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4.2 Atravessadores

4.4.4 Bares, botecos e bodegas

Finalmente chegamos aos bares, botecos e bodegas. Existem estabelecimentos dessa natureza para todas as classes sociais. O que importa aqui é que se trata de locais que vendem cachaça. A depender do local onde está instalado e do status social de sua clientela, esses

lugares podem comercializar cachaças regularizadas, de colunas e de alambiques, e cachaças “clandestinas”. Bares, botecos e bodegas são “as casas de amigos” (GARCIA, 2008).

Nas zonas rurais e nas periferias das cidades do interior, esses estabelecimentos comportam uma ampla variedade de produtos que vão desde a cartela de barbeadores descartáveis, passando por velas, pirulitos e peixes secos, até a cachaça. Muitas vezes não correspondem ao conceito de bares simplesmente, mas sim de bodegas que atendem demandas diversas da comunidade local.

Quando o proprietário do bar é também um bebedor de cachaça, o processo de compra da bebida ao atravessador possui um protocolo à parte. A “prova” é realizada no ato da compra. O teste é feito da seguinte forma:

Quando ele [o atravessador] chega aqui, eu digo logo: – Olhe, não venha me vender pinga ruim não! Porque o povo aqui conhece pinga. Nem adianta... que vai ficar queimado na praça. Aí, pra saber se a pinga é boa, eu faço um teste rápido. Como eu também gosto de tomar uns goró, né? Eu conheço de cachaça. O negócio é o seguinte: primeiro eu cheiro a bicha [a cachaça], mas de leve pra não estragar o nariz. O cheiro tem que ser de engenho, de cana, de melaço. Não pode ter cheiro de álcool, não pode ser forte. Queimando, sabe? Depois eu balanço. Assim, ó! [O comerciante pega uma garrafa PET cheia de cachaça e demonstra como se faz o teste de balançar]. Tá vendo? O aljofre. O aljofre são essas bolhinhas aqui [aponta para as bolhas que se formam na superfície do líquido ao chacolhar da garrafa]. Aqui num pode ser muita nem pouca. E o aljofre, que chamam por aí de rosário, não pode durar muito. Ele se acaba logo [O tempo sugerido é de dez segundos de duração das bolhas]. Quando tem muitas bolhinhas e elas duram muito, desconfio logo. Botaram alguma coisa na pinga, às vezes botam até detergente ou sabão pra fazer as bolhinhas. Aí num presta, num é pinga boa. Quando as bolhinhas são poucas ou quando nem se formam, aí é porque botaram água demais pra diluir a pinga. É só água misturada com pinga. Também não presta. Depois do teste do cheiro e do aljofre eu bebo. Se passar por esse teste, que eu faço rapidinho, aqui tá demorando porque eu tô lhe explicando, mas eu faço isso tão rápido que se a pessoa não conhecer nem sabe que eu tô fazendo uma prova. Entendeu?144

A fala desse agente revela como ocorre o processo de controle da qualidade da bebida “clandestina”. As outras bebidas que ele comercializa em seu estabelecimento, com marcas registradas e amplamente conhecidas pelo público não passam por esse tipo de controle. Nesse sentido, a cachaça “clandestina” possui seu próprio processo de controle que é realizado em várias etapas. Começa com os cuidados do produtor, depois passa pelo crivo do atravessador, para finalmente ser avaliada pelo dono do bar e consolidada pelos bebedores seus clientes. A vigilância é feita por cada um desses agentes uns sobre os outros. O pressuposto de que cada um desses agentes possui conhecimentos suficientes para avaliar a

qualidade da bebida promove o clima de desconfiança necessário para a garantia da procedência da cachaça, para além da fama local que a família do produtor possua.

Há mais informações sobre esses estabelecimentos. No próximo capítulo discuto o funcionamento desses lugares. Neste capítulo, abordei o processo de circulação das cachaças. A análise final que faço é a de que o monopólio exercido na circulação impede o escoamento da produção das bebidas que estão fora do páreo comercial criado e mantido pelos monopólios. A solução encontrada por alguns produtores em se desfiliar de associações de produtores e de cooperativas de produção e cancelar o registro de suas marcas para adentrar no mercado da informalidade é uma das respostas locais possíveis à imposição da indústria alimentícia internacional. A negativa da maioria dos produtores em aceitar a imposição da legalização de sua produção para continuar atuando no mercado local consolidado pode ser outra resposta encontrada em campo.

5 CONSUMO DE CACHAÇAS: costumes, valorização e estigma

Eu só gosto de beber se for pra encher a barriga. Zé Brau, Passagem da Onça, Viçosa do Ceará-CE145

Beber e degustar são duas coisas distintas, tá? De conhecer, de degustar, de você ter um conhecimento maior sobre a bebida. E você realmente começar a apreciar. Então, eu tenho minha valorização interna. Esse é um dos grandes sucessos da cachaça, do seu destaque. É a nossa valorização.

Rodrigo, Mixologista e Bartender146.

Neste capítulo apresento duas maneiras distintas de se consumir cachaças. A primeira corresponde aos costumes e práticas que chamo de tradicionais presentes em todo o território nacional. A segunda compreende as novas maneiras de se relacionar com a bebida, elevada ao patamar de símbolo nacional e signo de status social elitizado, presente no contexto de valorização da cachaça em andamento desde os anos de 1990.

Os dados sobre as maneiras tradicionais de se consumir a cachaça em bares, botecos e bodegas foram obtidos a partir do trabalho de campo realizado no período e regiões citadas. Os dados sobre as novas práticas de consumo foram adquiridos a partir da minha participação em simpósios, seminários, festivais de cachaça e dos sítios eletrônicos oficiais de grupos de especialistas da “nova” cachaça.

A letra da música de Ochelsis Laureano, de 1937, ilustra o estereótipo do bebedor do primeiro exemplo discutido neste trabalho. O título original da canção era “Festança no Tietê”. Com a popularização da música nos anos 1950, passou-se a chamar de “Marvada Pinga”, para finalmente receber o título de “Moda da Pinga”, após a sua consagração na voz de Inezita Barroso. Vejamos como a letra retrata o nosso personagem.

Com a marvada pinga É que eu me atrapaio

Eu entro na venda e já dou meu taio Pego no copo e dali num saio Ali mermo eu bebo

Ali mermo eu caio

Só pra carregar é que eu dô trabaio

145 Frase dita em sua casa, onde me acolheu e aos membros da equipe de filmagem que levei para o Ceará em 2015.

146 Palestrante no I Simpósio Tecnologia e Gastronomia da Cachaça, realizado pela UFPB em João Pessoa-PB, de 4 a 6 de dezembro de 2014. O título da palestra de Rodrigo foi “O Cenário mundial da Cachaça”.

Oi lá

Venho da cidade e já venho cantando Trago um garrafão que venho chupando Venho pros caminho, venho trupicando, xifrando os barranco, venho cambetiando E no lugar que eu caio já fico roncando Oi lá

O marido me disse, ele me falô: "largue de bebê, peço por favô" Prosa de homem nunca dei valô

Bebo com o sor quente pra esfriar o calô E bebo de noite é prá fazê suadô

Oi lá

Cada vez que eu caio, caio deferente Meaço pá trás e caio pá frente,

Caio devagar, caio de repente, vô de corrupio, vô deretamente Mas sendo de pinga, eu caio contente

Oi lá

Pego o garrafão e já balanceio que é pá mor de vê se tá mesmo cheio Não bebo de vez porque acho feio

No primeiro gorpe chego inté no meio No segundo trago é que eu desvazeio Oi lá

Eu bebo da pinga porque gosto dela Eu bebo da branca, bebo da amarela Bebo nos copo, bebo na tijela

E bebo temperada com cravo e canela Seja quarqué tempo, vai pinga na guela Oi lá

Ê marvada pinga!

Eu fui numa festa no Rio Tietê Eu lá fui chegando no amanhecê Já me dero pinga pra mim bebê

Já me dero pinga pra mim bebê e tava sem fervê Eu bebi demais e fiquei mamada

Eu cai no chão e fiquei deitada Ai eu fui prá casa de braço dado Ai de braço dado, ai com dois sordado Ai muito obrigado!

Um dado pouco comentado sobre essa música é o fato de sua composição datar do mesmo período do golpe do Estado Novo, quando o então presidente Getúlio Vargas “rasgou” a constituição de 1934 e aprofundou o seu governo ditatorial. Um dos elementos mais combatido nesse governo foi a imagem do malandro, que inclui o bêbado contumaz, anti- herói, a antítese da noção do trabalhador honesto e dedicado estimulada pela propaganda varguista. Mas analisemos rapidamente a letra.

A primeira estrofe abre o mote do bêbado que bebe até cair. Aquela pessoa que só sabe começar a beber, que nunca aprendeu a parar antes de desmaiar e dar trabalho aos outros para conduzi-la até sua casa. A segunda mantém o mote, mas apresenta um bêbado feliz, que canta, cambaleia e dorme onde cai. A terceira indica uma pessoa que não escuta conselhos e que vê motivo em tudo para beber. A quarta e a quinta estrofes fala da alegria do bêbado em encontrar a pinga. Mas também acrescenta um jeito de beber que pode levar em consideração os outros, pois “não bebe de vez porque acha feio”. A sexta estrofe mostra um bebedor eclético, pois toma qualquer tipo de pinga e em qualquer tipo de vasilha. Finalmente, na última estrofe o bêbado exagera numa festa e sai escoltado pela polícia.

A música retrata o imaginário popular em evidência no Brasil quando o tema é beber cachaça. Nesse imaginário, o bêbado é alguém que não faz outra coisa a não ser beber, o destino de quem toma cachaça é perder o trabalho, ser abandonado pela família e acabar na cadeia ou no cemitério. O 7 de setembro, a Lei Áurea, o fim do império e o movimento das duas repúblicas não foram suficientes para acabar com o preconceito no país. Pelo contrário, as circunstâncias históricas, políticas e econômicas em que os grupos dominantes no Brasil se consolidaram, acabaram proporcionando um verdadeiro ódio aos pobres. De tabela, esse ódio se estende também às coisas que as classes baixas consomem, entre elas a cachaça.

O maior dilema e o maior desafio dos defensores da “nova” cachaça encontram-se justamente em superar esse estereótipo que a cachaça carrega. Na parte final deste capítulo discuto algumas possibilidades em que essa superação é proposta pelos especialistas. Por ora, considero importante apresentar um pouco das ideias que dominam a disputa da narrativa sobre a cachaça no atual contexto de valorização da bebida.

Durante o I Simpósio Tecnologia e Gastronomia da Cachaça, realizado em João Pessoa-PB, entre os dias 04 e 06 de dezembro de 2014, tive a oportunidade de assistir palestras e participar de minicursos sobre degustação de cachaças. Na ocasião, a professora e

sommelier de cachaça Edilma Pinto Coutinho, da UFRPE, apresentou uma palestra intitulada:

Coutinho iniciou sua exposição apresentando duas imagens em slides: a primeira representa, em suas palavras, “o cachaceiro, o indivíduo acabado, numa situação de alcoolismo147”; a segunda é uma foto do engenheiro eletricista e especialista em cachaça Jairo

Martins da Silva148. Segundo Coutinho, na foto Jairo

está consumindo a cachaça com glamour, com sofisticação. E esse glamour é um empréstimo mútuo. Quem conhece o Jairo Martins sabe que ele é um homem muito elegante, tem um refinamento natural, o refinamento dele não é forçado, é aquela coisa natural, vem de dentro da alma. E ele, quando ele toma cachaça, empresta esse refinamento à bebida, mas como ele não bebe qualquer bebida, ele bebe cachaças de qualidade [reforça], então as cachaças de qualidade também emprestam o refinamento [delas] a ele. É uma

valorização por empréstimo mútuo. Isso é um pouco do atual consumidor de

cachaça (grifos meus).

A professora, cujo doutorado é em engenharia de produção, dividiu a sua exposição em três fases de “evolução da cachaça”, a saber: a) fase do preconceito e arcaísmo tecnológico; b) fase da qualificação e da evolução tecnológica; e c) fase da glamourização da cachaça.

A primeira “fase” corresponde ao período histórico que abarca desde o início da colonização do Brasil até meados dos anos de 1970, quando “empresários” do Estado de Minas Gerais iniciaram estudos e aprimoraram a produção da cachaça, que caracteriza a segunda “fase”. A terceira “fase” é o período atual impulsionado pela valorização da bebida nacional por outros países que implica duas coisas: o aumento das exportações, que coloca a cachaça na lista de produtos rentáveis para a exportação; e o reconhecimento interno pelas classes médias e altas brasileiras do valor da cachaça.

Na análise que a especialista faz, o Brasil já superou o que ela chama de “fase do preconceito e arcaísmo tecnológico”, uma vez que, no seu entender, os senhores de engenho foram substituídos por empresários. Mesmo assim, Coutinho admite que “nós produzimos cachaças e cachaças. Nós produzimos cachaças de excelente qualidade, garrafas de R$ 600,00 (seiscentos reais), e as cachaças de baixa qualidade e preço acessível às pessoas que estão nessa condição de exclusão social”.

A fala da professora demonstra as diretrizes centrais do processo de valorização da bebida. O que ela chama de “valorização por empréstimo mútuo” é sintomático de uma elite

147 Quem primeiro utilizou o termo “alcoolismo” foi o médico Magnus Huss, em 1852. A época o termo ainda não estava associado à noção de patologia social. A ideia de “doença social”, que incluía a tuberculose, a sífilis e o alcoolismo, doenças essas vinculadas ao modelo de industrialização e inchaço das cidades, via no indivíduo um portador de males que poderiam ser propagados pelo convívio social. Daí a atuação médica no controle dos corpos pela via do sanitarismo e da higienização como sinônimos de saúde (HARRIS, 1993). 148 Jairo Martins da Silva foi o mentor do curso de Sommelier de Cachaças no Brasil. Autor do livro “Cachaça:

o mais brasileiro dos prazeres” (SILVA, 2006). Currículo Lattes disponível em: http://lattes.cnpq.br/8075689291014844 Acessado em: nov/2018.

que nega as “pessoas que estão na condição de exclusão social”. A valorização se dá porque tanto quem bebe quanto o destilado que é bebido são “refinados naturalmente”, o bebedor traz consigo (“na alma”) o refinamento de sua classe social enquanto que a bebida recebe o seu refinamento da marca (“de qualidade”) estampada no rótulo. O bebedor elegante é identificado com a pessoa que dispõe de R$ 600,00 (seiscentos reais) para adquirir uma garrafa de 700 ml de cachaça. E a qualidade da cachaça é identificada com uma série de mudanças a serem feitas para espantar o fantasma da imagem negativa da bebida, que inclui o modelo da garrafa, o estilo do rótulo, os tipos de madeiras e o tempo em que a cachaça foi envelhecida, além do preço, que precisa ser inacessível aos que se encontram em “condição de exclusão social”.