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São quase cinco horas da manhã. Os galos anunciam o raiar do dia. O termômetro vai, aos poucos, registrando o aumento da temperatura. As plantas estão encharcadas do orvalho deixado pela madrugada. No terreiro, porcos, cabras, galinhas e cães iniciam suas labutas diárias em busca de alimentos.

As mulheres acordam cedo por aquelas paragens. A cozinha encontra-se em plena atividade: fogo aceso, água esquentando para fazer o café; tem tapioca, pães de queijo e de trigo. Em alguns lugares do nordeste, o cardápio contempla também a macaxeira, o inhame, o cuscuz e a batata-doce. A lida a ser cumprida exige alimento que dê sustância.

No campo, o canavial exibe as primeiras flores, sinal de cana madura, tempo de moagem. Nas imediações do engenho, aos poucos vão chegando os trabalhadores. As primeiras conversas são regadas a goles de café e pitadas de cigarros de palha, enrolados em folha de caderno. Entre voos de mosquitos, o alarido é grande: amola-se facão, lava-se vasilhas, pergunta-se por “fulano” que ainda não chegou… cães latem.

O fogo que vai esquentar o alambique é aceso, alimentado com lenha ou com o bagaço seco da moagem dos dias anteriores. A moenda é lavada, assim como todos os lugares

por onde vai passar o caldo. O alambiqueiro confere a fermentação nas dornas. Parou de borbulhar. É hora de mandar para o alambique.

A cana-de-açúcar cortada começa a chegar do canavial. Vem em carroças puxadas por bois experientes ou por pequenos tratores. Em muitos lugares, o lombo do jumento continua sendo o meio apropriado para o transporte da cana-de-açúcar. Quando chega ao engenho, a cana cortada é lavada e posta próximo à moenda. Outros trabalhos se iniciam.

Os homens abastecem a moenda que extrai o máximo que pode da cana-de-açúcar. O bagaço é armazenado em local seco, servirá como combustível, ração para o gado e/ou adubo. O caldo escorre para os tanques de repouso para decantar, observado pelo olho atento do especialista. Ao longo do caminho, o caldo passa por várias peneiras de diferentes bitolas, precisa se livrar das fagulhas trazidas da terra onde cresceu. O teor de açúcar será medido e “corrigido”, de acordo com a escolha adequada do alambiqueiro, que corresponde aos interesses do proprietário do engenho. Quando pronto, o caldo segue para as dornas de fermentação para encontrar-se com o pé-de-cuba, o fermento preparado cuidadosamente com fubá ou pedaços de cana-de-açúcar. O fermento “natural” é composto por leveduras64 que

transformarão o caldo de cana em mosto fermentado, ou seja, em vinho com teor alcoólico entre 10º e 12º GL.

Concluída a fermentação, o alambiqueiro abre a torneira da dorna e o mosto mergulha no alambique que o aguarda a uma temperatura média de 90º Celsius. Se inicia um complexo processo de separação dos elementos químicos presentes no mosto. Os elementos mais “leves”65 entram em ebulição primeiro, seguidos pelos “menos leves” até o momento em

que os mais “pesados” iniciam também sua migração pelos tubos da engenhoca, passando do estado líquido ao gasoso e depois, pelo resfriamento do condensador, realizando o processo inverso. Finalmente, o líquido pinga na torneira que encerra o processo de destilação.

O alambiqueiro realiza a separação do destilado em três categorias: a “cabeça”, o “coração” e a “cauda”. Em alguns lugares, cabeça e cauda vão para o mesmo recipiente. A mistura formada retorna ao alambique, no intuito de aproveitar outro coração numa segunda

64 As leveduras são fungos que se apresentam sob a forma unicelular. São invisíveis a olho nu e somente podem ser vistas com o auxílio de microscópio. As leveduras estão em toda parte: solo, ar, plantas, frutos e demais alimentos. A espécie mais comum é a Saccharomyces cerevisiae, presente na produção de pão e de bebidas alcoólicas. A etimologia da palavra levedura tem origem no termo latino levare, que significa crescer ou fazer crescer, pois as primeiras leveduras encontradas foram associadas ao processo de fermentação de pães, que provoca o aumento da massa por meio da liberação de gases e formação de espuma. As leveduras são seres heterotróficos (que não produzem seu próprio alimento) e dependem do ambiente para consegui-lo. www.sobiologia.com.br, www.quali.pt, https://microengenheiros.blogspot.com.br/2011/06/levedura. Consultados em 10 e 11 de abril de 2017. 65 Refiro-me à massa atômica (“peso”) dos elementos químicos, de acordo com a tabela periódica, presentes no

batelada. Em outros lugares, cabeça e cauda são misturados com o bagaço e se transformam em fertilizantes para a terra e/ou em ração para os animais.

O coração segue para o armazenamento em tonéis de polietileno ou de madeira, a depender da infraestrutura de cada engenho. A comercialização será feita em diferentes recipientes. Costumeiramente, fazem o uso de garrafas do tipo PET66, no varejo, que são

comercializadas nas bodegas locais. Para compradores em maior quantidade, usam-se tonéis de polietileno de até 200 litros.

O sol libera seus últimos raios. A noite se aproxima. Um dia de trabalho foi realizado com o esforço coletivo de muitas pessoas. As ferramentas são limpas e guardadas para o dia seguinte. O dono confere tudo de perto. Os trabalhadores retornam para suas casas, mas antes, passam na bodega costumeira, onde conversam, riem, compram alimentos, atualizam as notícias e bebem cachaça.

Eis o cenário de uma das maneiras de produzir cachaças em plena atividade nos rincões do Brasil. Este ciclo provavelmente se repete desde os primeiros anos da colonização67. Mas, apesar da narrativa bucólica, as relações sociais entre as pessoas que

contribuíram para esta pesquisa são muito mais heterogêneas. Preciso, então, definir os termos usados neste trabalho.