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APROPRIAÇÕES E CONSTRUÇÕES SOCIAIS EM TORNO DO TRABALHO

5.2 Vidas de trabalho: circuitos, mercados de trabalho e prospecções

Embora as trajetórias apresentadas abram precedentes para muitos caminhos de análise, devido aos seus variados e incontáveis entrelaçamentos e pontos de contato com representações e construções sociais de todo tipo, o foco está posto, desde a realização das entrevistas, sobre como a dimensão do trabalho está relacionada ao universo do privado. Isso demonstra, de forma mais geral, que as trajetórias são tecidas enquanto parte de construções sociais mais amplas e relações de força. Seguindo o viés explicitado por Telles (2006):

O que importa, porém, é colocar em evidência as práticas e suas mediações. E apreender a nervura própria do campo social que não se deixaria ver se nos mantivéssemos presos às binaridades clássicas na análise do trabalho e do urbano: formal-informal, centro-periferia, emprego-moradia, trabalho-família. Entre esses pontos de referência, arma-se um campo social feito num jogo multicentrado e multifacetado de práticas, mediações e relações de força que tecem, de formas nem sempre evidentes, os campos de possibilidades, e também os bloqueios para o acesso e efetivações de possibilidades de trabalho e condições de vida. (p. 87-88) A partir disso, não pretendo, logo, encerrar estes sujeitos em classificações sociais premeditadas mas, como apontado, situá-los em construções e processos sociais mais amplos a partir de uma série de cruzamentos referenciais que ficam demarcados ao longo da elaboração das narrativas. Afinal, são estas construções sociais que dão sentido às ações individuais, enquanto inscrições registradas nos modos de circular por trabalhos, às racionalidades que conectam a vida no trabalho e os projetos de vida como um todo.

Primeiramente, é preciso indicar que as trajetórias laborais narradas dão indícios de serem parte da tendência contemporânea de flexibilização dos empregos e do mercado de trabalho, como ressaltou Azais (2010) nesse sentido, uma “institucionalização do ‘vago’” (p. 03). O autor afirma existir uma “zona cinzenta” do assalariamento, onde se misturam elementos do trabalho protegido e desprotegido, a partir de uma inclinação à precarização, de relação próxima com as formas de informalidade, o que pode se tornar evidente através do fenômeno atual das terceirizações dos serviços públicos, por exemplo.

De modo geral, este é o pano de fundo para estas narrativas de trajetórias laborais repletas de inseguranças, instabilidades, mudanças de emprego, saídas pela informalidade, conciliação de várias atividades remuneradas. Tudo isso está conectado e compreendido em uma realidade de baixos salários e baixíssimas expectativas de ascensão social, por onde a subalternidade e da posição de classe aparecem naturalizados na fala dos interlocutores, a tal ponto que o trabalho árduo acaba se tornando um valor em si mesmo, como fica claro nas falas de Geraldo, por exemplo: “trabalhando dia e noite, o meu está garantido!” ou “não pode parar né. Se parar, enferruja.”

Portanto, nesta pesquisa não se trata encerrar a investigação enquanto questão relacionada apenas ao âmbito das burocracias do nível de rua (LIPSKY, 1980), mas também tentar balizar como estas tendências contemporâneas mais gerais do trabalho assalariado subalterno se refletem nas pontas do “trabalho do Estado”. Isso passa a se tornar um tema relevante em um contexto de marcante descentralização da implementação de políticas estatais (LIMA & COCKELL, 2008) e das flexibilizações dos empregos públicos, quando, por fim, o próprio Estado passa a se tornar um importante “empregador” em certos nichos do mercado de trabalho (GEORGES, RIZEK & CEBALLOS, 2014).

Através das percepções que têm os entrevistados acerca do emprego atual, o que se nota é que o apresentam como um “emprego normal”, uma posição ou uma experiência de trabalho que potencialmente não gera rupturas em suas trajetórias de vida, ao contrário, aparece como continuidade, tendo em vista as outras atividades igualmente subalternas do passado e presente. Apesar de haver certo reconhecimento coletivo acerca da importância de uma aptidão (ou “perfil”) para a realização de determinadas tarefas como auxiliar de fiscalização, a entrada desses sujeitos para o emprego não se deu por esta premissa, ou por uma demanda de qualificação específica desde os contratantes. No geral, as aptidões se manifestaram como adequação às tarefas com o decorrer do tempo de serviço, dado o processo de aprendizado prático e de identificação com o trabalho.

Ao contrário, o que os entrevistados alegam ter chamado a atenção na vaga de emprego na fiscalização foi a possibilidade de um serviço “tranquilo”, “normal”, ou “como outro qualquer”. No caso daqueles que ingressaram antes de 2013, a jornada reduzida (36 horas semanais) quase sempre foi o que mais pareceu atrativo, já que representava a possibilidade manter uma renda fixa (ainda que baixa) e ainda poder acumular outras atividades, como segundos empregos, “bicos” e estudos. Vale lembrar que antes do prolongamento da jornada de trabalho para 44 horas semanais, vários auxiliares mantinham outras atividades “em meio horário”, como Douglas na lavanderia; Geraldo e Raimundo em restaurantes; sem contar Erik que, nessa época, ainda persistia na faculdade.

Outro fator que chama a atenção no conjunto dos relatos, foi a recorrente indicação do concurso para Soldado da Polícia Militar como uma possibilidade de “melhorar de vida”, denotando a ideia de saída ao traçado dessas trajetórias. Mesmo tendo ocorrido mais entre os auxiliares mais jovens86, pode-se dizer que trata-se de um apontamento que, de certa forma,

caracteriza o grupo enquanto público em potencial desse tipo de concurso e de carreira militar. Sobretudo, esse tipo de identificação coletiva situa esse grupo profissional em meio a um campo de trabalho tradicionalmente masculino e de baixa remuneração, ligado à vigilância, portaria, segurança, seja nos setores privado ou público, configurado assim como um circuito de mercado, por onde os trabalhadores caminham com mais facilidade entre trabalhos (“fichados” ou não), através de redes de indicação e de compartilhamento de currículos.

Dentro desta lógica, o concurso para se tornar Soldado da Polícia Militar parece a este grupo como uma oportunidade excepcional (relativamente às “oportunidades” usuais) de galgar

86 Além de Douglas e Erik, outros tantos jovens auxiliares com quem conversei ao longo das observações de campo

disseram ter interesse em seguir este caminho. Muitos deles me contaram sobre o sucesso na prova de algum colega de serviço, ou outro que quase passou, e frequentemente de que prestarão o concurso no próximo ano.

uma carreira promissora e estável, assim como o ofício lhes parece exemplar, tanto no que diz respeito às condições de trabalho, quanto à maior clareza de atribuições e objetivos: “fazer o certo”, como explicou-me Douglas. A comparação entre o trabalho que realizam pela fiscalização87 e o trabalho dos policiais militares é inevitável, especialmente para aqueles que

trabalham diariamente com a Polícia Militar.

Para os auxiliares de fiscalização, o futuro como policial passa a ser uma abstração conveniente e, sobretudo, inteligível (dentro de um “plano do possível”) enquanto plano de ascensão social, até porque são, de fato, relativamente próximos aos policiais no contexto de trabalho. Esta representação reflete uma espécie de racionalização de possibilidades, que leva em conta a maneira como eles se enxergam dentro das vicissitudes do mercado (a partir de suas capacidades individuais, mas também com relação ao valores compartilhados), e as expectativas individuais – porém de fundo social - acerca do sentido de suas trajetórias. O caso de Erik é emblemático. Em sua entrevista, ele apresenta o sonho de se tornar engenheiro formado (um objetivo que ainda lhe parece distante, apesar da tentativa passada), ao mesmo tempo em que diz ter vontade de ser aprovado no concurso para policial, atraído pela ideia de estabilidade, pelo salário fixo e a condição de “concursado”. A partir de sua trajetória e origem social, e também entre os dois caminhos abstratos de sua prospecção para o futuro, o jovem Erik identifica seus “lugares sociais” e os projeta em forma de narrativa.

Por outro lado, somente através da perspectiva que as trajetórias oferecem, é possível perceber que o emprego como auxiliar de fiscalização faz parte de um nicho do mercado de trabalho bastante amplo (e genérico pela diversidade de tipos de trabalho), designado especificamente a homens das classes populares (normalmente moradores dos bairros de periferia), com baixa escolaridade, com baixa pretensão salarial, pouco profissionalizados. Portanto, independentemente se estão situados em circuitos específicos dentro de um mercado de trabalho, a sucessão de empregos, “bicos”, “empreitadas” e atividades econômicas variadas reitera o que parece ser uma condição social própria da trajetória desses homens trabalhadores que “se viram” e sempre “se viraram”.

87 Ao longo do meu período de trabalho de campo, meus interlocutores se mostravam frequentemente inseguros

quanto a sua permanência no emprego. Muitas vezes confusos quanto ao meu acesso a informações privilegiadas vindas dos escritórios, me questionaram várias vezes se eu sabia se o contrato da terceirizada irá continuar; quando a próxima licitação abrirá; quais serão os novos termos; se serão demitidos. Apesar de disfrutarem dos direitos trabalhistas “CLT”, notei que um elemento marcante deste emprego é a incerteza da manutenção do emprego, uma vez que ele só existe enquanto os contratos com as empresas contratantes são mantidos. Quer dizer, trata-se de um fator completamente externo (e por isso amedrontador), pelo ponto de vista dos trabalhadores, mas que, de fato, incide completamente sobre o futuro deles.

Desta forma, não há nada de controverso na história de Erik, por exemplo, que entrou há poucos anos no mercado de trabalho e já experimentou atividades como a de trabalhador rural, embalador, estoquista, vendedor e, agora, auxiliar de fiscalização; ou o experiente Geraldo que foi pintor, pedreiro, eletricista, garçom, auxiliar de corte de mármore, embalador de remédios, office boy; ou mesmo Renato que mesmo tendo traçado uma longa “carreira” como carregador, passando por várias empresas, “se fichou” na Prefeitura pela expectativa de acumular seus últimos anos como contribuinte regular do INSS88, trabalhando em algo

supostamente mais leve e, por fim, se aposentar.

Ressalto a importância para olhar a sucessão de atividades como um aspecto central para a formação subjetiva das trajetórias, por mais que, a priori, isso não pareça relevante ou seja reconhecida pelos sujeitos como, de fato, uma “carreira”. Ao passo que esse aspecto se torna inclusive algo transversal entre os meus entrevistados, se torna marcador de classe e gênero, um caminho para se entender este meio social mais específico.

Algo próprio de uma racionalidade de circulação por trabalhos que parece estar transversal na movimentação das trajetórias desses trabalhadores é a capacidade de conciliação das atividades acumuladas, de mobilização de redes de indicação para trabalhos, de negociação de demissões e direitos trabalhistas com os patrões. Embora envolvidos pela “zona cinzenta” (AZAIS, 2010) do assalariamento popular, os sujeitos circulam com certa destreza pelo universo do trabalho precarizado, entre experiências pela informalidade ao trabalho registrado (“fichado”), até porque, de alguma forma, apreendem a condição de classe trabalhadora, e o sentido da “viração”, desde a socialização primária (BERGER & LUCKMAN, 2004), ligada às relações familiares principalmente (CABANES, 2011).

Por este ponto, ressalto a importância da referência recorrente que os pais (e outras figuras familiares próximas) tiveram para a narrativa dos entrevistados em torno de como se situam e caminham pelo mundo do trabalho. Esse fator fica explícito dentro das narrativas desde a iniciação no mundo do trabalho, como foi explicitamente o exemplo de Douglas e seu pai; como rede primária de orientação e indicações, como no caso de Geraldo e seu irmão mais velho; ou, de forma mais abrangente, no que diz respeito à transmissão de valores, como aponta Raimundo e a centralidade que confere ao peso de sua “criação” na formação de um caráter como trabalhador e pai de família exemplar.

Como vimos nesta seção, a partir da perspectiva que a apresentação das trajetórias oferece, é possível delinear algumas das dinâmicas e estruturações pelas quais as vidas de

trabalho estão assentadas, incluindo a passagem e atuação no posto de auxiliar de fiscalização. Após apresentar cada um dos cinco interlocutores elegidos, o esforço foi o de situá-los por seu grupo profissional dentro de um panorama mais geral de mercado de trabalho e de sua classe/origem social, o que está inscrito, pelo ponto de vista dos sujeitos, em suas escolhas, suas identificações, suas qualificações.

Finalmente, os percursos e circulações giram em torno de certo campo de trabalho designado às classes populares que ajudam a compor as trajetórias entre participações em abrangentes nichos de mercado voltado para homens pobres, além da inserção em redes específicas de circulação. Nesse sentido, chamam atenção alguns aspectos relevantes dessa caracterização, referentes por sua dimensão de gênero, a partir da aproximação pretendida entre o mundo do trabalho e do “privado”, através dos papéis que assumem, o que aparece de forma imbricada desde a formação de mercados de trabalho à naturalização de aptidões e “perfis” diferenciados.