• Nenhum resultado encontrado

1. A NOÇÃO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

1.4 A mudança no campo científico

O enfrentamento do desafio do desenvolvimento sustentável passa obrigatoriamente por mudanças na ciência normal. Essas mudanças podem caracterizar-se como mudanças no paradigma cartesiano, mecanicista e reducionista da ciência normal. Ou, como propõe o próprio Capra (1997) apenas dar-se no âmbito da adoção do enfoque sistêmico sem negar a utilidade do enfoque analítico.

O próprio Capra afirma (1997, p. 259):

Não existe, no presente momento, uma estrutura bem estabelecida, conceitual ou institucional, que acomode a formulação de um novo paradigma, mas as linhas mestras de tal estrutura já estão sendo formuladas por muitos indivíduos, comunidades e organizações que estão desenvolvendo novas formas de pensamentos e que se estabelecem de acordo com novos princípios. ... Isso significará a formulação gradual de uma rede de conceitos e modelos interligados e, ao mesmo tempo, o desenvolvimento de organizações correspondentes.

A própria dualidade, observada nas discussões teóricas, entre enfoque analítico versus enfoque sistêmico, é verdadeira dentro da linha cartesiana em que há sempre posições hegemônicas, negando a possibilidade de complementaridade.

Tanto Morin (1996) como Capra (1997) admitem essa complementação entre os enfoques.

Talvez, como Morin leva a pensar, esse problema não esteja no seio da ciência e dos métodos, mas sim no domínio da ética, em que o egocentrismo do cientista como ser humano, o impede de ser consciente das próprias zonas escuras e das próprias carências.

Para isso, o próprio cientista deveria assumir uma postura mais aberta quanto aos valores, normas e regras do campo científico. A melhor resposta ao desafio da sustentabilidade é a valorização da diversidade. Diversidade de idéias, de conceitos e não apenas a reprodução dos já reconhecidos.

Em decorrência, o desafio do desenvolvimento sustentável exige também mudanças tanto no campo como no ethos científicos.

Segundo Bourdieu (1983, p. 124):

A sociologia da ciência repousa no postulado de que a verdade do produto, mesmo em se tratando desse produto particular que é a verdade científica, reside numa espécie particular de condições sociais de produção; isto é, mais precisamente, num estado determinado da estrutura e do funcionamento do campo científico. O universo "puro" da mais pura ciência é um campo social como outro qualquer, com suas relações de força e monopólios, suas lutas e estratégias, seus interesses e lucros, mas onde todas essas invariantes revestem formas específicas. O campo científico, na condição de um sistema de relações objetivas entre posições adquiridas, é o lugar, o espaço de jogo de uma luta concorrencial; é uma concorrência pelo monopólio da autoridade científica, sendo esta o resultado da soma da capacidade técnica e do poder social. Pode também ser definido como o espaço onde se busca o monopólio da competência científica, entendida como a capacidade de falar e agir legitimamente, de maneira autorizada e com autoridade, socialmente outorgada a um agente determinado (BOURDIEU, 1989).

Não pode ser considerado como um espaço livre de interesses específicos. Seu próprio funcionamento produz e supõe uma forma específica de interesse e é a partir desses interesses que é feito o julgamento da capacidade científica seja de um estudante, seja de um pesquisador. Seu julgamento estará sempre influenciado, no transcurso de sua carreira, pelo conhecimento da posição que ele ocupa nas hierarquias instituídas (GASTAL, 1994).

A própria produção científica do indivíduo está em dependência com o que o próprio campo reconhece como importante ou interessante, já que esse julgamento é feito pelos outros integrantes do campo, ou seja, deve ser importante e interessante também aos olhos dos outros (GASTAL, 1994).

Nas palavras de Bourdieu (1983, p. 126):

É o campo científico, enquanto lugar de luta política pela dominação científica, que designa a cada pesquisador, em função da posição que ele

ocupa, seus problemas, indissociavelmente políticos e científicos, e seus métodos, estratégias científicas, que, pelo fato de se definirem expressa ou objetivamente pela referência ao sistema de posições políticas e científicas constitutivas do campo científico, são ao mesmo tempo estratégias políticas.

Não há "escolha" científica: do campo da pesquisa, dos métodos empregados, do lugar de publicação, ou ainda, entre a publicação imediata de resultados parcialmente verificados e uma publicação tardia de resultados plenamente controlados, que não seja uma estratégia política. Estratégia, esta, que visa ao investimento, no sentido de aumento do lucro científico, materializado mediante reconhecimento dos pares (BOURDIEU, 1989).

Para ser reconhecido, o cientista deve seguir certas normas e procedimentos inerentes ao campo que podem ser assimiladas na forma de habitus científico ou respeitadas na forma de um ethos científico.

Segundo Bourdieu (1983, p. 15), a noção de habitus pode ser definida como:

Sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes, isto é, como princípio que gera e estrutura as práticas e as representações que podem ser objetivamente regulamentadas e regulada sem que por isso sejam o produto de obediência de regras, objetivamente adaptadas a um fim, sem que se tenha necessidade da projeção consciente deste fim ou do domínio das operações para atingi-lo, mas sendo, ao mesmo tempo, coletivamente orquestradas sem serem o produto da ação organizadora de um maestro.

Com essa retomada da noção aristotélica de hexis, convertida pela escolástica em habitus, Bourdieu desejava reagir contra o estruturalismo e pôr em evidência as capacidades criadoras, ativas e inventivas do habitus e do agente3 (BOURDIEU, 1989).

O habitus é produto das relações sociais e tende, tanto a assegurar a reprodução dessas relações, como também a conformar e a orientar a ação.

Segundo Bourdieu (1983:15):

Cada agente quer saiba ou não, quer queira ou não, é produtor e reprodutor de sentido objetivo porque suas ações e suas obras são produto de um “modus operandi” do qual ele não é o produtor e do qual ele não possui o domínio consciente; as ações encerram, pois, uma “intenção objetiva”, como diria a escolástica, que ultrapassa sempre as intenções conscientes.

3

Bourdieu chama a atenção para a idéia de que esse poder gerador não é o de um espírito universal, de uma natureza ou de uma razão humana, como em Chomsky, mas sim, o de um agente em ação.

A interiorização, pelos atores, dos valores, das normas e dos princípios sociais assegura, dessa forma, a adequação entre as ações do sujeito e a realidade objetiva da sociedade como um todo.

Todavia, a noção de habitus não somente se aplica à interiorização das normas e dos valores, mas inclui os sistemas de classificações que preexistem (logicamente) às representações sociais. O habitus pressupõe um conjunto de "esquemas generativos" que presidem a escolha; eles se reportam a um sistema de classificações que é, logicamente, anterior à ação (BOURDIEU, 1983).

Os habitus são valores adquiridos ou internalizados pelos indivíduos segundo a formação ou a posição social de que desfrutam.

Posto isso, o pesquisador é influenciado pelo campo científico, mediante incorporação do habitus científico. Porém, há igualmente, a incorporação do que Merton (1970) conceitua como ethos científico4.

O ethos da instituição social da ciência compreende critérios universais de validez científica e de valor científico, abrangendo assim valores facilmente unificados aos valores de uma sociedade livre em que o que importa são os talentos e os triunfos dos homens e não a situação ou as origens que se lhes atribuem (MERTON, 1970; MERTON, 1979).

O autor refere-se a um complexo de tom emocional de regras, prescrições, costumes, crenças, valores e pressupostos que obrigam moralmente os cientistas. Algumas fases desse complexo podem ser metodologicamente desejáveis, mas a observância das regras não é dita somente por considerações metodológicas. Esse ethos, como os códigos sociais, em geral, é apoiado pelos sentimentos daqueles a quem se aplica. A transgressão é reprimida por proibições admitidas pelo grupo e por reações emocionais de desaprovação, postas em movimento pelos que apóiam o ethos. Existindo um ethos efetivo desse tipo, o ressentimento, o rancor e outras manifestações de antipatia operam quase automaticamente para estabilizar a estrutura vigente (MERTON, 1970; MERTON, 1979).

O ethos da ciência implica a exigência funcionalmente necessária de que as teorias ou generalizações sejam avaliadas em termos da sua consistência lógica e de sua consonância com os fatos (MERTON, 1970).

4

Embora, aqui, estejamos relacionando os trabalhos de Merton e Bourdieu, vale observar que seus enfoques apresentam distinções importantes. Por exemplo, Bourdieu enfatiza a dimensão de luta e conflito entre os cientistas, que competem pela busca de maior prestígio, poder e legitimidade no seu campo de atuação. Já, em Merton, verifica-se uma relação funcional de obediência a regras e aos valores próprios do ethos científico, numa colaboração recíproca em prol do desenvolvimento da ciência - uma ciência, talvez, pacificada e comportada.

É um complexo de valores e de normas afetivamente tonalizado que se considera como constituindo uma obrigação moral para o cientista. As normas são expressas em forma de prescrições, proscrições, preferências e permissões que se legitimam em relação com valores institucionais. Esses imperativos, transmitidos pelo preceito e pelo exemplo e reforçados por sanções, são assimilados em graus variáveis pelo cientista, formando assim sua consciência científica ou seu superego. Embora o ethos da ciência não tenha sido codificado, pode ser inferido do consenso moral dos cientistas expressos nos usos e costumes, em numerosas obras sobre o espírito científico e na indignação moral que suscitam as contravenções do ethos (MERTON, 1970).

Se considerarmos o que Morin (1991, p. 20) afirma:

A cultura fornece ao pensamento as suas condições de formação, de concepção, de conceituação. Ela impregna, modela, e eventualmente dirige os conhecimentos individuais. Trata-se aqui, não de um determinismo sociológico exterior, mas sim de uma estruturação interna. A cultura e, via a cultura, a sociedade, estão no interior do conhecimento humano.

Podemos supor que o campo e o ethos científicos influenciam a formação de uma cultura científica. Segundo Morin (1996, p. 157): “A Razão e a própria Ciência tornam-se mitos ao tornarem-se Entidades supremas que se encarregam da Salvação da Humanidade”. O Mythos e o Logos que significam na origem da palavra, “discurso”, nascem juntos da linguagem que é produzida no seio da cultura e depois se distinguem. Morin (1996, p. 149) afirma: “Logos torna-se o discurso racional, lógico e objetivo do espírito pensando um mundo que lhe é exterior. Mythos constitui o discurso da compreensão subjetiva, singular e concreta de um espírito que adere ao mundo e o sente a partir do interior”.

Isso nos remete a uma distinção que Morin (1996) ressalta entre símbolo e signo, ambos constituintes da linguagem.

Segundo Morin (1996, p. 147):

No sentido instrumental do nome, há uma forte distinção entre o signo (a palavra não é mais do que a palavra), o sentido (que não é a coisa) e a coisa; no seu sentido evocador, há aderência, contaminação e, no limite, coagulação de uma na outra destas três instâncias; o símbolo impõe-se então como uma trindade concreta em que o referente está no significante, o qual está no significado.

A partir daí, segundo Morin (1996), o sentido indicativo/instrumental do signo e o sentido evocativo concreto do símbolo vão reinar cada um em dois universos, sendo um o do pensamento empírico/técnico/racional, e o outro o do pensamento simbólico/mitológico/mágico. Porém, ambos no mesmo sujeito, o cientista.

É esse sujeito, que ao fazer ciência tenta reprimir o pensamento simbólico/mitológico/mágico, mais influente no senso comum.