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6. PISTAS, EVIDÊNCIAS E ANÉDOTAS PARA VERSAR TEMPO

6.1 Dos códigos de memória em tempos de efêmero

Apesar das análises críticas até aqui expostas sobre o uso e manejo do Facebook nas ocupações universitárias de 2016 no Ceará, não negamos que estas páginas constituem dispositivo de memória. Apesar de notarmos que poucas se inserem em disputa de narrativa, elas exprimem o teor de registro e, dito isto, conferem ao caráter de arquivamento de informações em comunicação e composição virtual de espaços de memória na virtualidade (ANDRADE, 2016, p. 45), a adoção de páginas no Facebook nos termos já escritos o insere como lugar de memória, porque sua “razão fundamental de ser […] é parar o tempo, é bloquear o trabalho do esquecimento, fixar um estado de coisas, imortalizar a morte,

145 materializar o imaterial para [...] prender o máximo de sentido num mínimo de sinais”, como dissera Nora.

Entendemos que o percurso digital cravado sobre os atos disruptivos, em alguma medida, “deixam registros que ajudam a criar uma memória e a construção de um imaginário sobre o tema em tela, criam códigos linguísticos que estabelecem uma gramática e símbolos que passam a ser compartilhado” (GOHN, 2017, p. 25) – medida esta que só é possível calcular em análises que se debrucem à luz dos quesitos ponderados no capítulo anterior sobre produção de memória social. Assim, o ato de rua ganha as redes sob a vista dos que se colocam em oposição à ordem. A circulação em ambiente virtual da peças imagéticas e audiovisuais que retratavam a repressão violenta de militantes nas mãos das forças armadas em detrimento dos tempos que convencionam a cobertura e produção jornalística é um exemplo cabível, para enquadrar as formulações de Assmann (2011a, p. 230) onde “a enxurrada de imagens torna obsoleta a escrita enquanto principal medium da memória; novas tecnologias de armazenamento e informação baseiam-se em um novo tipo de escrita: a escrita digital que, em sua forma fluida, nada tem a ver com o antigo gesto da inscrição”, radicando o expoente de novos códigos de memória em decorrência desta nova arena pública e seus protocolos de registro.

Em documento publicado em 2009, para convencionar protocolos para preservação de patrimônios digitais, a UNESCO entende este como o “composto de materiais digitalizados de valor permanente que devem ser mantidos para as gerações futuras. O patrimônio digital emana de diferentes comunidades, indústrias, setores e regiões. Nem todos os materiais digitais são de valor duradouro, mas aqueles que são exigem preservação ativa.” Portanto, interessa a nível de preservação frente às tecituras de seleção aqueles itens tidos como essenciais para conjugação da memória social de um dado ocorrido.

Em meio à hiperprodução de conteúdo em variadas plataformas, se estabelece uma dinâmica de crivo que se dá em duas facetas: de um lado, as postagens com amplo alcance e capazes de agendar ações sociais e impactar a ordem cotidiana dos fatos; portanto, com maiores possibilidades de disputa de narrativa; por outro lado, o excesso das ações e comentários decorrentes pode ser apenas excedente e automaticamente descartado pelos provedores. Temos, do ponto de vista do circuito do patrimônio digital, uma lógica excludente e que versa o oposto aos ideais utópicos de uma internet democrática que valoriza todas as vozes e participações.

Em tempos em que a internet ocasiona digitalização das relações e interações humanas, a memória e sua produção também são influenciadas por essa nova dinâmica onde a

146 escrita digital e tudo que é registrado através das redes sociais toma parte de uma nova esfera pública – de caráter essencialmente privado – que demanda regulamentação democrática. Isto não quer dizer que haja um abandono às formas tradicionais ou materiais de arquivamento e registro das coisas que fazem sentido e são tidas como justas a serem lembradas: os dois âmbitos convivem lado a lado, mas se inserem de formas diferentes na disputa e produção da memória social.

Duas décadas depois ainda fazem sentido os postulados por Huyssen (2000, p. 20) que preconiza a relação onde “quanto mais nos pedem para lembrar, no rastro da explosão da informação e da comercialização da memória, mais nos sentimos no perigo do esquecimento e mais forte é a necessidade [dos grandes capitalistas] de esquecermos”. Temos, nesta dinâmica, uma relação privilegiada dos detentores dos meios que sistematizam informações em rede, produzem relatórios sobre performance virtual e tudo podem lembrar sobre os usuários a fim de estabelecer dinâmicas lucrativas; enquanto as pessoas que utilizam as plataformas, em decorrência da quantidade gigantesca de informações, tem no exercício de lembrar uma ação cansativa resultante não mais das experiências que preconizam signos de memória, mas da natureza midiatizada experienciada pelas maiorias sociais que a vida assumiu nesta década e no acesso aos lugares de memória agora disponíveis em rede. Trazer esta observação é preocupar-se, assim como Palfrey e Gasser (2011, p. 62), que “o problema com relação ao rápido crescimento dos dossiês digitais é que as decisões sobre o que fazer com as informações pessoais são tomadas por aqueles que detêm as informações” e não pelo usuário.

Os lugares de memória em ambientes digitais – entendendo que estão sob arquivo de ficheiros privados – para não se perderem devem ser arquivados pelos sujeitos envolvidos com os objetos que dizem respeito. Ao versar sobre “A memória, a história e o esquecimento”, Ricoeur (2007) já advertia sobre o esquecimento e o apagamento dos rastros e das parcelas menos oportuna aos detentores de poderes para tal como uma prática social real e que atenta contra a democracia, contra o exercício das diferenças em ação de imposição da memória que silenciam que não dispõe dos mesmos mecanismos. No texto, o autor evoca que o esquecimento em termos sociais se difere dos termos clínicos, porque não estamos lidando com uma distorção da memória a partir de fenômenos biológicos. Temos, aqui, uma relação onde o exercício de artefatos que permitem a um conjunto de informações circular e serem credibilizadas por um conjunto de pessoas em interface a um cenário social múltiplo e diverso são fatores fundamentais para o exercício de lembrar e esquecer, de tomar por verdade ou falso ou, simplesmente, de fazer sentido.

147 Retomando o corpus, é imprescindível notar que elas permaneciam ativas até nossa última visualização em prática de análise, em 12 de janeiro de 2020. Já sem realizar postagens, as páginas se tornaram um lugar digital de memória das experiências cotidianas ali registradas. As análises já apresentadas desta dissertação demarcam que a intervenção dos estudantes no Facebook produziu, no Ceará, um conjunto de seis páginas, onde: @ocupaurca2016, @ocupaufca e @ocupartes conseguiram se situar com mecanismos para disputa de narrativa e composição de memória para um público pequeno e delimitado; @grevesestudantilUFC apresentou sua versão para um público médio de pessoas; e @ocupaifce e @ocupaunilab não se inseriram na dinâmica virtual de contraposição de ideias. Comparar o baixo desempenho destes em face à circulação das matérias jornalísticas em plataformas impressas, audiovisuais e online, da intervenção virtual dos contramovimentos e da publicidade institucional do Governo Federal em multiplataformas é, mais uma vez, reiterar o referencial teórico deste trabalho que assume a disputa de narrativas para composição de memória social como um exercício social de poderes. E, nisto, as experiências contrahegemônicas já iniciam em desvantagem.

É válido que lembrar que o caminho onde as múltiplas versões são processadas em upload84 na rede e esta prática, no contexto de “construção de uma memória digital, por ser continuamente sobrescrita, implica o esquecer e o recordar, numa relação em que os dois coexistem sem qualquer possibilidade de síntese, mas inseparáveis”, como já estabelecera Jô Gondar (2016, p. 31), pois elas não se fixam a um espaço, podendo ser constantemente retomadas e acionadas, segundo a interação de usuários e retorno ao circuito de mediação algorítmica – já discutido neste capítulo.

Neste cenário, poucas publicações – decerto as quatro que contém mais de 100 comentários e, por sua vez, as que possuem maior engajamento – possam vir a compor o patrimônio digital nos termos proferidos pela UNESCO. Por isso, neste trabalho, realizamos a extração da totalidade de dados, conteúdos e arquivos digitais das páginas analisadas a fim de mantê-los acessíveis quando, porventura, estes canais não mais existirem – ou quem sabe quando o Facebook não mais existir, tal qual o Orkut85. Esta medida protetiva se dá na compreensão de que não se pode deixar na mão dos provedores e dos monopólios digitais a responsabilidade do cuidado com os caracteres da narrativa que conjugamos e na valorização das produções estudantis que compõem lugares de memória.

84 - Na linguagem virtual significa o ato de subir conteúdo e/ou carregar arquivos na internet.

85 - Orkut foi uma plataforma de redes sociais virtuais operada pela Google e que possuía ampla adesão entre brasileiros, até deixar de operar em 2014.

148 O fim do último século, nos postulados de Marcondes (1996, p. 309), deixou como legado aos estudos de comunicação a percepção de que “o instante cede à memória informática e a vida torna-se midiatizada, auto-referenciada”. Refletir que esta análise já era feita antes da popularização do acesso à internet no Brasil e do surgimento das dinâmicas em redes sociais virtuais abre-nos a compreensão de que estes transformaram não só o funcionamento tecnológico das coisas, mas estabeleceram uma nova lógica existencial e de sociabilidade entre nós humanos.