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2.5 Os tipos de cachaça

2.5.2 A diversidade das “clandestinas”

As cachaças ditas “clandestinas” existem no mundo da informalidade, um mundo à parte daquele previsto na legislação, embora se relacione com o mundo legalizado em alguma medida. É praticamente impossível definir todos os nomes atribuídos ao destilado brasileiro existentes no país. O que faço nessa seção é apresentar alguns nomes e tipos que as “clandestinas” recebem em regiões distintas do Brasil e algumas características de sua classificação local.

Cada local possui um nome distinto para as cachaças produzidas nos engenhos da região, sem marca registrada, que circulam pelas feiras e botecos. Na Serra da Ibiapaba dá-se o nome de serrana; Na Paraíba, no Rio Grande do Norte e em Pernambuco tem a brejeira ou a cana de cabeça; Em Minas Gerais chamam de curraleira; Em algumas partes da Bahia essas cachaças recebem o nome de da roça ou pinga da roça. E por aí vai...

Dentro dessas classificações mais amplas, cabem algumas subdivisões. Com o intuito de ser o mais didático possível, divido as cachaças “clandestinas” em quatro tipos: a) novas; b) velhas; c) brancas; e d) amarelas, todas expressões em uso nos locais onde realizei o trabalho de campo.

As cachaças denominadas “novas” correspondem às bebidas recém produzidas até o tempo máximo de armazenamento de um ano, contado a partir do período em que foi feita.

As cachaças consideradas “novas” possuem uma relação direta com as “brancas”, pois a cor transparente (“branca”), no seio popular, indica a “pouca idade” da bebida56. O público

majoritário consumidor de cachaças no Brasil é o de bebedores de cachaças novas.

Tanto os produtores quanto os consumidores acreditam que a bebida da safra anterior é sempre mais “velha” que a da safra atual. É seguindo essa lógica que eles organizam as ideias de “nova” e “velha” sobre a condição da cachaça. Assim, uma cachaça “velha” tem sempre uma imediatamente mais nova e outra imediatamente mais velha do que ela. É desse modo que os produtores classificam suas bebidas dispostas em tonéis diferentes de acordo com o ano da safra. “Tenho pinga aí de 2002”, me disse Raimundo, orgulhoso do seu estoque. E continua sua aula.

Você quer saber o que é uma pinga velha? Eu vou lhe dizer o que é. Olhe essa aqui, essa aqui. Ela chega tá licorosa… Essa aqui foi de 2008, 2008. Foi um ano bom. Sobrou cachaça, porque deu muita naquele ano. Olhe, tá vendo? Olhe essa pinga. Tá sentindo o cheiro dela? Vem do tonel, da madeira do tonel. Agora beba uma pinga dessas… chega desce macio. Pode beber, beba! Pinga velha é isso. Uma pinga curtida, no tonel, por muitos anos57.

Vale lembrar que o que esses produtores entendem por envelhecimento está um pouco distante do que prevê a legislação. O envelhecimento ocorrido nos engenhos registrados no MAPA se dá dentro da fiscalização dos órgãos de controle, com a lacração dos tonéis e acompanhamento das amostras. Só é atribuída a condição de envelhecida para as cachaças que tenham cumprido todo o rito legal. O armazenamento de cachaças em qualquer outro recipiente, que não seja de madeira, descaracteriza o processo de envelhecimento. Assim, cachaças armazenadas por vinte anos em vasilhas de vidro ou de plástico não são reconhecidas como “envelhecidas” pelos órgãos de controle.

Nos pequenos engenhos pesquisados tais critérios não fazem muito sentido. Os proprietários realizam a associação direta entre o tempo em que a cachaça passou guardada e o seu consequente envelhecimento. Como me afirmou o proprietário de um engenho, o tempo que a cachaça fica “descansando” é o tempo em que ela envelhece. Na lógica dessas pessoas, quanto mais tempo tiver de guardada, mais “velha”, “mais curtida”, está a cachaça.

Em todos esses casos, o envelhecimento está associado à alteração da cor da cachaça, apesar de existir madeiras que envelheçam a cachaça sem lhe alterar a cor, como o jequitibá e o freijó, por exemplo. Mas o propósito do envelhecimento é alterar aspectos sensoriais que, supostamente, incomodam o gosto de certos bebedores, como a acidez e o aroma.

56 No último capítulo apresento as preferências dos bebedores por região.

No Brasil, a quantidade de madeiras usadas para confeccionar os barris de armazenamento e envelhecimento de cachaças é muito grande e varia de acordo com os biomas de cada localidade. Além das duas árvores citadas, as mais usadas são umburana (amburana, imburana), bálsamo, amendoim, jatobá e ipê (roxo e amarelo, no Ceará chamam pau d’arco) (Anexo E).

Como é de se intuir, no universo das cachaças “clandestinas” os termos “branca” e “amarela” estão associados diretamente às bebidas “novas” e “velhas”, respectivamente. Importante ressaltar que os métodos de adicionar “outras substâncias” para alterar a cor da bebida é uma prática corriqueira no país. Em todas as regiões estudadas encontrei produtores, atravessadores, comerciantes e até consumidores que adicionam “uma lasquinha de pau” para alterar a cor transparente (“branca”) da bebida. Por exemplo, a bebida que chamam de “Gabriela” pode ser feita com qualquer cachaça que receba a infusão de cravos e de paus de canela por um período aproximado de um mês.

Isso significa que é muito comum encontrar cachaças de cores diferentes de sua cor original transparente, em vários tons de amarelo até o meio amarronzado, com a finalidade de induzir o bebedor a pensar que está tomando uma cachaça amaciada (“velha”). Os bebedores locais não se enganam, sabem que estão tomando uma bebida “nova” com a aparência de “velha”. Mas sempre tem alguém desavisado…

Um ponto importante a acrescentar a essa discussão diz respeito ao termo “cana de cabeça”. Nos estados do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas, no círculo dos bebedores tradicionais, “cana de cabeça” significa qualquer cachaça oriunda dos engenhos produtores locais que não possuam uma marca registrada e que sejam comercializadas nas feiras livres e nos botecos das cidades do interior. Nesse sentido, o termo tem o mesmo significado da expressão “brejeira” e nada tem a ver com a fração da “cabeça” no processo de produção de cachaças em alambique. O termo “cana de cabeça” também é acionado para denotar a bravura de seu bebedor em tomar uma bebida considerada “forte”, destinada aos homens de coragem.

Para finalizar esta seção, retomo o tema da legislação com um dado no mínimo curioso. O tema da cachaça artesanal. A lei veda o uso da expressão nos rótulos com a seguinte redação:

9.5. Fica vedado o uso da expressão “Artesanal” como designação, tipificação ou qualificação dos produtos previstos no presente Regulamento Técnico, até que se estabeleça, por ato administrativo do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o Regulamento Técnico que fixe os critérios e procedimentos para produção e comercialização de Aguardente de Cana e Cachaça artesanais (BRASIL, 2005).

De acordo com o teor da discussão ocorrida durante a elaboração do Regulamento Técnico, o lobby empresarial conseguiu impor a pauta da industrialização. Os próprios produtores de cachaça em alambique apoiaram o veto ao termo artesanal, alegando ser mais importante informar aos consumidores o método usado na feitura da cachaça. Na prática, quem produz em alambique dá essa informação no rótulo, em virtude do apelo simbólico em torno do imaginário que o engenho de cana possui, que agrega valor ao produto e se reverte em aumento das vendas. As usinas produtoras de aguardente de cana não citam seus métodos de produção. Seus baixos custos de produção lhes dão a liderança do mercado. Preferem investir no discurso da segurança alimentar com campanhas publicitárias que desqualificam seus concorrentes. São campanhas que associam a produção industrial com a garantia do alimento seguro, informando subliminarmente os riscos dos produtos feitos de outras formas.