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Para abrir os trabalhos, considero importante o debate inicial sobre a noção de identidade nacional que constitui o pano de fundo do processo de patrimonialização aqui estudado. Para afirmar a nacionalidade brasileira da cachaça, como um requisito importante ao seu reconhecimento como patrimônio cultural brasileiro, preciso realizar uma breve revisão acerca dos conceitos de Estado, nação, estado nacional e nacionalismo, sem no entanto ter a pretensão de esgotar o assunto (NASCIMENTO, 2003).

Neste trabalho, sigo as reflexões propostas por Guibernau (1997) ao definir tais conceitos a partir de autores clássicos. Segundo esta autora, o termo nação refere-se a “um grupo humano consciente de formar uma comunidade e de partilhar uma cultura comum, ligado a um território claramente demarcado, tendo um passado e um projeto comuns e a exigência do direito de se governar” (GUIBERNAU, 1997, 56). Nesse sentido, o conceito de nação proposto por Guibernau possui cinco dimensões que se complementam: as dimensões psicológica, cultural, territorial, política e histórica. Apresento mais adiante como a cachaça, na condição de símbolo nacional, perpassa por essas dimensões.

A autora adota o conceito weberiano de Estado como “uma comunidade humana que exige (com sucesso) o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um dado território” (grifos da autora) (GUIBERNAU, 1997, 56). Esses dois conceitos (nação e Estado) associados formam o estado nacional ou estado-nação que Guibernau define como

(…) um fenômeno moderno, caracterizado pela formação de um tipo de estado que possui o monopólio do que afirma ser o uso legítimo da força dentro de um território demarcado, e que procura unir o povo submetido a seu governo por meio da homogeneização, criando uma cultura, símbolos e valores comuns, revivendo tradições e mitos de origem ou, às vezes, inventando-os (GUIBERNAU, 1997, 56).

Por último, a autora discute o conceito de nacionalismo definindo-o como um “sentimento de pertencer a uma comunidade cujos membros se identificam com um conjunto

de símbolos, crenças e estilos de vida, e têm a vontade de decidir sobre seu destino político

comum” (grifos meus) (GUIBERNAU, 1997, 56). Para Guibernau, o nacionalismo é uma forma de ideologia, associada ao surgimento e expansão do estado nacional, que se compromete com as ideias sobre soberania popular e democracia, ambas frutos das revoluções americana e francesa (GUIBERNAU, 1997, 11).

Assim definido, o nacionalismo possui dois atributos fundamentais: o seu caráter político e a sua capacidade de criar identidade entre as pessoas que comungam os mesmos símbolos e valores. O caráter político atua como ideologia, tentando construir uma hegemonia sobre a ideia de que Estado e nação precisam viver em harmonia. A construção da identidade acontece entre e para indivíduos conscientes de fazer parte de determinados grupos, mas não apenas. Guibernau aciona a definição de Barth para quem “os grupos tendem a se definir não pela referência a suas próprias características, mas pela exclusão, isto é, pela comparação com os ‘estrangeiros’” (GUIBERNAU, 1997, 58). Assim, o sentimento de pertença ao grupo está fundado nos valores culturais, na elaboração do passado e no projeto de futuro comuns a todos e na permanência em um território que é compartilhado (GUIBERNAU, 1997: 11). A autora defende que “o poder do nacionalismo emana de sua habilidade para engendrar os sentimentos em torno de pertencer a uma comunidade específica. Os símbolos e ritos desempenham um grande papel no cultivo de um senso de solidariedade entre os membros do grupo” (GUIBERNAU, 1997, 11-2).

Portanto, os símbolos que representam a nacionalidade são resultados de processos sociais, frutos de certas escolhas e da negação de outras, levados a cabo por parte de grupos que são política, simbólica e economicamente dominantes. Como afirma Gellner, “o nacionalismo usa a proliferação de culturas ou de riqueza cultural preexistentes e historicamente herdadas, embora as utilize de forma muito seletiva e, com maior frequência, as transforme radicalmente” (GELLNER, 1983, 55)19. No Brasil, o processo de construção da

nação e de seus símbolos ocorreu concomitante ao processo vivido por outras nações, cujos movimentos de construção dos nacionalismos estavam em plena ascensão tanto na Europa quanto nos EUA (CAPISTRANO DE ABREU, 1988; GUIBERNAU, 1997).

A ascensão do estado nacional se deu num processo multidimensional que resultou em transformações significativas nas relações de poder entre os grupos sociais, tanto internamente quanto nas relações com outros grupos. Como afirma Guibernau,

Os principais elementos desse processo incluem a consolidação das unidades territoriais pelos estados absolutistas burocráticos, que pela primeira vez puderam manter o monopólio dos meios de violência dentro de seu território, a transformação dos limites que delimitavam os diferentes estados em fronteiras claramente fixadas, a emergência da burguesia como uma nova classe muito receptiva às ideias do Iluminismo, e o novo papel dos monarcas e governantes que se caracterizou por uma mudança fundamental entre governantes e governados (GUIBERNAU, 1997, 60-1).

19 Tradução de minha autoria a partir do original em inglês. “(…) nationalism uses the pre-existing, historically inherited proliferation of cultures or cultural wealth, though it uses them very selectively, and it most often transforms them radically” (GELLNER, 1983, 55).

Mas qual a importância dessa discussão para o estudo da patrimonialização da cachaça? É que o estado-nação surge simultaneamente com os símbolos responsáveis pela construção da identidade nacional. Tais símbolos representam o estado-nação reforçando tanto o que lhe caracteriza como único quanto o que lhe distingue dos outros estados-nações. Os símbolos escolhidos nesse processo ajudam a definir e a legitimar o patrimônio cultural. Aqui cabe uma ressalva para discutir as disputas intelectuais sobre as respostas dadas às perguntas “o que é o Brasil?” e “o que é o brasileiro?” que acaloraram os debates durante o Brasil colônia e principalmente a partir do Brasil imperial e das repúblicas, quando se começou a inventar o país que aprendemos a reconhecer como Brasil até os dias atuais. É no bojo dessas discussões que vimos sendo construída a imagem da cachaça como bebida nacional (FOLEGATTI, 2013).

Segundo José Honório Rodrigues, “o Brasil nasceu para a história quando os portugueses aportaram às suas costas e iniciaram o processo de europeização da nossa terra” (in. CAPISTRANO DE ABREU, 1988, 35). A afirmação de Rodrigues nos mostra que os primeiros embriões da nacionalidade brasileira estão comprometidos com a reprodução do estilo de vida europeu nos trópicos. Perceber isto é fundamental para entender como outras formas de organização social que compõem a população serão incorporadas e/ou negadas como pertencentes ao país que viria a surgir fruto do processo de colonização do chamado “Novo Mundo”.

Ao contrário de outros historiadores do Brasil, tais como Martius e Varnhagem, Capistrano de Abreu entendeu que o sentimento nacional é fruto de uma transfiguração psicológica. Certo sentimento de “inferioridade”, presente nos colonos em relação aos “superiores” portugueses da metrópole, passou por um processo de transformação oriundo das inúmeras revoltas levadas a cabo na colônia frente aos abusos da corte na cobrança de impostos e no tratamento social com os colonos (MELO, 1984). Para Capistrano de Abreu, o Sete de Setembro, embora mascarado por todos os subterfúgios da coroa portuguesa e das elites no Brasil, é consequência das lutas travadas na colônia e não a conquista de um príncipe que se transforma em imperador “revoltando-se” contra o próprio pai. Sobre a mudança no sentimento de inferioridade do colono, afirma Capistrano de Abreu, em 1875, que

Não se pode determinar a duração desta situação psicológica naturalmente transitória, mas é fácil ver por que ela cessou. Passaram-se os tempos! Os holandeses foram derrotados; os paulistas transportaram para o seio das florestas as epopeias que os portugueses tinham acinzelado nos seios dos mares; em Pernambuco houve a guerra dos Mascates e alhures revoltas mais ou menos sangrentas; os interesses reinóis e coloniais bifurcaram-se e tornaram-se antagônicos; o sentimento de fraternidade começou a germinar; contos populares surgiram, inspirados pelo desdém do opressor. A pouco e

pouco a emoção antiga foi desaparecendo; a emoção de superioridade rebentou, cresceu e deu-nos o Sete de Setembro, o dia-século da nossa história (CAPISTRANO DE ABREU, 1988, 35-6).

De acordo com Capistrano de Abreu, a construção da nacionalidade brasileira está relacionada a certo “sentimento nacional” que ganhou forma ao longo dos primeiros trezentos anos de colonização (CAPISTRANO DE ABREU, 1996). Tal sentimento se alimentou nas revoltas contra a coroa portuguesa, principalmente nas lutas separatistas motivadas, majoritariamente, pela insatisfação com a cobrança de tributos considerados injustos pelos revoltosos (FIGUEIREDO, 2005).

Uma curiosidade é o fato de que à época, o sufixo “eiro”, de brasileiro, indicava a atividade realizada na construção da colônia. Durante o período colonial, o termo brasileiro significava aquele que veio fazer (e se fazer, no sentido de fazer negócios) o Brasil. Quando observamos as regras linguísticas, na maior parte das línguas neolatinas, o adjetivo pátrio recebe o sufixo “ense” ou “ano”. Se essa regra tivesse sido seguida no Brasil, os nascidos e naturalizados seriam designados como brasilianos ou brasilienses20. Assim, numa

combinação arbitrária, no processo histórico “os brasileiros”, aqueles que vieram explorar e povoar o continente, transformaram-se em naturais do Brasil (brasileiros), excetuando-se as etnias indígenas e os afrodescendentes que, a partir do autoritarismo nacional brasileiro, influenciado pelo “racismo científico” do século XIX, foram incorporados à nação como se pertencessem a uma categoria inferior de pessoas (SCHWARCZ, 2005; CORREA, 2013).

Considero importante entender que, na construção e consolidação do estado nacional, o nacionalismo se torna uma importante ferramenta no processo de homogeneização dos valores de uma população com a finalidade de aumentar o grau de coesão social. Como defende Guibernau,

Não é simplesmente o fato de a relação do estado com os cidadãos basear-se num elo político, mas antes de a base de sua relação política ser vista como uma expressão da relação multidimensional que deriva da ideia de formar uma nação, de ser uma comunidade que partilha todos ou alguns dos seguintes componentes sociais: cultura, território, economia, língua, religião e assim por diante. O resultado disso é a criação de uma espécie de personalidade – “anglicidade”, “germanicidade” –, que salienta as características dos cidadãos de uma nação particular, comparados com os de outras (GUIBERNAU, 1997, 69).

Para tal, o sentimento nacionalista compreende elementos culturais amplamente compartilhados pelas pessoas, revivendo, inventando e transformando tradições. No caso da cachaça, a história do Brasil colonial é acionada para explicar o mito de origem da bebida. A

20 Após a construção de Brasília no Distrito Federal, os nascidos naquela cidade adotaram o termo brasiliense como adjetivo pátrio.

partir do chamado ciclo da cana-de-açúcar, as cinco dimensões presentes no conceito de nação proposto por Guibernau são evidenciadas: psicológica, cultural, territorial, política e histórica. Assim, a história da cachaça se confunde com a própria história do país: como “primeira indústria brasileira” (ANTONIL, 1997); como um produto derivado da cana-de-açúcar, principal moeda colonial por trezentos anos (CASCUDO, 1986); como a bebida responsável pela energia física dos escravizados (e também a sua desgraça) (CALASANS, 2014); e como a bebida nacional sorvida durante as revoltas contra a coroa e contra o império (FIGUEIREDO, 2005; CARNEIRO & VENÂNCIO, 2005). São esses e outros elementos que vão constituir a “brasilidade” da cachaça.

A construção oficial da consciência nacional no Brasil se iniciou, de fato, no segundo reinado, a partir de 1831, com D. Pedro II sendo guiado pelos intelectuais que habitavam a corte do infante imperador, com destaque ao papel que José Bonifácio de Andrada e Silva21

exerceu na construção da política de integração e consolidação do Estado nacional brasileiro. Para articular o conhecimento a ser coletado e arquivado sobre o Brasil, em 1838, D. Pedro II criou o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) cuja missão era, entre outras coisas, contar a história (oficial) do Brasil. Em 1846, o IHGB lançou o concurso intitulado “como escrever a história do Brasil”, cujo vencedor foi o alemão Carl von Martius (SCHWARCZ, 1998).

A tese de Martius, intitulada Como se deve escrever a História do Brasil (MARTIUS, 1982), cuja primeira edição é de 1847, funda um mito central da origem da nação brasileira, o mito da relação harmoniosa entre as três raças que formaram o “brasileiro” (índios nativos, brancos europeus e negros africanos), que é acompanhado pela ideia da influência das dimensões continentais do país na composição dos comportamentos sociais da nação brasileira. Imagens como a do índio preguiçoso, do branco desbravador do mundo selvagem e da vocação do negro para o trabalho forçado se tornaram lugar-comum na construção da nacionalidade brasileira (SCHWARCZ, 2005). O texto de Martius inspirou, praticamente, todas as gerações de historiadores e literatos que pensaram a história do Brasil, apesar da crítica de Capistrano de Abreu, de 1883 (LEOPOLDINO, 2015) e de sua obra-prima

Capítulos de História Colonial, cuja primeira edição saiu em 1907 (CAPISTRANO DE

ABREU, 1988).

Vale lembrar que o discurso de valorização do europeu (entenda-se: “branco”22,

estrangeiro, não-indígena e não-afrodescendente) em detrimento da população autóctone e

21 Primeiro grão-mestre da maçonaria do país e responsável direto pela educação de D. Pedro II.

22 A definição de ser “branco” é bastante peculiar ao país, não correspondendo ao que se aceita como ser “branco” nos países europeus e nos EUA.

afrodescendente aparece, de forma subliminar, nos grupos atuais propositores das novas maneiras de beber a “nova” cachaça23. A noção de consumo moderado está associada à ideia

de um povo civilizado, atributo negado a indígenas e afrodescendentes (AVELAR, 2010; CARNEIRO, 2010; VARELLA, 2013; SILVA, 2015).

No contexto de “valorização” da cachaça aqui estudado, determinismos geográficos aliados a valores evolucionistas (determinismos biológicos) pautam o discurso de seus defensores. Para os propositores das novas maneiras de beber a “nova” cachaça, o que chamam de “boa cachaça” é normalmente comparada a “um bom uísque”. Ora, o uísque é produzido na Europa e nos EUA, símbolos de nações do chamado “primeiro mundo”. Além disso, como nos ensina Elias (1994), o termo “boa” implica, mesmo que disfarçadamente, o reconhecimento da existência de seu antônimo “má”, que precisa ser combatido.

A maneira indicada por tais grupos é de que a “boa” cachaça deve ser consumida “com moderação”, legalizada e produzida dentro das normas de controle das empresas transnacionais e dos órgãos de controle estatais. Além de se referir aos cuidados necessários ao consumo de bebidas alcoólicas, a noção de moderação empregada funciona como discurso acusatório que coloca na categoria de “consumo abusivo” as pessoas não enquadradas nos modos definidos como de “consumo moderado”. Nesse contexto, o consumo abusivo tem sido atribuído a pessoas que compõem as categorias “índios”, “negros” e “pobres”, o equivalente simbólico ao não civilizado, a quem se atribui hábitos rudes e pensamentos “atrasados” (CARNEIRO & VENÂNCIO, 2005; CARNEIRO, 2010).

Com o fim do Império, os militares inventaram seu símbolo mor, o Tiradentes (que era alferes24), ao transformar um personagem insignificante na história colonial brasileira,

supostamente inimigo de Portugal (e portanto do Brasil colônia), em herói nacional do Brasil república (CAPISTRANO DE ABREU, 1988; GUILHERME AMARAL, 2003). Assim, se inicia a construção dos símbolos a partir de um novo grupo dominante, formado nas alianças entre os militares, a (ex)corte de D. Pedro II e os proprietários de terras, que vai passar a dirigir o país, substituindo Portugal pela nova aristocracia nacional (SILVA, 1996; SCHWARCZ, 1998).

Nesse contexto, inicia-se o processo de seleção daqueles que viriam a ser os

símbolos nacionais. O debate naquele período girava em torno da definição das caraterísticas,

das mensagens e dos significados que teriam os símbolos nacionais para “os nacionais” e para os estrangeiros. Na passagem do século XIX para o XX, o novo grupo dominante criou um

23 Tema que compõe o objeto de análise do último capítulo. 24 Uma espécie de patente militar de oficial subalterno.

hino nacional e uma bandeira nacional, composta pelas cores nacionais (e sua representação das características distintas do país recém criado) e pelo slogan “amor, ordem e progresso” (previstos no positivismo de Comte25). Em um contexto conservador, como o da implantação

das repúblicas brasileiras, a cachaça jamais foi cotada para gozar do título de símbolo nacional.

É importante pensar a criação dos símbolos nacionais como um processo de condução da coisa pública, de forma a atender aos valores da ordem social para garantir a reprodução do status quo vigente até os nossos dias. Como afirma Oliven,

O que parece caracterizar o Brasil é justamente o fato de ser uma sociedade de imensas diferenças sociais e econômicas na qual verifica-se uma tendência de transformar manifestações culturais em símbolos de coesão social, que são manipulados como formas de identidade nacional (OLIVEN, 1989, 81).

Apesar dos relatos históricos orgulhosos da bebida nacional (CASCUDO, 1986), na prática os hábitos de produzir, comercializar e consumir cachaças sempre ocupou um lugar marginal entre os possíveis representantes da nação recém-criada. Embora presente em toda a história brasileira, a bebida nunca foi pensada como símbolo que promovesse coesão social. Muito pelo contrário, um dos estigmas mais atribuídos à bebida é o de responsável pela desagregação familiar e sua consequente desordem social (GUIMARÃES, 1981; CHALHOUB, 2012).

Na seleção dos símbolos nacionais, muitos esforços foram realizados pelas elites intelectuais da época para definir o que seria o “povo brasileiro”. No campo científico, Nina Rodrigues construía, a partir da antropologia física, o que seria o tipo brasileiro do ponto de vista da eugenia presente no paradigma dominante à época. A questão era: qual seria a saída para o Brasil se livrar de seu maior pesadelo, representado concretamente pelas marcas corporais visíveis dos resultados da mistura de “raças”, a miscigenação? (SCHWARCZ, 2005; CORREA, 2013).

Euclides da Cunha, em Os Sertões, apresenta o homem sertanejo como sendo “antes de tudo um forte”. Embora este autor defina o homem do sertão como um forte, na sua descrição, Euclides caracteriza o sertanejo como uma espécie de mistura grotesca de restos humanos, fruto da degeneração genética praticada no país. O sertanejo de Euclides é o brasileiro desgraçado, alienado de suas faculdades mentais, preso a superstições, a crendices, isolado da civilização que lhe rodeia. Um sujeito rude, ligado ao que há de mais trágico e socialmente inacabado. Tais características são atualizadas para definir os consumidores de

25 Embora sendo os principais seguidores do positivismo no Brasil, os militares retiraram o primeiro princípio comteano (o amor) da bandeira nacional, sabe-se lá por quais razões…

bebidas alcoólicas que não se enquadram nos modelos de bebedores “moderados” propostos pelos grupos especialistas em consumo de cachaça.

Muitos outros elementos foram incorporados ao rol de símbolos nacionais: o samba, a feijoada e o futebol talvez sejam os mais significativos, no que respeita à tentativa de incluir as práticas culturais dos pobres e dos afrodescendentes no seleto clube dos representantes da nacionalidade brasileira (VIANNA, 1996; SANDRONI, 2001; FRY, 2005; WISNIK, 2008). Não há símbolos nacionais que incorporem ou reconheçam a presença dos povos indígenas na construção da nacionalidade brasileira.

O futebol, dentre esses símbolos, foi o único “importado”. Praticado originalmente por uma elite branca, o esporte passou a ser definido como nacional, não o futebol em si, mas o jeito que o brasileiro aprendeu e passou a praticar o futebol no Brasil. Somente depois o futebol se popularizou, mas ele chegou ao país pelas mãos, digo, pelos pés das elites (filhos de diplomatas, de embaixadores, de industriais) (WISNIK, 2008).

Com o samba se deu um fenômeno semelhante, só que às avessas. O samba que se transformou em símbolo nacional não representa as inúmeras formas de danças em roda, os batuques e demais brincadeiras coletivas espalhadas pelo Brasil, que lhe deram os elementos principais de sua composição (harmonia, ritmo, métrica das letras e estilos de dança). Foi o samba marcializado, em alas compostas por fileiras, em compasso binário/quaternário, com letras direcionadas à exaltação da nação, praticado no carnaval do Rio de Janeiro, que virou símbolo nacional (VIANNA, 1996; SANDRONI, 2001). Como afirma Vianna, o carioca não inventou o samba, mas um jeito particular de samba.

A feijoada também representa a tentativa de incorporar à culinária nacional os elementos de uma cozinha romanticamente imaginada como típica das senzalas. O aproveitamento das sobras da cozinha das elites se transformou: de comida de escravo a prato nacional, com toda a simbologia que abarca o verde da couve, o amarelo da laranja, o branco do arroz e, claro, o drinque nacional: a caipirinha (FRY, 2005).

Paralelamente à construção da nacionalidade, o que era de se esperar num país de dimensões continentais, se deu também a construção de símbolos regionais. Tais símbolos representam determinadas características especiais das regiões que compõe o imenso Brasil. Os símbolos regionais pertencem ao país, embora não sejam “nacionais”, por não existirem em todo o território, mas apenas em certas regiões. Daí a necessidade de popularizar os símbolos “nacionais” para todo o território, por meio dos meios de comunicação de massa representados, à época, pelo rádio, para a maioria, e pela literatura, para os poucos letrados do país.

Assim, de José de Alencar a Gilberto Freyre, é possível encontrar esforços nesse