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A divisão sexual do “trabalho do Estado”: delegações e práticas diferenciadas

APROPRIAÇÕES E CONSTRUÇÕES SOCIAIS EM TORNO DO TRABALHO

5.3 Gênero e trabalho

5.3.1 A divisão sexual do “trabalho do Estado”: delegações e práticas diferenciadas

Hirata e Kergoat (2007) destacam a divisão sexual do trabalho90 como uma forma de

divisão social do trabalho decorrente das relações de poder entre os sexos, e chamam a atenção para a centralidade dessa organização, moldada histórica e socialmente, no sentido da manutenção das desigualdades sociais. Essa perspectiva reitera que relações de classe e gênero devem ser pensadas como fatores estruturantes da sociedade, na medida em que estão sobrepostas: “as relações de classe são sexuadas, assim como as relações de gênero são perpassadas por pontos de vista de classe” (Araújo 2005, p. 90).

A formulação de Hirata & Kergoat (2007) diz respeito à dispersão desigual entre homens e mulheres no universo do trabalho, o que está refletida na designação, delegação e na consequente naturalização de ofícios, profissões e atividades como sendo funções próprias de homens ou mulheres. Por uma mirada feminista, e a fim de adequarem o conceito aos novos modos de organizações socioeconômicas, as autoras ressaltam a necessidade de ampliação o conceito de “trabalho”, incluindo, por exemplo, os trabalhos domésticos, os diversos trabalhos não-remunerados e todo o tipo de trabalho não regulamentado. De forma dinâmica entre estrutura e prática, este engendramento social está assentado (e reproduz) os opostos sexuados: espaço público e privado; produção e reprodução; “trabalho masculino” e “trabalho feminino”. Ele “rebaixa o gênero ao sexo biológico, reduz as práticas sociais a ‘papéis sociais’ sexuados que remetem ao destino natural da espécie.” (idem, p. 599)

Essa forma de organização sexuada e desigual está expressa no mundo do trabalho como um todo, e pode ser identificada, assim, dentro de campos mais específicos, como o da atuação

90 O cerne da ideia foi esboçado primeiramente por Engels (2002) em “A origem da família, da propriedade privada

prática dos governos, pela figura de seus operacionalizadores, os seus representantes em suas bordas.

De modo geral, quando analisamos burocracias do nível de rua, observa-se que os empregos tipicamente masculinos proporcionam atividades voltadas para as dinâmicas de uma esfera pública(“para fora”) - como fica claro pelo caso dos auxiliares de fiscalização, que lidam com a imposição de regras, do controle de práticas, com “a rua” -, enquanto que os empregos tipicamente femininos estariam voltados para o “lar”, a esfera privada (“para dentro”) - como as trabalhadoras do care, que tem suas raízes nos vínculos familiares91 (SOARES, 2012;

MOLINIER, 2012) mesmo quando atuam como implementadoras no setor público.

As Agentes Comunitárias de Saúde92 fazem parte deste grupo, categoria profissional

exclusivamente feminina no contexto das chamadas “novas políticas sociais” (LIMA & MOURA, 2005; LIMA & COCKELL, 2008; GEORGES & SANTOS, 2012, 2014). Políticas sociais, estas, voltadas ao alcance das questões referentes à família e ao domínio do lar, através do trabalho de mediação individualizada às beneficiárias dos programas (LOTTA, 2012). Esta mediação “ao nível de rua” configura-se como o maior condicionante da política como um todo. Ela se dá, principalmente, enquanto tradução dos “códigos institucionais” dos programas às famílias atendidas, o que se faz possível devido à proximidade – comunitária, mas sobretudo social/de gênero - entre as profissionais e as suas beneficiárias (GEORGES & SANTOS, 2012).

Pelo exemplo das Agentes Comunitárias de Saúde, vê-se que ocorre uma alocação proposital de mulheres, de determinada origem social e comunitária, a fim de que, através de sua potencial capacidade de criar vínculos e captar demandas locais (GEORGES & SANTOS, 2013), os propósitos institucionais inerentes ao programa social sejam produzidos, com vistas no alcance que têm aos lares e aos assuntos ligados à esfera privada.

Afinal, o que podemos chamar de “divisão sexual do trabalho do Estado” fica visível, a princípio, pela distribuição diferenciada de homens e mulheres dentro das burocracias (“a nível de rua” principalmente), mas também pela forma com que as diferentes frentes da governança

91 Isso não quer dizer que o que se seria considerado uma função não-pública esteja desprovida de capacidade de

produção de política. Susan Okin (2008) traz uma importante discussão sobre o “quanto do pessoal é político”, ela traz dois pontos principais: (1) chama a atenção para as dinâmicas de poder entre os sexos, ainda que em ambientes domésticos; (2) e diz sobre a completa independência das relações sociais domésticas com as relações sociais não- domésticas.

92 A atuação dessas mulheres faz parte das diretrizes do Programa Saúde da Família (PSF) e integrado ao Sistema

Único de Saúde (SUS), que objetiva atuar no sentido de promover a prevenção e a identificação de doenças, assim como a educação sanitária, por meio de uma abordagem comunitária de proximidade entre as agentes e as usuárias (GEORGES & SANTOS, 2010).

são estruturadas a ponto de intervir nas sociabilidades (através de programas, serviços e políticas públicas) e promover contato com o público.

O foco está posto, portanto, sobre os modos de interações que envolvem a(o)s agentes nas “pontas” do Estado diante as construções de gênero ali assentadas como seus suportes, seus condicionantes. Num jogo interacional, as trabalhadoras e os trabalhadores devem gerir suas emoções (HOCHSCHILD, 1983) de forma a satisfazer as expectativas da relação direta com o público, a fim de sustentar uma relação que se torna complicada, dividida entre o vínculo individual e o profissionalismo, buscando “um equilíbrio entre o limite de suas emoções e a exequibilidade do seu trabalho” (GEORGES & SANTOS, 2014).

A busca por este equilíbrio também se mostra como sendo uma necessidade diária no caso dos auxiliares de fiscalização. A experiência dos agentes da PBH está repleta de situações em se exige um outro tipo de trabalho emocional, também marcado pela necessidade do “equilíbrio”, da “boa medida”. Se por um lado os trabalhos femininos exigiriam demonstração de ternura, gentileza, delicadeza, intuição, sensibilidade e doçura, já nos trabalhos masculinos, as tarefas exigiriam algum grau de agressividade, rudeza, dureza e frieza (SOARES, 2013). Isso fica ainda radicalizado no contexto de atividades ligadas ao controle social, onde o conflito muitas vezes se materializa em forma de violência, como veremos na seção seguinte pela análise da prática dos auxiliares de fiscalização da PBH.

Portanto, o esforço foi o de ater os olhares para uma divisão fundamental e hierárquica do mundo do trabalho (de modo geral) observada em vários de seus aspectos, entre atividades, tarefas e racionalidades técnicas, presente também no âmbito dos trabalhos subalternos do Estado. O esforço é o de enxergar nesse universo o que está posto no mundo do trabalho como um todo, em termos de sua organização sexual, da delegação diferenciada de funções dentro da governança e da reprodução de papéis sociais ligados às construções de gênero, criando potencialidades de intervenção específicas entre estas funções sexuadas.

Concomitante a esta mirada, é preciso estar atento às particularidades empíricas, sobretudo no que diz respeito aos efeitos reais dessa estruturação para a dimensão das práticas, em vista desses “trabalhadores do Estado” como burocratas do nível de rua (LIPSKY, 1980). Desta forma, parece-me adequado voltar o foco à análise dos auxiliares de fiscalização, principais sujeitos da pesquisa, e observar como este posto de trabalho está em constante elaboração enquanto um trabalho masculino, tanto pelos aspectos que o posiciona e o legitima institucionalmente, mas, dinamicamente, também informado pela apropriação dos trabalhadores e prática de trabalho.