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3. CAPÍTULO 3: ÀS PONTAS DO ESTADO: O NÍVEL DA

3.1 Burocratas do nível de rua: trabalhadores nas “linhas de frente” do Estado

3.1.2 Discricionariedade: limites e alcances

A atuação da burocracia nas linhas de frente do Estado deve ser referenciada, em grande medida, por ocuparem uma posição de decisão em última instância na implementação de políticas públicas, e para isso dispõem de relativo poder discricionário dentro das agências públicas. Uma das relevâncias dessa característica está em expor a maleabilidade das regras formais, enquanto sua aplicação abre margem para interpretações e interpelações pelo público tocado. A percepção do público acerca do trabalho desses profissionais os leva a crer que as decisões tomam não são totalmente definitivas, enxergam no papel individual deste burocrata uma possibilidade para fazerem as regras menos duras (LIPSKY, 1980). A maneira com que exercem a discricionariedade, sempre em cenários de interação direta com o público envolvido nas decisões, faz com que suas ações sejam menos racionalizadas, no sentido weberiano do termo.

Lipsky (1980) deixa claro que a discricionariedade dos burocratas nas linhas de frente do Estado está em poder determinar a natureza, a quantidade e a qualidade dos benefícios ou sanções planejadas por suas organizações estatais. Um dos motivos para que estes agentes exerçam considerável poder discricionário é que, muitas vezes, são submetidos a demandas institucionais extremamente contraditórias e volumosas, não passivas de serem programatizadas enquanto tarefas cotidianas. Seu poder de agir seletivamente e criar critérios de prioridades sobre “quem” e “como” recebe os benefícios ou sanções do Poder Público tem importância estrutural para a transformação desses objetivos institucionais em trabalho prático. A discricionariedade é definidora no que diz respeito ao ajuste das tarefas do trabalho e aos objetivos mais amplos da burocracia. Sobre isso, Lipsky (1980, p. 16) chama a atenção para o que ele chama de “autonomia relativa à autoridade burocrática”. Discricionariedade e autonomia são aspectos inter-relacionados para a constituição dos burocratas das pontas como “entregadores” ou “executores” dos serviços públicos.

Em contraponto à autonomia característica desse grupo, Lipsky (1980) esclarece que a tentativa diária em construir uma rotina de trabalho, resulta no que ele chama de client processing, uma espécie de tendência a um envolvimento pretensamente distante e simplificado para com os “clientes”37, isto é, com o público alvo. Lipsky explica que esse tipo de visão sobre o público e o trabalho é resultado da complexidade com que os objetivos burocráticos se apresentam aos burocratas do nível de rua. Trata-se de atalhos cognitivos - adaptações, categorizações, formulação de estereótipos - próprios para cada tipo de trabalho. Por exemplo, diante das transformações institucionais e das dinâmicas frenéticas dos espaços urbanos, um agente de fiscalização é pressionado a reformular suas concepções sobre o que considera ser uma irregularidade, e o que considera ser um infrator, para que, assim, possa lidar com as heterogeneidades e variâncias típicas do seu espaço de atuação e da exequibilidade de suas funções, dia após dia, mesmo face a uma realidade urbana altamente complexa.

As ideias de Simon & March (1972) confluem para este mesmo sentido. Esclarecem que os integrantes de uma organização necessitam elencar prioridades quando elaboram (consciente e inconscientemente) em suas mentes seus objetivos dentro do grupo. A realidade complexa de uma organização é (racionalmente) substituída por um modelo satisfatório, realista e simples que possa ser manejado em dadas situações de resoluções de problemas (SIMON & MARCH, 1972). Uma tarefa grande e complexa, como a de policiais, professores ou qualquer agente de ponta é transfigurada em parceladas e pequenas tarefas, plausíveis para serem executáveis. A “recodificação” da realidade presente no client processing, pode ser entendida como um traço esperado da racionalidade limitada.

Como já foi dito, a discricionariedade característica do trabalho dos burocratas em questão é um ponto importante para se entender a relativa liberdade dos burocratas do nível de rua de “reconstruírem” seu próprio trabalho. Lotta (2008) explicita que estes burocratas não somente atuam como “policy makers” porque estão executando em última instância as políticas públicas, mas também devido ao seu exercício de discricionariedade, que os permite alterar as

37 Ao longo deste trabalho, opto por evitar o termo “cliente” para designar o público alvo dos serviços públicos.

Apesar de ser a tradução literal deste termo na obra original - “client”- este foi utilizado de forma genérica por Lipsky, se referindo ao contexto norte-americano, sobre contextos de instituições tanto públicas como privadas.

Utilizo, portanto, expressões como “público”, “público alvo” para referenciar-me aos interlocutores diários e típicos dos burocratas do nível de rua, com a intenção de não pressupor passividade (o “governado”, o beneficiário) por partes destes indivíduos com relação ao governo; e tampouco designar que exista, a priori, relação mercantil, de clientela (ou clientelismo) entre trabalhadores do Estado e cidadãos em contextos de prestação de serviço públicos.

políticas públicas com certa frequência com vistas no melhoramento das condições de execução de seu trabalho diário.

Na perspectiva de Lipsky, a discricionariedade é uma característica central e, sobretudo, estrutural para a função como funcionário de ponta em uma organização pública. O autor aponta que os atalhos, simplificações e, por vezes, distorções que estes atores fazem das demandas oficiais são de fato uma necessidade. Pelas palavras do autor:

The fact that street-level bureaucrats must exercise discretion in processing large amount of work with inadequate resources means that they must develop shortcuts and simplifications to cope with the press of responsibilities.38 (LIPSKY, 1980, p. 18)

Lotta faz uma reflexão interessante para entendermos os alcances e as bases da agência do burocrata do nível de rua:

A discricionariedade exercida pelos burocratas é, portanto, resultado da interação que exercem entre seus próprios valores, valores de outros atores envolvidos, os procedimentos, restrições, estruturas, incentivos, encorajamentos e proibições. Assim, é necessário examinar os padrões de interação para compreender por que as ações foram feitas daquela forma. A questão, portanto, é olhar para o ambiente institucional e relacional dentro do qual a burocracia opera. (LOTTA, 2010, p. 4)

A associação entre os alcances de ação desses atores, suas interações cotidianas e suas próprias concepções de mundo resultam em construções sociais tanto sobre seu trabalho - seu papel como “trabalhador do Estado” - como sobre seu público específico (LIPSKY, 1980). Há dois pontos relativos ainda à discricionariedade que devem ser elucidados.

Primeiramente, é necessário entender que discricionariedade é um conceito relativo (LIPSKY, 1980, p.15). Isto é, sua relevância não é absoluta, mas relativa às relações sociais estabelecidas em cada contexto de pesquisa, dependente da natureza das atividades desenvolvidas e a conformação das relações de trabalho estabelecidas. Demonstrarei à frente, como isto se manifesta no trabalho dos auxiliares de fiscalização da PBH.

Em segundo lugar, a autonomia burocrática que possuem não resulta em um trabalho livre, sem regras. Certamente ocorre o inverso. O formato de qualquer serviço público é criado e correntemente avaliado pelos estratos gerenciais superiores, por mais que, de alguma forma, recriado em sua fase de implementação (LOTTA, 2010). A autonomia relativa das burocracias do nível de rua é prevista administrativamente, e por isso é constantemente equilibrada por

38 O fato de que os burocratas do nível de rua devem exercer a discricionariedade para processarem grande volume

de trabalho por meio de recursos escassos significa que eles devem desenvolver atalhos e simplificações para lidar com as pressões de suas responsabilidades. (Tradução minha)

cobranças e pressões organizacionais vindas dos gerentes (ou supervisores, como no caso da fiscalização em Belo Horizonte).

Situada no contexto de pesquisas sobre burocratas do nível de rua, Brodkin (2010) chama a atenção para o fato de que a discricionariedade não é distribuída de forma aleatória, mas é estruturada por fatores que influenciam as saídas informais, não-programáticas, dos problemas diários. A importância desse tipo de procedimentos informais para burocracias é ressaltada pela literatura há algum tempo: desde Downs (1964), em sua crítica ao modelo weberiano de burocracia, até autores contemporâneos como Scott (1998) que chama a atenção para a necessidade de um diálogo das interfaces do governo com os saberes locais nas fases de implementação dos serviços públicos, diante de um cenário de alta complexidade, onde os modelos rígidos de administração parecem ser sempre insuficientes.

Deve-se enxergar essa autonomia como uma possível positividade, na medida em que é instrumental do ponto de vista gerencial. A título de melhor esclarecimento da questão, aponto: o aspecto da seletividade marcante nas abordagens ao público que fazem os agentes de controle social, não se trata, a princípio, de um privilégio da ocupação, mas uma atribuição (vinda de cima) da necessidade de tomar decisões, o que se materializa em táticas (grupais ou individuais) na ordem do dia, enquanto construção ativa de um programa de ação (MARCH & SIMON, 1974). Trata-se de uma transferência estratégica das controvérsias próprias do âmbito institucional para as linhas de frente (LIPSKY, 1980). Trata-se de um pressuposto importante. No caso dos auxiliares de fiscalização, isso fica evidente no cotidiano dos plantões, quando são obrigados a enfrentar inúmeros problemas de cunho institucional, precedentes à fase de operacionalização. Este problema tem validade diária, sendo “resolvido” nas ruas, e não entre gestores ou legisladores, em escritórios ou gabinetes.

3.2 A perspectiva da sociologia interacionista diante do contexto da implementação dos