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2.3 TEORIA DO PROCESSO, A CIÊNCIA E A NORMA

2.3.3 A distinção entre princípios e regras normativas

O tema princípio não é novo, tendo, inclusive, há muito se desfeito a noção legalista segundo a qual o princípio serviria tão somente como fontes subsidiárias, atuando apenas na colmatação de lacunas legais (VALIM, 2010, p. 35). Para o precitado autor, o aludido fenômeno da “principialização do Direito”, embora tenha resultado no reconhecimento da normatividade dos princípios, rompendo alguns dogmas positivistas, deu lugar a inúmeras dificuldades teóricas.

Para Valim (2010, p. 36), malgrado as teorias explicativas de Ronald Dworkin e Robert Alexy desfrutem de inelutável prestígio e validade, não podem ser adotadas de maneira absoluta, sob pena de “expropriarem o direito ao uso do termo ‘princípio’”, conforme dito por Bandeira de Melo, citado pelo autor referenciado, vez que desse modo passa a ser admissível apenas as acepções formuladas pelos teóricos citados e se desconsidera outros pontos de vista sobre a matéria e não menos válidos.

Não obstante essa ressalva, atualmente a norma se converteu a gênero, dos quais se encontram como espécies as regras e os princípios (VALIM, 2010, p. 36), apesar de que, segundo Ávila (2014, p.54), esta qualificação normativa depende de conexões axiológicas que não estão incorporadas ao texto nem a ele pertencem, mas são, antes, construídas pelo próprio interprete, o que não permite que o interprete seja livre para fazer as conexões entre as normas e os fins a cuja realização elas servem.

50 Nesse sentido, a atividade do interprete é construir a partir de algo, é reconstruir a partir dos textos normativos, os quais oferecem limites à construção do sentido, é manipular a linguagem, à qual são incorporados “núcleos de sentidos”, os quais são indissociáveis do seu uso e, por isso, preexistem ao processo interpretativo individual (ÁVILA, 2014). Assim, “o interprete deve interpretar os dispositivos constitucionais de modo a explicitar suas versões de significado de acordo com os fins e os valores entremostrados na linguagem constitucional” (ÁVILA, 2014, p. 55).

Nas palavras de Valim (2010, p. 37) o critério de distinção entre as espécies normativas reside na carga valorativa veiculada por cada uma, pois os princípios são normas de grande densidade valorativa, caracterizada por uma abstratividade mais acentuada frente às regras (LEITE, 2003, p. 33), as quais não tem a mesma “força expansiva” dos princípios, limitando-se a disciplinar uma específica situação fática, ao passo que, a norma principiológica ilumina uma maior região da ordem jurídica, permitindo sua interpretação e aplicação, diversamente das regras que não possuem essa amplitude.

Aliás, esse é um traço característico da estrutura da regra, pois sendo proposta mediante uma hipótese fática de incidência e um consequente lógico, predeterminam as decisões a partir de um silogismo entre as premissas propostas distinguindo-se dos princípios, pois estes apenas indicariam o fundamento a ser utilizado pelo aplicador para futuramente encontrar a regra para o caso concreto (ÁVILA, 2014, p. 60).

Contudo, a distinção entre princípios e regras ficou mais acentuada a partir da contribuição da tradição anglo-saxônica, capitaneada por Dworkin e que contribuiu decisivamente para o tema. Segundo explica Ávila (2014, p. 56), no estudo proposto por Dworkin, as regras são aplicadas ao modo tudo ou nada (all-or-nothing), no sentido de que, se a hipótese de incidência de uma regra é preenchida, ou é a regra válida e a consequência normativa aceita, ou ela não é considerada válida.

Havendo colisão entre regras, a presença da regra válida automaticamente invalida a outra, que passa a ser considerada inválida para o fato. Diversamente disto, os princípios não determinam absolutamente a decisão, mas somente contêm fundamentos, os quais devem ser conjugados com outros igualmente provenientes de outros princípios, daí, então, dizer que ao contrário das regras, os princípios possuem dimensão de peso (dimension of weight).

51 No caso de colisão entre princípios, estes diferentemente das regras, não se invalidam entre si, mas se resolvem com a prevalência de um frente ao outro igualmente válido, e que deve ser igualmente atendido, variando, conforme esclarece Ávila (2014, p. 58), em graus, de acordo com as possibilidades normativas e fáticas: “normativas, porque a aplicação dos princípios depende dos princípios e regras que a eles se contrapõem; fáticas, porque o conteúdo dos princípios como normas de conduta só pode ser determinado quando diante dos fatos”. São, portanto, deveres de otimização.

Com efeito, para Alexy, na exegese de Ávila (2014, p. 58) a distinção entre princípios e regras não pode ser baseada no modo de tudo ou nada, mas ao reverso da teoria proposta por Dworkin, deve resumir-se, sobretudo, a dois fatores explicitados pelo exegeta, nos seguintes termos:

[...] diferença quanto à colisão, na medida em que os princípios colidentes apenas têm sua realização normativa limitada reciprocamente, ao contrário das regras, cuja colisão é solucionada com a declaração de invalidade de uma delas ou com a abertura de uma exceção que exclua a antinomia; diferença quanto à obrigação que instituem, já que as regras instituem obrigações absolutas, não superadas por normas contrapostas, enquanto os princípios instituem obrigações prima facie, na medida em que podem ser superadas ou derrogadas em função dos outros princípios colidentes. Ademais, não se pode desconsiderar que os princípios são dotados de funções peculiares, que os distinguem das regras, consoante lição de Valim (2010, p. 38) que as elenca em integrativa, interpretativa, limitativa e sistematizadora. De modo que, a função integrativa consiste na primeira função assumida pelos princípios jurídicos, remonta historicamente o mecanismo criado para permitir ao órgão judicante se valer dessa relevante função com o fito de proporcionar a solução ao conflito ínsito no caso concreto, carente de regra específica, e assim não infringir a proibição do “non liquet”.

Por sua vez, os princípios funcionam também como interpretes do texto normativo, em verdade, atendem como tradutores da norma, promovendo a sua construção no sentido e direção preconizados, indicando o sentido onde se encontra a norma jurídica. Já a função limitativa dos princípios, apresenta o princípio como parâmetro de validade da regra jurídica, dita qual a extensão da interpretação alcançada pela norma jurídica, isto é, “se uma regra discrepar do comando albergado por um princípio, estará ela inquinada de validade, sujeitando-se à expulsão da ordem jurídica”.

Esta última função dialoga com a função interpretativa, estabelecem uma relação no sentido de que enquanto a função interpretativa atua antes da edição da norma jurídica,

52 delimitando seu contorno e adequação com o resto do ordenamento jurídico, a função limitativa age depois de produzida a norma, reprimindo violações a princípios, desse modo, a função limitativa só opera quando inobservada a função interpretativa.

Por fim, a função sistematizadora dos princípios que destaca a função de proposições-mestras do sistema jurídico, é a função que o princípio ocupa enquanto fundação do edifício normativo, desempenhando a função de cimentação sistemática do ordenamento (LEITE, 2003, p. 32) e, consequentemente, irradiando seu conteúdo estimativo sobre as demais normas, conferindo unidade e coerência, ou melhor, nas palavras de Valim (2010, p. 42).

Assim, cada princípio unifica, sob o influxo do valor que carrega, uma plêiade de regras e de subprincípios, os quais, ao mesmo tempo que naquele sustentam, a ele dão concretude. Trata-se de um vínculo normativo que se estabelece, de modo que a desatenção a qualquer das manifestações do princípio implica ofensa ao próprio princípio.