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A perspectiva da sociologia interacionista diante do contexto da implementação dos serviços públicos

3. CAPÍTULO 3: ÀS PONTAS DO ESTADO: O NÍVEL DA

3.2 A perspectiva da sociologia interacionista diante do contexto da implementação dos serviços públicos

A fim de seguir problematizando o objeto de pesquisa, proponho a perspectiva interacionista como um instrumental teórico para reflexão acerca das dinâmicas da implementação da fiscalização nas ruas de Belo Horizonte, como um complemento necessário para a teoria da burocracia do nível de rua. Levo a cabo a sugestão já exposta de que o controle social protagonizado pelo Poder Público (entendido, portanto, como um serviço público) é um constructo social não fixo, fruto das práticas sociais produzidas nas pontas. Diante disso, as categorias das análises interacionistas proporcionam bases metodológicas mais claras e operacionalizáveis no sentido da pesquisa empírica qualitativa. Em sua tese de doutorado, Lotta

(2010) reconhece que existe na literatura sobre políticas públicas uma lacuna de análise sobre a implementação de políticas referente principalmente às interações entre os atores envolvidos nestes processos. Segundo a autora:

... os agentes de implementação lidam, em sua prática, com processos de interação que envolvem diferentes valores, referenciais e identidades. Nesses processos de interação, portanto, entram no contexto as mais variadas identidades, demandas, necessidades e referenciais, além de constrangimentos e normas institucionais, que devem ser negociados para a construção das práticas de implementação. Esses processos requerem negociações entre os diversos fatores que aparecem na interação, para que se possa, efetivamente, implementar as políticas públicas. (LOTTA, 2010, p.53)

Diante disso, a metodologia implícita à perspectiva interacionista propicia o desvelamento de aspectos importantes para as questões feitas nesta investigação, como os códigos compartilhados e os sensos de rotina, mas também abrem precedentes para a captação de rupturas, como as saídas informais e as quebras de expectativas, no contexto de um controle que se faz em relação e pela relação.

Assim, logo de início, lanço mão da noção de Hughes (1958, 1976) acerca do caráter interativo presente em qualquer contexto de trabalho, denominando o social drama of work. O autor traz a proposição de que:

(…) all work involves some sort of social matrix. Work is done in a social setting. And the people in this social setting are not merely performing technological tasks, but they are interacting with one another. They are obeying rules. In order to understand the work, one must understand the roles of the various people involved in it. 39 (HUGHES, 1976, p.2)

Em suma, Hughes quer dizer que não basta entender os condicionantes objetivos ou tecnológicos envolvidos nas atividades laborais, mas como os indivíduos se situam (subjetivamente e intersubjetivamente) a partir do contexto que está inserido.

Além disso, o autor coloca que outra dimensão importante do “drama do trabalho” diz respeito, por exemplo, à distinção fundamental da situação de quem recebe e quem oferece um serviço. A natureza do envolvimento do “prestador do serviço” com o serviço é marcada pela repetição, pela rotina e, consequentemente, pela familiaridade com os códigos envolvidos,

39 (...) todo trabalho envolve algum tipo de matriz social. O trabalho é realizado em algum tipo de configuração

social. E as pessoas nesta configuração social não performam meras tarefas técnicas, mas interagem umas com as outras. Elas seguindo regras. A fim de entender o trabalho, é preciso compreender os papéis desempenhados pelas várias pessoas envolvidas nele. (Tradução minha)

considerando cada caso como apenas uma parte de todo um programa; opostamente daquele a quem a ação é direcionada (HUGHES, 1976), como no caso dos potenciais infratores do Código de Posturas de Belo Horizonte e seus “aplicadores”. O drama social do trabalho é permeado por dinâmicas comunicativas típicas: saberes comunicativos desiguais, específicos em ambos lados. O “jogo de cintura”, e algum conhecimento dos “termos” da relação, é necessário tanto para o trabalho dos agentes de controle como para o trabalho dos ambulantes, embora sejam conhecimentos táticos e tácitos fundamentalmente distintos. Entretanto, em grande medida, as ações dos atores de ambos lados se completam, são interdependentes enquanto práticas sociais de proximidade.

Tratando-se de situações de interação social, todo tipo de ocupação é relevante, pelo ponto de vista interacionista acerca do mundo do trabalho. Cada qual apresenta condicionantes e efeitos próprios para estas situações, por isso é necessário compreender os impactos das atividades desempenhadas considerando os sujeitos por meio de suas subjetividades e interações, sob as mais variadas dimensões nelas implicadas. Pela perspectiva de Hughes (1976), mas também de Dubar (2012), essa atenção deve ser dada da mesma forma, portanto, para ocupações dotadas de prestígio ou sem prestígio (como no caso deste grupo pesquisado). Dubar (2012) aponta que:

Em todos os casos [...], a vida de trabalho é feita, ao mesmo tempo, de relações com parceiros (patrões, colegas, clientes, público, etc.) inseridas em situações de trabalho, marcadas por uma divisão do trabalho, e de percursos de vida, marcados por imprevistos, continuidades e rupturas, êxitos e fracassos. A socialização profissional é, portanto, esse processo muito geral que conecta permanentemente situações e percursos, tarefas a realizar e perspectivas a seguir, relações com outros e consigo (self), concebido como um processo em construção permanente. É por esse e nesse “drama social do trabalho” que se estruturam mundos do trabalho e que se definem os indivíduos por seu trabalho. (p.8)

No caso da pesquisa sobre a fiscalização, o foco foi dado ao posto de trabalho de menor prestígio, uma vez que, ao mesmo tempo, é o posto de trabalho pelo qual as atividades desenvolvidas dizem mais respeito à expressão rotineira da construção do controle social, pelo qual se fazem expostos os conflitos, compartilhamentos, cumplicidades, negociações. No campo da fiscalização, foi através da prática de trabalho dos auxiliares que se fez possível observar, em movimento, um tipo de controle que se faz exclusivamente pelo encontro face a face.

Como continuidade dessa perspectiva, se faz oportuno o aporte conceitual e metodológico de Becker (2008) para pensar nas regras de conduta designadas para regular a sociabilidade nos espaços públicos. A abordagem teórica como a proposta pelo autor não fixa

a análise em categorias rígidas ou apriorísticas, mas traz categorias de análise passíveis de ser ajustadas às orientações e nuances trazidas pelo trabalho de campo. Seguindo pela mirada interacionista, passa a ser esclarecedor, assim, situar os auxiliares da Prefeitura como atores ativos para desse contexto peculiar de implementação voltado ao controle social.

A perspectiva de Becker (2008) tem a virtude de não pressupor, ante ao trabalho empírico, a irrelevância de qualquer participante enquanto sujeito de pesquisa, enquanto produtor de sentido e significado dentro das elaborações coletivas. A concepção de controle social implícita coloca como centro da análise a própria regra socialmente construída, a fim de, a partir dela, buscar conhecer seus “custos” e seus funcionamentos contextuais. Se, por um lado, Becker não apresenta uma perspectiva histórica consistente, oferece, por outro lado, a possibilidade de uma abordagem metodologicamente mais aplicável para análises sobre diversos mecanismos de criação e imposição de regras, quando ressalta que toda regra está acompanhada de conflito de moralidades (BECKER, 2008), sobre o que seja correto ou não, aceitável ou não, tolerável ou não.

As noções em torno do controle social e do desvio estão principalmente em “Os Outsiders” (2008). O ponto de partida do livro assenta-se no esforço de desconstrução do estatuto “naturalizado” das leis, e das normas sociais, chamando a atenção que os critérios sociais sobre o que seja considerado “certo” e “errado” em determinado contexto. Becker (2008) transpôs o foco analítico desde o conteúdo dos atos para as relações sociais adjacentes a eles, a partir de estudos empíricos sobre usuários de maconha e músicos em casas noturnas de jazz. Para o autor, o desvio - sob as formas de ilegalidade, irregularidade ou transgressão, se contextualizadas - não se trata de uma qualidade alocada no ato em si, ou na pessoa em si, mas resulta das interações entre o indivíduo supostamente desviante e aqueles que respondem ao ato supostamente desviante. A valoração moral de determinado ato está expressa na construção de expectativas de comportamento dos atores em resposta ao mesmo, assim, determinado ato só se transforma em desvio (e determinado indivíduo só transforma em desviante) uma vez que são amplamente rotulados pelos atores envolvidos (BECKER, 2008).

Partindo disso, é necessário que a noção de desvio seja compreendida como uma categoria não rígida, passível, portanto, de transformações, variando inclusive nos diferentes contextos sócio-históricos. O controle social e as regras não podem ser entendidos, assim, como respostas ao crime, ou a contravenções à lei escrita, como pressuporia a sociologia durkheimiana, mas deve ser entendida como uma peça fundamental para a própria existência das regras e da reprodução de seus princípios morais.

Sabe-se que em situações de “imposição de regras”, onde os sujeitos se deparam com constrangimentos, o conflito é iminente. Mas o que Becker (2008) ressalta de mais importante é que há conflito constante – claro, a passos mais longos – sobre os princípios norteadores do funcionamento das regras, como os critérios supostamente objetivos de legalidade/ilegalidade. O autor não pensa a criação nem a operacionalização delas enquanto direcionamentos automáticos ou unidirecionais, mas como o centro de lutas, pelas quais os referenciais são criados e recriados relacionalmente. Uma vez que a categorias “desvio” e “sujeito desviante” são dinâmicos, obedecem a lógica construída das situações sociais (BECKER, 2008), a noção de controle social toma dimensões centrais para a teoria, fazendo inclusive das próprias agências e agentes de controle importantes objetos de pesquisa.

Por esta perspectiva, interessa olhar não somente sobre aqueles que recebem as rotulações e reprovações sociais, mas com aqueles que são os principais agentes produtores e reprodutores das normas, chamados pelo autor de empreendedores morais – podendo ser divididos em dois tipos, os criadores de regras e os impositores de regras - aqueles que mais ativamente elaboram e veiculam determinados sensos de moralidade. Os empreendedores morais são atores que interessam muito para as discussões realizadas nesta pesquisa, uma vez que identifico que estes, segundo a caracterização de Becker (2008), podem ser facilmente associados à figura dos burocratas do nível de rua, como conceituou Lipsky, especificamente quando pensamos nos “burocratas” que trabalham para agências públicas de controle e regulação. Embora Lipsky (1980) tenha analisado a burocracia por um viés micro sociológico, debatendo os “Dillemas of the individual in public sevices” (subtítulo do livro), não explorou incessantemente a perspectiva interacionista para se aprofundar nos efeitos de uma de suas características estruturais: o contato direto com o público.

Por mais que empreendedores morais possam ser frequentemente associados a membros de instituições de controle, suas atitudes não podem ser generalizáveis ou antecipáveis. Por mais que desempenhem papéis sociais nos jogos do conflito, muitas vezes ligado a uma tarefa de trabalho, sua agência depende, mútua e imediatamente, da agência de seus interlocutores, a quem lhes são endereçados os esforços de controle. Por esta perspectiva, no caso dos agentes nas linhas de frente do Estado, suas ações não estão apenas pautadas pelas regras oficiais (mais ou menos legíveis, mais ou menos estáveis), mas submetidos, a todas as nuances que as relações sociais proporcionam situacionalmente, ao nível dos encontros sociais dos cotidianos, das regras tácitas dessas relações, das saídas informais e etc.

Assim, devemos nos ater para aspectos como o traquejo e o discernimento individual dos empreendedores morais, inscritos, é claro, em uma racionalidade contextual. Becker

problematiza, nesse sentido, a “imposição de regras”, desnaturalizando-o como um processo mecânico:

Em geral, o impositor de regras tem grande poder de ponderação em muitas áreas, ainda que apenas porque seus recursos não são suficientes para fazer face ao volume de transgressões com que deveria lidar. Isso significa que não pode atacar tudo ao mesmo tempo, e nessa medida tem de contemporizar com o mal. Não pode fazer todo o serviço e sabe disso. Age com calma, na suposição de que os problemas com que lida estarão presentes por muito tempo. Estabelece prioridades, lidando com uma coisa de cada vez, enfrentando os problemas mais urgentes de imediato e deixando outros para mais tarde. (p. 164)

Tipicamente, os impositores de regras não estão necessariamente preocupados com o conteúdo das regras que aplicam, mas entendem a existência delas como justificativa suficiente para motivá-los a exercer um papel situacional de autoridade, proveniente do amparo de algum tipo de institucionalidade por trás de sua função. Isso significa que este empreendedor moral não precisa, expressivamente, concordar com o teor da regra que aplica (BECKER, 2008), sendo a exequibilidade das regras a questão destes indivíduos no trabalho. Em um mesmo sentido da caracterização que faz Lispky (1980) acerca dos burocratas do nível de rua, Becker (2008) ressalta os impositores de regras lidam cotidianamente com dilemas e incertezas relacionados com a norma em sua forma prática, e para isso ressalta a discricionariedade como aspecto central para este trabalho incessantemente relacional:

Claramente, quando um impositor de regras tem a opção de impor uma regra ou não, a diferença no que faz pode ser causada pela atitude do infrator em relação a ele. Se o infrator for respeitoso, o impositor pode suavizar a situação. Se for desrespeitoso, as sanções poderão ser aplicadas. (BECKER, 2008, p.164)

Levando-se em conta que a relação entre burocrata do nível de rua e seu público pode ser lida como uma ordem de interação social construída, portanto, por uma cadeia de expectativas mútuas entre os atores (GOFFMAN, 1986), a maneira com que as pessoas reagem às ações dos burocratas, influenciam toda a atuação procedente daquela burocracia. O mesmo também ocorre no sentido inverso. No caso da atuação dos auxiliares de fiscalização, a atribuição de seus papeis como agentes do Estado parece não ser suficiente para sustentar a materialidade das regras. Na maior parte do tempo, dispõem de uma discricionariedade fragilizada pelo baixo reconhecimento de sua autoridade como “agente da lei” “ao nível da rua”, o que lhes pressiona a assumirem um papel incômodo enquanto “amortecedores de conflitos” e como mediadores/tradutores das controvérsias políticas expressas através das práticas de implementação.