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A dissolução da fronteira entre o público e o privado 

HISTORIOGRAFIA OFICIAL

2.1 A necessidade de repropor a cidade

2.1.3 O vazio como espaço projetado

2.1.3.2  A dissolução da fronteira entre o público e o privado 

Como  exposto  anteriormente,  arquiteturas  de  vanguarda  apresentam  a  intenção  de  romper com a cidade tradicional. Para isso, a estratégia adotada pela arquitetura modernista é a  negação  ou  adulteração  de  aspectos  presentes  em  antigos  tecidos  ou  em  atuais  que  ainda  flertam  com  este  passado  a  ser  refutado.  Assim,  o  urbanismo  do  Movimento  Moderno  –  especialmente  o  difundido  através  dos  CIAM´s  –  quando  propõe  o  modelo  de  múltiplos  pavimentos, pretende tornar o solo um bem público e, dessa forma, o limite do que é privado  resume‐se  apenas  aos  apartamentos,  sendo  sociais  as  demais  áreas  de  circulação  horizontal  e  vertical, de recreação e de serviços. Esse objetivo é louvável dado à condição das classes sociais  menos  favorecidas,  cujos  espaços  confinados  que  ocupam  na  virada  do  século  XIX  para  o  XX  limitam  e  sufocam  –  não  apenas  espacialmente  –  mas  também  socialmente.  Essa  intenção  também tem relação com a Revolução Russa de 1917, que decreta o fim da propriedade privada  no  território  soviético,  tornando  o  solo  um  bem  público  (KOPP,  1990).  A  lógica  modernista  entende  que,  se  há  um  adensamento  através  de  estruturas  verticais  na  qual  um  determinado  número de habitantes divide em diferentes níveis a mesma área de solo, deve haver um espaço  livre equivalente para lhe dar suporte. 

Para o Movimento Moderno, os edifícios são os principais elementos de transformação  do  espaço  urbano  e  da  sociedade;  eles  tornam‐se  instrumentos  de  uma  revolução  social  e  da  tentativa  de  educar  o  homem  moderno  à  vida  moderna  coletiva  e  livre  de  ostentações.  Os  edifícios  modernistas  também  assumem  a  função  de  ser  quadra  e  lote  e,  em  alguns  casos, 

praticamente  tornam‐se  mini‐cidades  devido  à  mistura  de  usos  e  funções  que  passam  a  incorporar.  

O  espaço  livre  térreo  é  frequentemente  apenas  o  elemento  de  ligação  destinando‐se  essencialmente à circulação entre blocos. Não se observa nestes espaços a intenção de torná‐los  uma  praça  de  permanência,  mas  sim,  uma  esplanada,  elo  entre  diferentes  volumes  que  congregam funções. Não é regra o emprego do paisagismo no nível térreo, apesar de recorrente  em alguns projetos de grande porte como no Museu de Arte Moderna‐MAM (1953‐68) no Rio de  Janeiro  de  Affonso  Reidy.  Em  muitos  casos,  o  paisagismo  desenvolve‐se  principalmente  nos  terraços  e  não  no  solo,  invertendo  a  concepção  tradicional  de  áreas  ajardinadas.  Os  espaços  livres térreos tornam‐se mais um hiato que separa as propostas arquitetônicas modernistas do  perigo de ter que se adequar à cidade tradicional. (figura 65)    FIGURA 65: Vista aérea da maquete do Plan Voisin para Paris (1922‐ 25) de Le Corbusier e Pierre Jeanneret               Fonte: FRAMPTON, 2001, p. 53   

Em  áreas  de  expansão,  como  apresentado  na  seção  2.1.3.1,  torna‐se  mais  viável  a  ruptura completa com as tradições. Lúcio Costa, em entrevista concedida a Juan Antonio Zapatel  (2009), ao falar sobre como imaginava os espaços térreos abertos das superquadras, demonstra  o desejo de deixa‐los sem predefinições, como um espaço livre de um ordenamento prévio: 

Gostaria que fossem até mais livres, mais a moda inglesa, aqueles parques ingleses  que  têm  o  chão  gramado  sem  definir  muito  caminhos,  ter  alguns  encaminhamentos naturais. O gramado é um lugar mais para uso, não um gramado  daquele tipo “não pise na grama”, ao contrário “pise na grama”, um gramado para  você usar, como se fosse um tapete verde, as pessoas sentam, põem suas cadeiras  ai se quiserem, deitam, ficam ali, usam, brincam a vontade! Se o pisoteio gastasse  certa  área,  não  teria  importância,  depois  recuperava‐se.  Mas  começaram  logo  a  urbanizar,  fazer  caminhos,  com  muito  espaço  asfaltado  sem  necessidade.  (ZAPATEL, 2009, s.n.) 

 

Nas  sete  propostas  premiadas  no  concurso  para  o  projeto  de  Brasília  (BRAGA,  2010),  realizado  entre  1956  e  57,  observa‐se  a  disposição  de  volumes  sobre  amplos  espaços  abertos  interrompidos  apenas  pelas  vias  de  circulação  para  pedestres  e  automóveis.  Esta  é  a  utopia  modernista  cuja  execução  nem  sempre  é  possível.  Em  áreas  consolidadas,  a  dificuldade  de  realização  desta  intenção,  apresenta  soluções  em  pequena  escala  a  serem  demonstrada  na  sequência. 

Os  lotes  em  cidades  consolidadas  contam  com  pré‐definições  impostas.  Edificações  vizinhas, cujo compromisso não é com o redesenho, muitas vezes minam ou tornam pontuais e  isoladas as propostas modernistas. A dimensão reduzida de alguns lotes também pode ser um  item  inviabilizador  da  possibilidade  de  redesenho.  Além  disso,  a  legislação  urbana  também  se  torna  um  entrave  ao  exigir  determinados  posicionamentos  do  edifício  no  lote  e  soluções  a  depender dos usos que apresentam. Por exemplo, nas cidades brasileiras do período é frequente  serem implantados os edifícios de uso comercial térreo junto aos alinhamentos do lote, seja isso  assegurado  através  de  recomendações  em  códigos  de  postura  locais  ou  pelo  hábito  e  perpetuação  da  prática  comum.  O  Edifício  CBI  Esplanada,  de  1951,  em  São  Paulo,  projeto  de  Lucian  Korngold  (figura  66),  e  o  Edifício  Caramuru,  de  1946,  em  Salvador  de  Paulo  Antunes  Ribeiro  (figura  67)  implantam‐se  “colados”  as  divisas  dos  lotes.  Mesmo  assim,  os  edifícios  são  louvados pela crítica, inclusive internacional, pela arquitetura modernista que apresentam.   

   

FIGURA 66: Croquis planta pavimento térreo e vista geral do Edifício CBI Esplanada projeto de Lucian Korngold  em São Paulo/SP 

 

   Fonte: Própria autora, 2011, sobre base Revista L’Architecture d’aujourd d’hui – Brésil [Edição sobre o Brasil], s.d.     FIGURA 67: Croquis planta pavimento térreo e vista geral do Edifício Caramuru projeto de Paulo Antunes Ribeiro  em Salvador/BA  Fonte: Própria autora, 2011, sobre base Revista L’Architecture d’aujourd d’hui – Brésil [Edição sobre o Brasil], s.d.  

Em  termos  formais,  ambos  seguem  o  receituário  corbusieriano,  com  terraço‐jardim,  planta  livre  e  pilotis.  O  Edifício  Caramuru  apresenta  como  diferencial  o  uso  de  brises‐soleil  móveis para a proteção das fachadas da incidência solar composto por um tramado que permite  a  vista  para  o  mar;  já  o  CBI  Esplanada  possui  as  fachadas  voltadas  para  as  vias  dotadas  de  aberturas seriadas que podem remeter à arquitetura de edifícios norte‐americanos. A dimensão  e  forma  dos  respectivos  lotes,  as  exigências  dos  programas  e,  possivelmente,  a  legislação  vigente,  não  autorizam  o  redesenho  tal  qual  é  possível  nas  áreas  de  expansão,  mas  o  compromisso pode ser identificado. Este está no uso de pilotis que se destacam do volume no  nível  térreo,  condição  que  cria  a  ilusão  de  soltura  em  relação  ao  solo.  O  fato  de  se  destinar  o  térreo  para  lojas  comerciais  e  o  acesso  à  torre  estar  em  ambiente  independente  das  lojas  reforça, de certa maneira, o desejo de tornar mais pública e acessível esta porção da edificação.  O  fechamento  em  vidro  permite  que  o  exterior  e  o  interior  estejam  conectados,  mesmo  que  apenas visualmente. No caso do CBI Esplanada, o destacamento dos pilotis na fachada voltada  para a Rua Nereu Ramos é ainda mais fortalecido pelo pequeno recuo em relação à via. 

O  uso  de  loggia  no  térreo,  ou  seja,  a  possibilidade  de  percolação  através  de  recuo  coberto  criado  para  sequencia  de  pilotis,  pode  ser  também  considerada  uma  estratégia  de  redesenho quando é interno ao lote, pois confunde o público com o privado. O Edifício Banco  Boa  Vista  (1946),  projeto  de  Oscar  Niemeyer  no  Rio  de  Janeiro  (figura  68)  apresenta  a  loggia,  mas esta parte de uma imposição já estabelecida pela legislação vigente na área. Sendo assim, a 

loggia forma um conjunto com as demais edificações vizinhas, diferente do que ocorre na figura 

47, apresentada na seção 2.1.1 onde a solução fica isolada a restrita apenas ao lote.  

No  caso  do  Banco  Boa  Vista,  a  loggia  não  é  interna  ao  lote  e  sim  externa,  parte  da  calçada,  portanto,  o  espaço  público  e  o  privado ainda  se encontram  bem  definidos  através  do  volume  edificado  no  nível  térreo.  Apesar  disso,  neste  projeto  Niemeyer  se  mantém  fiel  ao  compromisso  modernista  ao  propor  um  espaço  térreo  amplo  e  sobre  pilotis  para  a  sede  do 

banco e um acesso individualizado para as torres. Na fachada para a Rua da Quitanda a parede  ondulante de tijolos de vidro, desvia‐se dos pilotis que, com isso, ficam do lado externo. Dessa  forma, apesar da sutileza da proposta, o redesenho está presente, já que os pilotis que são parte  interna do edifício localizam‐se no exterior, confundindo o público com o privado.  FIGURA 68: Croquis planta pavimento térreo, vista aérea e a partir das vias do Edifício Banco Boa Vista projeto  de Oscar Niemeyer de 1946 no Rio de Janeiro/RJ    Fonte: Própria autora, 2011, sobre base Mindlin, 2000 e Google Earth/ Google Street View  <www.googleearth.com>, acesso em Jul. 2011   

As  propostas  dos  Irmãos  Roberto  no  Rio  de  Janeiro,  tais  como  o  Edifício da  Associação  Brasileira  de  Imprensa  (ABI)  de  1936  e  o  Edifício  Instituto  de  Resseguros  do  Brasil,  de  1941  (respectivamente figuras 69 e 70), viabilizam do modo mais contundente a liberação de espaço  público no lote privado. Em suas propostas, o térreo destina‐se ao uso comercial, mas também  nele é criado um espaço aberto. No Edifício da ABI, o hall de acesso à torre é alargado, tornando‐

se  não  apenas  uma  repartição,  mas  sim,  praticamente  a  extensão  da  calçada.  A  curvatura  da  parede  da  loja  que  limita  a  área  livre  torna‐se  quase  um  convite  ao  fluxo  e  percurso  por  este  novo espaço. (figura 69)  FIGURA 69: Croquis planta pavimento térreo e vista aérea do Edifício Associação Brasileira de Imprensa projeto  dos Irmãos Roberto de 1936‐38 no Rio de Janeiro/RJ  Fonte: Própria autora, 2011, sobre base MINDLIN, 2000 e Google Earth <www.googleearth.com>, acesso em Jul.  2011    No caso do Edifício do Instituto de Resseguros, a situação urbana do lote de esquina em  quadra estreita que possibilita ao edifício apresentar duas frentes voltadas cada qual para uma  via diferente, permite aos arquitetos explorarem tal condição e tornar o térreo do edifício uma  área de ligação (figura 70). A elevação sobre pilotis libera um grande espaço abaixo do volume  edificado e neste ponto localizam‐se, sem impedimentos, os elevadores para a torre e a escada  helicoidal de acesso ao mezanino, ou seja, a área livre é o próprio hall de acesso à torre (imagem  na  figura  70).  O  acesso  de  serviço  e  para  a  garagem  conforma  outra  área  livre  de  menor  dimensão  na  outra  extremidade,  também  aberta  ao  livre  acesso.  O  trecho  do  volume  térreo  edificado é dividido em duas lojas, recuadas em relação à divisa, de modo a deixar livre os pilares  em relação às vitrines. Atualmente parte da configuração de pilotis livres deste edifício já está 

perdida,  pois  o  hall  de  elevadores  e  a  escada  helicoidal  encontram‐se  contidos  em  prolongamento construído do volume térreo.  

FIGURA  70:  Croquis  planta  térreo  e    vista  do  Edifício  Instituto  Resseguros  do  Brasil  projeto  dos  Irmãos Roberto de 1941‐42 no Rio de Janeiro/RJ      Fonte: Própria autora, 2011, sobre base MINDLIN, 2000 e Google Earth <www.googleearth.com>,  acesso em Jul. 2011   

  Portanto,  os  pilotis  tornam‐se  uma  importante  estratégia  de  redesenho  por  “desprender”  o  edifício  do  solo.  Se  não  é  possível  liberá‐lo  completamente  em  áreas  consolidadas, a sua presença no nível térreo, seja através da criação de loggia´s ou da liberação 

de  parcelas  de  área  térrea  da  ocupação  por  massa  edificada,  refletem  o  compromisso  e  a  tentativa  de  ser  fiel  aos  princípios  modernistas.  Em  áreas  consolidadas,  os  principais  beneficiados  no  emprego  de  pilotis  são  os  pedestres,  cujo  fluxo  pode  agora  acontecer  não  apenas  nas  calçadas  paralelas  às  vias,  mas  também  através  de  áreas  mais  generosas  e  sombreadas  obtidas  dentro  dos  lotes  privados.  Sendo  assim,  há  no  uso  de  pilotis  uma  forte  intenção  de  redesenho  e  de  reconfiguração  da  cidade  tradicional,  mas  isso  nem  sempre  consegue realizar‐se plenamente devido às questões legislativas de uso do solo e complexidade  de programas, como demonstrado nos casos do CBI Esplanada e do Edifício Caramuru.  

[...] o pilotis é usado pelos modernos para liberar o solo da ocupação do prédio e,  desse modo, acabar com a demarcação rígida interior/exterior, fazendo com que a  área  do  térreo  se  integre  ao  espaço  urbano  e,  por  consequência,  à  circulação  de  pedestres.  Trata‐se  de  criar  espécie  de  “praça  coberta”,  espaço  de  passagem  ou  permanência, no caso de prédios públicos[...].  (CAVALCANTI, 2006, p. 70)      FIGURA 71: Maquete de Edifício de apartamentos, projeto de 1948 de Rino  Levi e Roberto Cerqueira Cesar: galeria para lojas com acesso no nível térreo,  subsolo para garagem e terraço para área de lazer aos moradores da torre                                  Fonte: Revista Acrópole n°176, ano 15, Dezembro 1952, p.276   

De  certa  maneira,  criação  de  galerias  comerciais  nos  edifícios  também  é  a  intenção  de  sociabilização  do  pavimento  térreo  das  edificações.  Apesar  do  uso  do  térreo  ser  confinado  e  condicionado pelos horários de funcionamento das lojas, as galerias estabelecem novas rotas de  percolação  através  do  interior  do(s)  lote(s)  ou  quadra,  antes  impossibilitadas  pelas  massas  edificadas.  Nestas  propostas  é  comum  destinar  à  laje  acima  da  galeria  térrea  e  sobreloja  o  terraço como espaço livre para os usuários da(s) torre(s). Desse modo, estes edifícios tornam‐se  complexos  habitacionais  com  o  objetivo  de  serem  praticamente  autônomos,  com  o  local  do  trabalho, de habitar e de lazer congregados em uma mesma estrutura. (figura 71)  FIGURA 72: Conjunto JK em Belo Horizonte/ MG, projeto de Oscar Niemeyer   Fonte:Própria autora, 2011, sobre base Revista Brasil Moderno, s.a. e Google Earth <www.googleearth.com>,  acesso em Jul. 2011    O Conjunto JK, em Belo Horizonte, projetado em 1952 por Oscar Niemeyer (figura 72), é  formado  por  duas  torres  (A  e  B  na  imagem)  sendo  uma  destinada  originalmente  a  edifício  de  apartamentos residenciais e a outra a uma rede hoteleira; na base, uma galeria térrea serve de  apoio  para  as  torres,  ocupando  inteiramente  as  respectivas  quadras.  A  laje  acima  da  galeria  e  sobreloja tona‐se a área livre destinada ao usufruto dos usuários e moradores do conjunto. No 

Conjunto  JK  foi  previsto  um  Museu  de  Arte,  cinema,  repartições  públicas,  restaurantes,  mercado,  garagem,  etc.,  congregando  em  uma  única  estrutura  as  necessidades  para  a  vida  moderna.  

Novo  empreendimento  de  grandes  proporções  está  em  andamento  em  Belo  Horizonte:  o  Conjunto  Kubistchek,  verdadeira  cidade  vertical  cuja  construção  se  encontra  bem  adiantada.  Além  de  apartamentos,  um  grande  hotel  e  dezenas  de  lojas  e  restaurantes,  o  Conjunto  terá  em  seu  primeiro  pavimento  um  Museu  de  Arte, no jardim suspenso, uma piscina que será a mais bela e original da moderna e  progressista capital mineira. (Revista Brasil Moderno, s.a., s.n., grifo nosso) 

 

Uma particularidade da proposta é que cada torre em conjunto com a galeria térrea está  localizada e ocupa uma quadra diferente, ou seja, uma via pública interrompe a continuidade no  nível  térreo  entre  os  dois  blocos,  mas  esta  ruptura  é  resolvida  no  projeto  com  a  colocação  de  uma  rampa  no  pavimento  acima  das  galerias  térreas  que,  portanto,  passaria  por  sobre  a  rua  ligando os dois terraços. A solução para a ligação entre os blocos é praticamente como a solução  do edifício‐ponte nos conjuntos habitacionais alemães, mas, neste caso, a ponte se torna uma  rampa  helicoidal.  Esta  ligação  não  é  executada  e,  apesar  dos  blocos  serem  visualmente  conectados pelo desenho e disposição das torres, fisicamente a ligação não se estabelece. 

Os conjuntos habitacionais que reúnem em uma única estrutura diversas funções estão  fortemente  influenciados  pelas  Unité  d´Habitation  de  Le  Corbusier,  onde,  através  de  uma  estrutura verticalizada, são distribuídas as células residenciais de habitação, “ruas” comerciais e  de  serviços,  creches,  áreas  esportivas  etc.  O  modelo  é  criado  na  década  de  1940  como  uma  proposta  de  reconstrução  francesa  pós‐guerra.  Quatro  Unité  são  construídas  na  França  (Marselha, 1947; Nantes, 1955; Briey en Forêt, 1963; Firminy, 1965) e uma em Berlim (1958). 

As  galerias  comerciais,  ao  ocuparem  toda  a  quadra  ou  lote,  não  rompem  com  a  implantação  em  rua‐corredor,  mas  permitem  às  torres  a  liberação  dessa  forma  tradicional  de  relação  com  a  via.  Nesses  conjuntos  é  comum  encontrar  a  disposição  da  torre  ou  torres  e  de  demais  elementos  construídos  nos  terraços  acima  das  galerias,  de  uma  forma  assimétrica 

própria  das  concepções  modernistas  (aspecto  apresentado  na  seção  2.1.3.1).  Este  é  o  caso  do  Conjunto Nacional em São Paulo (figura 88) e do Conjunto JK (figura 72), entre outros. Se o uso  comercial térreo exige uma implantação tradicional pela legislação vigente na época, cria‐se um  novo  solo  através  dos  terraços  sobre  as  galerias  para  a  implantação  de  torres  e  volumes  desprendidos da obrigação de paralelismo. 

A  conclusão  atingida  nesta  seção  reitera  aquela  apresentada  na  seção  2.1.3.1:  é  nas  áreas de expansão, ou seja, nos locais mais afastados das áreas de concepção urbana tradicional,  onde se torna mais viável a dissolução da fronteira entre o público e o privado através da criação  de  esplanadas.  Além  disso,  propostas  em  lotes  de  maiores  dimensões  também  favorecem  o  intento de democratizar as áreas térreas, caso o arquiteto ou projetista tenha esta intenção. No  exemplo  do  projeto  de  Niemeyer  para  a  Fundação  Getúlio  Vargas  (figura  49),  apesar  da  audaciosa  proposta  de  estender  a  tipologia  para  toda  a  área  à  frente  da  praia  do  Botafogo,  a  limitação do projeto a apenas um trecho, inviabiliza completamente esta realização.  

Como  a  organização  do  espaço  modernista  orienta‐se  apenas  através  dos  elementos  construídos, se estes não são materializados, perde‐se a idéia, a não ser que haja uma legislação  que  obrigue  tal  disposição.  O  fato  das  construções  serem  dispostas  de  modo  assimétrico  equilibrado em uma composição fechada, com o discutido na seção 2.1.3.2, também não deixa  de ser uma estratégia de garantir a permanência do vazio, já que novas inserções dificilmente se  acomodam harmonicamente aos elementos existentes.  Em áreas consolidadas a dificuldade de tornar público o espaço privado é maior, mas não  impossível. O quadro 11, sintetiza como estratégias de viabilizar a democratização dos térreos, a  destinação de uso comercial a estas áreas e a criação de áreas livres (sem uso) a partir da criação  de loggia´s e recuos. Em edifícios de uso institucional ou público a liberação de porção de térreo  pode  ser  mais  bem  assimilada,  já  que  não  há  a  obrigação  direta  de  lucro  com  o  empreendimento. Este é o caso do Edifício do MES e dos projetos dos Irmãos Roberto (Edifício 

ABI e Edifício Resseguros do Brasil). Neste dois últimos, a solução de aparente “desprivatização”  de parcela do lote térreo parte mais de um compromisso estabelecido pelos próprios arquitetos  com a nova arquitetura do que de imposições externas e de necessidades programáticas. Mas  exceções  na  iniciativa  privada  também  são  encontradas,  como  no  caso  do  Edifício  Louveira  (figura  51)  que  libera  área  entre  os  dois  blocos  residenciais  para  o  uso  livre,  a  partir  da  via  pública. 

QUADRO 11: Estratégias modernistas para dissolver a fronteira entre público e privado em áreas consolidadas 

Fonte: Própria autora, 2011

 

FIGURA  73:  O  Edifício  Almirante  Barroso  no  Comércio  em  Salvador  em  dois  momentos  em  2008:  1.  no  dia  10/05 com a loggia livre para o fluxo e 2. no dia 05/09 com o espaço livre fechado por gradeamento    1. 2.   Fonte: Própria autora, 2008  

O grande desafio atual é a manutenção, como áreas livres, dos espaços liberados no nível  térreo dos edifícios das décadas de 1940 e 1950. Por se constituírem em lotes urbanos privados  apenas destinados a usos mais livres, atualmente se observa a fragilidade das soluções que se  perdem  por  fatores  relacionados  à  segurança,  privacidade,  dificuldade  ou  impossibilidade  de  manutenção,  interesses  individuais  ou  de  grupos  e  especulação  imobiliária.  As  estratégias  de  relativa liberação do nível térreo ao exclusivo uso privado é algo que, dentro de uma sociedade  capitalista de grandes desigualdades, pode não se sustentar. (figura 73) 

As  superquadras,  do  plano  de  Brasília,  podem  ser  consideradas  a  realização  da  nova  proposta  de  cidade  almejada  pelo  Movimento  Moderno.  Nelas,  definitivamente,  o  urbanismo  modernista  brasileiro  consegue  se  desvincular  da  cidade  tradicional  e  executa  a  utopia  do  espaço democrático.