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A DOMINAÇÃO MASCULINA : O MUNDO DO SIMBÓLICO

I NTRODUÇÃO “[ ] na democracia representativa, a

A COLETA DOS DADOS

1. A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA FEMININA NO B RASIL A partir da década de 1990, avolumaram-se os estudos que tinham por objetivo

1.1. O QUE A TEORIA TEM A DIZER SOBRE AS DESIGUALDADES DE GÊNERO NA ESFERA POLÍTICA

1.1.3. A DOMINAÇÃO MASCULINA : O MUNDO DO SIMBÓLICO

Uma das grandes contribuições de Bourdieu à compreensão dos determinantes e condicionantes das ações humanas diz respeito à aplicação que faz dos conceitos de habitus e campo para a construção de outra categoria: a da dominação (ou violência simbólica). Para ele, o fenômeno da dominação está impregnado nas estruturas de pensamento de dominados e dominantes e se expressa no próprio corpo por meio da manifestação de seus habitus, sendo este a “força dormente de onde a violência simbólica extrai a sua eficácia”.31

Para que a dominação se dê, é preciso que o dominado aplique aos atos do dominante as mesmas estruturas de percepção por ele utilizadas. Dessa forma, os dominados sentem

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29 Ibid., p. 54. Grifos nossos.

30 SWAIN, Tânia N.; MUNIZ, Diva C. G. Mulheres em ação: práticas discursivas, práticas políticas. Florianópolis:

Ed. Mulheres, Belo Horizonte: PUC Minas, 2005.

como normal o processo de obediência e submissão; eles se sentem dominados por natureza, enquanto os dominantes se sentem assim também de maneira natural. É necessário, portanto, que tenha ocorrido um trabalho anterior, normalmente invisível, que tenha produzido, naqueles submetidos aos atos de imposição, as disposições necessárias para que tenham a sensação de ter de obedecer sem sequer levantar a questão da obediência.

Segundo Bourdieu, as relações sociais entre os sexos são orientadas segundo essa lógica da dominação (masculina), situada no campo da dominação simbólica. Sendo assim, tais relações são socialmente instituídas e engendram o mundo social e simbólico com os referenciais de masculinidade e feminilidade compondo dimensões do habitus e da dominação simbólica.

As aparências biológicas e os efeitos, bem reais, que um longo trabalho coletivo de socialização do biológico e de biologização do social produziu nos corpos e nas mentes conjugam-se para inverter a relação entre as causas e os efeitos e fazer ver uma construção social naturalizada (os ‘gêneros’ como habitus sexuados), como o fundamento in natura da arbitrária divisão que está no princípio não só da realidade como também da representação da realidade.32

A divisão entre os sexos, portanto, parece ser algo tão natural que chega a ser inevitável. Ao mesmo tempo em que está presente como estado objetivado nas coisas, também se encontra em estado incorporado nos corpos e nos habitus dos agentes, funcionando como esquemas de percepção, pensamento e ação. Essa concordância entre estruturas objetivas e estruturas cognitivas leva à naturalização e faz com que “[...] o mundo social e suas arbitrárias divisões, a começar pela divisão socialmente construída entre os sexos passem a ser vistos como naturais, evidentes, e adquirem, assim, todo um reconhecimento de legitimação”.33

No entanto, a obediência que dominados concedem aos seus dominantes não pode ser vista como uma submissão – ou coerção – mecânica a uma força, nem como um consentimento consciente a uma ordem. Essa obediência é involuntária, no sentido de que não é planejada, é fruto do acordo entre habitus predispostos a obedecerem às

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32 BOURDIEU, 2003, p. 9. 33 Id., p. 17.

chamadas, à ordem e às estruturas objetivas no mundo no qual se inserem. A violência simbólica é capaz de transformar atos de dominação e submissão em relações afetivas, de transformar poder em carisma ou em um encanto capaz de suscitar um encantamento afetivo. As relações de dominação são, portanto, ao mesmo tempo espontâneas e extorquidas. Desse modo, a questão da legitimidade da dominação jamais se coloca de fato na existência ordinária.

É ilusório crer que a violência simbólica possa ser vencida apenas com as armas da consciência e da vontade, pois os efeitos e as condições de sua eficácia estão duradouramente inscritos no mais íntimo dos corpos e das mentes, sob a forma de predisposições ou de habitus. Tal ceticismo é explicitado por Bourdieu ao destacar que a alteração desses habitus não é tarefa trivial. Marcados no inconsciente dos indivíduos, sua modificação requer mais do que simples tomada de consciência da posição ou da dominação a que os atores sociais estão submetidos; requer uma mudança nas disposições por eles incorporadas, algo certamente muito mais difícil e trabalhoso.34

Além disso, a alteração do quadro de dominação requer uma mudança de consciência não apenas dos dominados, mas, também, dos dominantes. A divisão sexual que assegura a dominação masculina está fortemente presente nos habitus de cada indivíduo, dominado ou dominante, e de tal forma que pareça algo natural.

Se assumirmos isso como verdade, então podemos entender porque, mesmo se pressões externas são abolidas e as liberdades formais são adquiridas (como o direto ao voto, à educação), a auto-exclusão e a vocação tomam o lugar da exclusão expressa. Encontra-se, aí, o fundamento da baixa participação das mulheres na vida pública. Mesmo extintas as barreiras formais, as mulheres ainda participam de forma muito tímida da esfera política, dos sindicatos, de partidos ou de cargos eletivos. Muitas vezes, as cotas de 30% de candidaturas femininas não são preenchidas por falta de interessadas em participar. Esse fato tem levado muitos estudiosos, pesquisadores e militantes de movimentos sociais a organizarem oficinas, cursos e outros eventos que

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34 SAFFIOTI (2004) também expressa sua preocupação, afirmando que “[o conceito de habitus] incomoda

sensibilizem e despertem no público feminino o interesse por um espaço que foi tradicionalmente masculino, mas que não necessariamente o precisa ser para sempre. Muitas vezes se argumenta que as mulheres, por não romperem de forma imediata e definitiva com essa dominação, são as responsáveis pela situação de submissão em que se encontram, porque escolhem adotar práticas submissas (como recolher-se à participação em esferas políticas menos “poderosas”) ou mesmo porque gostam dessa dominação. No entanto, é fundamental destacar não só que essas tendências à submissão resultam das estruturas objetivas, mas também que essas estruturas só devem sua eficácia aos mecanismos que desencadeiam e que contribuem para sua reprodução. O poder simbólico, portanto, não pode ser exercido sem a cumplicidade do dominado, que só se subordina a esse poder porque o constrói como tal.

Atualmente, porém, alguns fatores têm apontado para certa mudança nas relações de dominação entre homens e mulheres. A maior, sem dúvida, reside no fato de a dominação masculina deixar de ser algo indiscutível, o que é uma característica essencial para que funcione sob a égide do simbólico. Isso é fruto do processo de tomada de consciência (não suficiente, mas necessário, para desencadear a mudança) provocado pela intensa atuação dos movimentos feministas e que colocaram a dominação como dado a ser justificado ou defendido. Importante também foi o aumento da presença feminina nos bancos escolares, bem como a entrada massiva de mulheres no mercado de trabalho e a conseqüente possibilidade de autonomia econômica.