por sua vez, sempre foi desafiadora em tempos de mediação de conteúdo por empresas de radiodifusão. Em nossos tempos, marcados pela midiatização da vida e da política em plataformas digitais, vivemos no início da década de 10 uma crescente sensação onde as possibilidades de disputar

52 o sentido do mundo por meio deste espaço era uma importante e potente trincheira – relação de onde partem as questões fundamentais deste trabalho.

Por isso, “quando o ‘fato’ político é a própria utilização da mídia como instância política, a linguagem produzida pela mídia em si, peculiar a cada veículo de comunicação, implica uma nova forma de se fazer política” (NUNES, 2018, p. 7). Ao toar sobre o local das práticas contrahegemônicas, não estamos tratando, por conseguinte, de uma queda de braços egóica; mas da expressão insurgente da versão histórica dos inarráveis que não coubera nos meios oficiais, agora impressas e circuláveis em plataformas que estabelecem o contraditório porque

o discurso produzido pela mídia possui traços que nos permitem estabelecer analogia com uma estrutura pertinente ao indivíduo, como a histeria; e possibilita o reconhecimento de que este quadro é caracterizado pela apropriação do real, do cotidiano e de suas questões por meio de uma irradiação; e não por pertencimento e vinculação real entre os individuos. Então, será necessário pensar saídas, veredas, que possam firmar-se como alternativas não-patológicas” (PAIVA, 2003, p. 53)

Na caminhada dos movimentos sociais brasileiros, como explora Nunes (2018) e Gohn (2013; 2017), adota-se uma compreensão onde os grupos historicamente silenciados adotam uma prática de contestação de disputa de narrativas a fim de comporem, da melhor forma possível – com dignidade e numa fotografia justa onde se situem parte da representação ali contida – para comporem a memória social dos fatos ocorridos. É fundamental aferir que a produção contrahegemônica é, essencialmente, lugar de memória como destaca o trabalho de Henriques, Braga e Mafra (2007, p. 80) ao refletirem sobre a produção de sentidos pelos movimentos sociais, pois lidam com

um dado da realidade, permitindo a confluência de interesses relacionado a esse dado para a existência do movimento; da relação da memória do movimento e seus antecedentes, fazendo uma comparação da luta atual com referências históricas ao eco das lutas passadas; ou da tradução e incorporação da causa do movimento, dos propósitos por ele defendidos, sua palavra de ordem, estimulando reelaborações culturais do movimento através de seu público.

O acesso aos mecanismos e estratégias de comunicação, através do “uso dos meios técnicos43 dá aos indivíduos novas maneiras de organizar e controlar o espaço e o tempo” (THOMPSON, 1998, p. 29). Para tal, o exercício dos processos críticos44 onde os

43 - Thompson considera como ‘meio técnico’ todos os elementos materiais pelos quais a informação e o conteúdo simbólico é fixado ou transmitido (1998, p. 30)

53 perfis se propõem a analisar e executar respostas qualitativas às produções jornalísticas, bem como as dinâmicas de redescrição dos fatos, caracterizado pela capacidade de recontar ocorridos vivenciados pelos indivíduos “de maneira que eles possam se perceber como participantes na construção da história coletiva e, consequentemente, possam se qualificar como membros da comunidade atual resultante desse processo histórico” (PAIVA, 2007, p. 141), tem se constituído como mecanismos essenciais para viabilidade interventiva nos circuitos contrahegemônicos.