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2.5 Os tipos de cachaça

2.5.1 As definições do marco legal

Inicio a explanação verificando como o conceito de cachaça é definido no marco legal. O Decreto nº 6.871, de 4 de junho de 2009, que regulamenta a Lei nº 8.918, de 14 de julho de 1994, dispõe sobre “a padronização, a classificação, o registro, a inspeção, a produção e a fiscalização de bebidas” (BRASIL, 2009). Em seu art. 53 trata do termo

cachaça:

Art. 53. Cachaça é a denominação típica e exclusiva da aguardente de cana produzida no Brasil, com graduação alcoólica de trinta e oito a quarenta e oito por cento em volume, a vinte graus Celsius, obtida pela destilação do mosto fermentado do caldo de cana-de-açúcar com características sensoriais peculiares, podendo ser adicionada de açúcares até seis gramas por litro. § 1o A cachaça que contiver açúcares em quantidade superior a seis gramas por litro e inferior a trinta gramas por litro será denominada de cachaça adoçada.

§ 2o Será denominada de cachaça envelhecida a bebida que contiver, no mínimo, cinquenta por cento de aguardente de cana envelhecida por período não inferior a um ano, podendo ser adicionada de caramelo para a correção da cor (grifo original) (BRASIL, 2009).

A lei especifica a indicação de origem, a faixa da graduação alcoólica e a matéria- prima, além de facultar as possibilidades de “adoçamento” e “envelhecimento” da cachaça. Portanto, para ser denominado de cachaça, o destilado precisa ser produzido no território nacional, possuir entre 38º e 48º GL (a 20ºC), e ser obtido a partir da destilação do mosto fermentado do caldo de cana-de-açúcar.

A definição na legislação omite um dado que considero importante. Existem duas maneiras bastante distintas de produzir destilados de cana-de-açúcar, em colunas e em alambiques, mas a legislação brasileira não faz essa distinção quando define o termo cachaça. Aqui se encontra parte dos desentendimentos presentes no universo da bebida. Pois além da definição oficial do termo cachaça, há a definição do termo aguardente. O Decreto citado afirma (BRASIL, 2009):

Art. 51. A aguardente é a bebida com graduação alcoólica de trinta e oito a

cinquenta e quatro por cento em volume, a vinte graus Celsius, obtida do rebaixamento do teor alcoólico do destilado alcoólico simples ou pela

destilação do mosto fermentado.

§ 1º A aguardente terá a denominação da matéria-prima de sua origem (grifos meus) (BRASIL, 2009).

Segundo esta definição, dois aspectos diferenciam a aguardente da cachaça: os percentuais mínimo e máximo do teor alcoólico e a matéria-prima. A aguardente preserva o limite mínimo de 38º GL, tal como a cachaça, enquanto aumenta o limite máximo para 54º GL. Quanto à matéria-prima, a distinção principal é de que a cachaça só pode ser “obtida pela destilação do mosto fermentado do caldo de cana-de-açúcar com características sensoriais peculiares” (grifos meus) (BRASIL, 2005), enquanto a aguardente pode ser fruto “do rebaixamento do teor alcoólico do destilado alcoólico simples ou pela destilação do mosto fermentado” (BRASIL, 2009). A informação dada no parágrafo primeiro, sobre a “denominação da matéria-prima de sua origem”, indica que, como a aguardente pode ser feita a partir de qualquer matéria-prima (não apenas da cana-de-açúcar), é preciso informar do que se trata. Por exemplo, aguardente de cereal, aguardente de vegetal, aguardente de fruta e aguardente de cana.

Na definição do termo aguardente de cana, a lei especifica em seu art. 52:

Art. 52. Aguardente de cana é a bebida com graduação alcoólica de trinta e oito a cinquenta e quatro por cento em volume, a vinte graus Celsius, obtida de destilado alcoólico simples de cana-de-açúcar ou pela destilação do

mosto fermentado do caldo de cana-de-açúcar, podendo ser adicionada de

açúcares até seis gramas por litro, expressos em sacarose (grifos meus) (BRASIL, 2009).

Está claro que o mosto fermentado do caldo de cana-de-açúcar serve como matéria- prima tanto para a aguardente de cana quanto para a cachaça. Mas a aguardente de cana pode ter também como matéria-prima o “destilado alcoólico simples de cana-de-açúcar”. De onde vem esse personagem? Em seu art. 76, o Decreto nº 6.871 define:

§ 1º Destilado alcoólico simples de cana-de-açúcar é o produto obtido pelo processo de destilação do mosto fermentado de cana-de-açúcar.

§ 2º Destilado alcoólico simples de cana-de-açúcar destinado à produção da aguardente de cana é o produto obtido pelo processo de destilação simples ou por destilo-retificação parcial seletiva do mosto fermentado do caldo de cana-de-açúcar com graduação alcoólica superior a cinquenta e quatro e

inferior a setenta por cento em volume, a vinte graus Celsius (grifos meus)

(BRASIL, 2009).

O mosto fermentado de cana-de-açúcar é também a matéria-prima do destilado alcoólico simples de cana-de-açúcar. A diferença entre este produto e a aguardente de cana/cachaça aparece de duas formas: na sua utilidade e no seu teor alcoólico. O destilado alcoólico simples de cana-de-açúcar não é uma bebida alcoólica. Ele é uma das matérias- primas da aguardente de cana em função de seu teor alcoólico ultrapassar o limite máximo regulamentado para bebidas alcoólicas no Brasil, que é de 54º GL (a 20ºC).

O destilado alcoólico simples de cana-de-açúcar pode ser produto tanto da “destilação simples” quanto da “destilo-retificação parcial seletiva do mosto fermentado do caldo de cana-de-açúcar”. O que diabos é isso? No segundo capítulo discuto o processo de produção em colunas em detalhes. Por ora, basta informar que são duas formas distintas de proceder a destilação do mosto fermentado da cana-de-açúcar e que a “destilo-retificação parcial” é resultado de mais de uma destilação (bidestilação ou mais) com a finalidade de “corrigir”, “retificar” determinados elementos químicos presentes no líquido (Anexo A).

As bebidas destilo-retificadas, como a vodca, o gim e algumas aguardentes de cana, por exemplo, têm como matéria-prima básica o álcool etílico potável de origem agrícola. Trata-se de um etanol de alta pureza cuja concentração alcoólica mínima é de 96% (v/v). A fabricação dessas bebidas é feita a partir da simples diluição em água desse álcool etílico potável até que atinja o teor alcoólico desejado para a bebida em questão (ALCARDE, 2016).

Ressalto que os modos de produção em colunas e em alambiques produzem bebidas diferentes tanto nos aspectos físico-químicos quanto nos aspectos sensoriais, ambos critérios importantes na avaliação da qualidade da bebida. Além disso, cada uma dessas maneiras de se fazer cachaça possui características próprias quanto às relações de trabalho estabelecidas, à construção social do valor agregado à bebida e aos espaços sociais de usos. A principal diferença com relação aos lugares onde são fabricadas é a seguinte: as bebidas feitas em colunas são produzidas em grandes usinas e as bebidas feitas em alambiques são produzidas em engenhos, que podem ser de grande, médio e de pequeno porte, conforme os critérios que apresento no segundo capítulo.

Até agora me ocupei em discutir a definição das bebidas denominadas aguardente de

cana e cachaça em sua forma pura, recém saída do alambique ou da coluna de destilação.

Mas o marco legal define também os possíveis “acréscimos” à bebida que podem ser feitos para fins diversos. De acordo com a legislação em vigor, os tipos de aguardente de cana e cachaça são: Adoçada, Envelhecida, Premium, Extra Premium, Prata e Ouro (BRASIL, 2005). Essas especificações servem tanto para a aguardente de cana quanto para a cachaça. Vejamos o que cada uma significa de acordo com o Regulamento Técnico para fixação dos Padrões de Identidade e Qualidade para Aguardente de Cana e para Cachaça (Anexo G).

Adoçada é a bebida que “contém açúcares em quantidade superior a 6g/l (seis gramas por litro) e inferior a 30g/l (trinta gramas por litro), expressos em sacarose” (BRASIL, 2005). A definição é simples e apenas exige que essa informação esteja explícita no rótulo da garrafa. Envelhecida é a bebida que “contém, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) da Aguardente de Cana ou do Destilado Alcoólico Simples de Cana-de-Açúcar envelhecidos em

recipiente de madeira apropriado, com capacidade máxima de 700 (setecentos) litros, por um período não inferior a 1 (um) ano” (BRASIL, 2005). O “envelhecimento” da bebida pressupõe alguns critérios específicos que inclui a obrigatoriedade de que metade da bebida tenha que permanecer em um recipiente de madeira, de no máximo 700 litros, por pelo menos um ano. Para os casos em que pelo menos um desses requisitos não seja cumprido, o regulamento afirma:

9.8. Será obrigatório declarar no rótulo a expressão: Armazenada em .... (seguida do nome do recipiente) de....(seguida do nome da madeira em que o produto foi armazenado), para os produtos definidos nos subitens 2.1.1 e 2.1.2, armazenados em recipiente de madeira e que não se enquadrarem nos

critérios definidos para o envelhecimento previstos no presente

Regulamento Técnico e outros atos administrativos próprios (grifos meus) (BRASIL, 2005).

O termo técnico usado para definir as bebidas que ficaram em recipientes de madeira, com capacidade acima de 700 litros e/ou por um tempo inferior a um ano, é armazenamento. Somente as bebidas que passaram por esse processo podem usar em seus rótulos o termo “armazenada”.

Premium é a bebida que “contém 100% (cem por cento) de Aguardente de Cana ou Destilado Alcoólico Simples de Cana-de-Açúcar envelhecidos em recipiente de madeira apropriado, com capacidade máxima de 700 (setecentos) litros, por um período não inferior a 1 (um) ano” (BRASIL, 2005). O termo Premium no rótulo de uma garrafa, em tese, informa ao consumidor que aquela bebida passou pelo processo de envelhecimento reconhecido pelo Estado. Na prática, a expressão Premium aciona valores simbólicos de status social da bebida e de seus possíveis consumidores para além da indicação de envelhecimento.

Extra Premium é a bebida “envelhecida por um período não inferior a 3 (três) anos” (BRASIL, 2005). O termo Extra Premium, com licença do trocadilho, extrapola os recursos simbólicos explorados no termo Premium. Trata-se de uma bebida destinada a quem tem maior poder de compra, como um sinal de distinção social.

Para além dessas tipificações expostas, existem na legislação as condições de Prata e Ouro. Ambas podem ser também adoçada, envelhecida, Premium e Extra Premium. Vejamos o que cada uma delas significa, ainda de acordo do regulamento vigente (Anexo G).

Prata é a bebida que foi ou não armazenada em recipiente de madeira, desde que este não altere a sua cor. O item 9.8.1. do Regulamento Técnico informa que esse tipo de bebida pode ser denominada também de “clássica ou tradicional” (BRASIL, 2005). Ouro é a bebida que foi armazenada em recipiente de madeira e que teve alteração da sua cor. Tais

especificações servem para o produtor informar ao consumidor os detalhes do armazenamento/envelhecimento da bebida.

A legislação prevê ainda o uso de caramelo para a correção de cor. No caso da correção do teor alcoólico, é possível adicionar aguardente de cana, destilado alcoólico simples de cana-de-açúcar ou água potável. O regulamento aborda também o uso de “outras substâncias”.

4.3.1. É vedado o uso de corantes de qualquer tipo, extrato, lascas de madeira ou maravalhas ou outras substâncias para correção ou modificação da coloração original do produto armazenado ou envelhecido ou do submetido a estes processos, excetuado o disposto no subitem 4.1.2, deste Regulamento Técnico (BRASIL, 2005).

Nos capítulos seguintes discuto práticas de manipulação da bebida por agentes diversos, quando infusões, diluições e criação de novas bebidas participam da vida de muitas pessoas. Esta classificação das cachaças será retomada no último capítulo, quando analiso a relação entre gosto e status social dos consumidores.