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4. A ANÁLISE DO DISCURSO

4.16 A distinção locutor/enunciador

A origem do enunciado, quem enuncia, não é considerada necessariamente como uma forma de subjetividade e sim como um lugar (NOGUEIRA, 2001; CAPPELLE; MELO; GONÇALVES, 2003; IÑIGUEZ, 2004b). Nesse lugar de enunciação, os anunciadores são substituíveis e intercambiáveis. Nas palavras de Michel Foucault (1986):

Descrever uma formulação enquanto enunciado não consiste em analisar as relações entre o autor e aquilo que diz (ou quis dizer, ou disse sem querer); e sim em determinar qual é a posição que pode e deve ocupar qualquer indivíduo para ser o sujeito (p. 160).

O sujeito assume o status de enunciador que define a formação discursiva na qual se encontra. Isso não significa, no entanto, que cada formação discursiva só tenha um lugar de enunciação. Com efeito, distintos conjuntos de enunciados que se referem a um mesmo posicionamento podem se distribuir por uma multiplicidade de gêneros de discurso. A heterogeneidade de gêneros de uma formação discursiva contribui para definir sua identidade (IÑIGUEZ, 2004b).

Para isso a noção de formação discursiva é básica na AD, pois permite compreender o processo de produção dos sentidos, a sua relação com a ideologia e também dá ao analista a possibilidade de estabelecer regularidades no funcionamento do discurso (ORLANDI, 2003).

Para Orlandi (2003, p. 43): “a formação discursiva se define como aquilo que numa formação ideológica dada – ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio- histórica dada – determina o que pode e deve ser dito”.

Isso, segundo o mesmo autor, exige a compreensão de dois pontos:

a) O discurso se constitui em seu sentido porque aquilo que o sujeito diz se inscreve em uma formação discursiva e não outra para ter um sentido e não outro. Os sentidos não estão assim predeterminados por propriedades da língua. Dependem de relações constituídas nas/pelas formações discursivas. As formações discursivas não são blocos homogêneos funcionando automaticamente. Elas são constituídas pela contradição, são heterogêneas nelas mesmas e suas fronteiras são fluidas, configurando-se e reconfigurando-se continuamente em suas relações.

b) É pela referência à formação discursiva que podemos compreender, no funcionamento discursivo, os diferentes sentidos. Isso define em grande parte o

trabalho do analista: observando as condições de produção e verificando o funcionamento da memória, ele deve remeter o dizer a uma formação discursiva (e não a outra) para compreender o sentido do que ali está dito.

Para Iñiguez (2004, p. 130):

Com efeito, faz-se uma distinção entre o locutor - o emissor material - e o enunciador - o autor textual. O enunciador é, logicamente, diferente do locutor, já que esse é uma realidade empírica e o enunciador uma construção textual. O enunciador é o autor lógico e responsável pelo texto, mas também foi construído por ele, e ambos os aspectos são inseparáveis. Para Orlandi (2003) na sociedade atual temos uma forma-sujeito que representa uma contradição: é um sujeito ao mesmo tempo livre e submisso. Ele pode tudo dizer, contando que se submeta à língua para sabê-la. Isso é chamado de assujeitamento.

Observando através da noção de determinação, o sujeito gramatical cria um ideal de completude, participando do imaginário de um sujeito mestre de suas palavras: ele determina o que diz (ORLANDI, 2003).

O assujeitamento, que submete o sujeito e ao mesmo tempo o apresenta como livre e responsável, se faz de modo a que o discurso apareça como instrumento (límpido) do pensamento e um reflexo (justo) da realidade. Isso remonta à noção de literalidade que, na concepção lingüística imanente, é o sentido que uma palavra tem independente de seu uso em qualquer contexto. Daí seu caráter básico discreto, inerente, abstrato e geral. No entanto, na AD, tomando em conta a ideologia, somos capazes de aprender, de forma crítica, a ilusão que está na base da literalidade: o fato de que ela é produto histórico, efeito de discurso que sofre as determinações dos modos de assujeitamento das diferentes formas-sujeito na sua historicidade e em relação às diferentes formas de poder. Assim o falante não opera com a literalidade como algo fixo e irredutível, uma vez que não há um sentido único e prévio, mas um sentido instituído historicamente na relação do sujeito com a língua e que faz parte das condições de produção do discurso (ORLANDI, 2003; CAREGNATO; MUTTI, 2006).

Uma das características principais da AD é ressignificar a noção de ideologia a partir da consideração da linguagem. No entanto, é uma definição discursiva de ideologia que trabalha com o intuito de produzir evidências, colocando o homem na relação imaginária com suas condições materiais de existência (NOGUEIRA, 2001; CAPPELLE, MELO; GONÇALVES, 2003; ORLANDI, 2003).

Essa definição de ideologia a considera como função da relação necessária entre a linguagem e o mundo. Segundo Orlandi (2003, p.47) “Linguagem e mundo se refletem no sentido da refração, do efeito imaginário de um sobre o outro”.

Essa relação com o mundo transforma o sentido em uma relação determinada do sujeito, afetado pela língua, com a história. Ou seja, para que a língua faça sentido, é necessário que a história intervenha pelo equívoco, pela opacidade, pela espessura material do significante. Daí resulta que a interpretação não é um mero gesto de decodificação, de apreensão do sentido. Ela não é livre de determinações, não é qualquer uma e é desigualmente distribuída na formação social. Ela é “garantida” pela memória sob dois aspectos: (a) a memória institucionalizada (o arquivo); (b) a memória constitutiva (o interdiscurso). Assim o gesto de interpretação se faz entre a memória institucional (o arquivo) e os efeitos de memória (o interdiscurso), podendo assim tanto estabilizar como deslocar sentidos. Ser determinada não significa ser (necessariamente) imóvel (ORLANDI, 2003).

Nesse modo de conceber, a ideologia não é vista como um conjunto de representações, como visão de mundo ou como ocultação da realidade. Na condição de prática significante, a ideologia aparece como efeito da relação necessária do sujeito com a língua e com a história. Como não há uma relação termo a termo entre linguagem/mundo/pensamento essa relação torna-se possível porque a ideologia intervém com seu modo de funcionamento imaginário. São as imagens que permitem que as palavras “colem” com as coisas. É a ideologia que faz com que haja sujeitos, inaugurando a discursividade (ORLANDI, 2003; MARTINS, 2006).

Nessa noção de sujeito ele só tem acesso à parte do que diz, pois é atravessado pela linguagem e pela história, sob modo do imaginário. Ele é materialmente dividido desde sua constituição: ele é sujeito de e é sujeito à. Ele é sujeito à língua e à história, pois, para se constituir, para (se) produzir sentidos ele é afetado por elas (ORLANDI, 2003).