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G ÊNERO COMO UNIDADE DE ANÁLISE E DE EXPLICAÇÃO

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A COLETA DOS DADOS

1. A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA FEMININA NO B RASIL A partir da década de 1990, avolumaram-se os estudos que tinham por objetivo

1.1. O QUE A TEORIA TEM A DIZER SOBRE AS DESIGUALDADES DE GÊNERO NA ESFERA POLÍTICA

1.1.1. G ÊNERO COMO UNIDADE DE ANÁLISE E DE EXPLICAÇÃO

O conceito de gênero, tal qual formulado pelas feministas ainda na década de 1970, é de grande relevância para o entendimento das questões aqui levantadas. Afinal, se homens e mulheres se comportam de maneiras diferentes e se são (auto) reconhecidos por essas diferenças, o que exatamente as causou e as reproduz? São diferenças de origem biológica ou são construções sociais? É nesse contexto que a idéia de gênero surge, como “desnaturalizador” daquilo que, na verdade, é socialmente construído.

A inserção diferenciada de homens e mulheres na sociedade e, em particular, na política tem como base diferentes papéis atribuídos a cada um desses grupos. Na realidade, a conseqüência dessa separação de papéis e funções é que, por estar no espaço público, a política, tradicionalmente, passa a ser de responsabilidade dos homens. O espaço privado da casa constitui-se, então, em espaço feminino, de responsabilidade da mulher e considerado menos importante que o espaço masculino do trabalho e dos negócios. Além de funções bem estabelecidas para cada um dos sexos, há também a construção social que aponta para o que é ser mulher e o que é ser homem. Desse modo, características tais como sensibilidade, solidariedade, conciliação são vistas como típicas de mulheres, enquanto agressividade e objetividade se referem ao mundo masculino.

As desigualdades visíveis entre homens e mulheres no que concerne às funções que desempenham (ou deveriam desempenhar), aos lugares que ocupam (ou deveriam ocupar) e às características que apresentam (ou deveriam apresentar) resultam, no entanto, de diferenças muito mais amplas do que apenas diferenças sexuais (biológicas). De fato, pode-se afirmar serem elas o resultado de diferenciações de gênero, a refletir construções culturais que atribuem, a determinados grupos, características (des)favoráveis que não encontram respaldo no campo biológico, mas que acabam por legitimar as relações de poder. Como aponta Scott, “[...] o termo gênero torna-se uma forma de indicar construções

culturais – a criação inteiramente social de idéias sobre os papéis adequados aos homens e às mulheres”.17

O termo gênero teve seu uso inicialmente difundido por feministas americanas para enfatizar o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo, ou seja, havia a rejeição ao determinismo biológico embutido em termos como sexo e diferença sexual.18 É, portanto, um conceito eminentemente político, nascido no movimento de

mulheres em sua luta contra as desigualdades, para demonstrar à sociedade e à comunidade científica que as diferenças físicas entre elas e os homens não geram a desigualdade verificada, mas, ao contrário, são usadas para naturalizá-las.

A palavra gênero aparece, então, para introduzir uma noção relacional, isto é, a idéia de que homens e mulheres são definidos em termos recíprocos, não se podendo entender um dos sexos sem levar em consideração o outro. Nesse sentido, qualquer informação sobre as mulheres é necessariamente uma informação sobre os homens.

De maneira resumida, portanto, podem-se identificar dois aspectos centrais à definição de gênero. Um aspecto remete à idéia de que o biológico não é capaz de explicar os diferentes comportamentos de homens e mulheres, que são, produtos sociais, aprendidos, internalizados e reproduzidos. O outro aspecto refere-se à noção de um poder que é desigualmente distribuído entre os sexos. Se esse poder coloca as mulheres em posição de subalternidade, o conceito de gênero aproxima-se ao de patriarcado, pois acaba-se por constituir um sistema de dominação das mulheres pelos homens. Não se deve, porém, proceder à redutora substituição de um conceito pelo outro, pois, se gênero remete à relação entre os sexos que não determina previamente o pólo dominante, no patriarcado o pólo dominante é, por definição, o homem. “O patriarcado é um caso específico das relações de gênero”.19

A idéia de gênero tal como concebida pelo movimento feminista tem sido alvo de inúmeras críticas. Algumas se referem ao seu uso indiscriminado, pois muitas vezes é

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17 SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Sociedade, Porto Alegre, v. 20, n.

2, p. 71-99, jul./dez. 1995.

18 SCOTT, 1995, p. 76. 19 SAFFIOTI, 2004, p. 119.

utilizada como sinônimo de sexo, ou mesmo de mulher. Nesses casos o problema não é apenas terminológico, mas basicamente conceitual, pois há uma despolitização do conceito, que obscurece os conflitos e as relações que se estabelecem entre homens e mulheres sob a lógica da construção social e do poder desigualmente distribuído. A suposta neutralidade da categoria gênero é motivo de outra leva de críticas. Com o intuito de vencê-la, teóricas francesas, como Anne Marie-Devreux,20 desenvolvem uma teoria que

recebe o nome de “relações sociais do sexo”. Para essa corrente, a idéia de gênero permitiu às pesquisadoras serem vistas como menos agressivas por suas instituições e por seus colegas homens. Isso porque é uma categoria que evoca a idéia do problema social sofrido pelas mulheres, da desigualdade social construída, mas da qual os homens não seriam atores, o que geraria menos conflito. Já a utilização de “relações sociais de sexo” nomeia explicitamente o confronto, pois não pode haver relação com apenas uma categoria.

Por fim, as adeptas da corrente pós-moderna, exemplificada por Judith Butler,21

propõem a desconstrução do conceito de gênero, não com o intuito de destruí-lo, mas de libertá-lo dos significados que carrega, há muito sedimentados pelo hábito de sua transmissão. Nesse sentido, a primeira crítica é feita em relação ao sujeito universal que o feminismo e a categoria gênero querem representar. Argumenta-se não haver uma experiência comum “das mulheres”, generalizável a partir da vivência de gênero e coletivamente compartilhada através das culturas e da história.Há, ainda, a crítica aos dualismos adotados na teoria de gênero, como: sexo X gênero, natureza X cultura. Para Butler, nesse caso, também se cai no determinismo, pois, se se parte da idéia de que o sexo é natural e o gênero é construído, então a cultura se torna o destino. “Talvez o sexo tenha sempre sido o gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero torna-se absolutamente nenhuma”.22 O sexo deixa de ser considerado natural, para

ser, também, cultural, o que remete a outras críticas que dizem respeito à falta da problematização no conceito de gênero da sua relação com o desejo.

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20 DEVREUX, Anne-Marie. A teoria das relações sociais de sexo: um quadro de análise sobre a dominação

masculina. Paris, 2005 (mimeo).

21 BUTLER, Judith. Variações sobre sexo e gênero: Beauvoir, Witting e Foucault. In: BENHABIB, Seyla e

CORNELL, Drucilla. Feminismo como crítica da modernidade. Rio de janeiro: Rosa dos Tempos, 1987. BUTTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

Sem ignorar as críticas feitas ao conceito, este trabalho adota a definição original de gênero. Se não há uma identidade única que agregue todas as mulheres sob um mesmo denominador, como se propõe a categoria gênero, é importante relembrar ser este um conceito político que, como tal, constrói um sujeito político coletivo – “as mulheres” – que irá buscar estratégias para superar a subordinação e entender suas origens. Como defendia o movimento feminista, “O reconhecimento político das mulheres como coletividade ancora-se na idéia de que o que une as mulheres ultrapassa, em muito, as diferenças entre elas. Dessa maneira, a identidade entre as mulheres torna-se primária”.23

Ademais, a relação que se estabelece entre gênero e poder pela definição de Scott é também aplicável a este estudo. Diz ela: “O núcleo da definição [de gênero] repousa numa conexão integral entre duas proposições: (1) o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder”.24 Logo, não se pode

tratar gênero e poder de formas dissociadas; para se analisar um, deve-se levar em conta o outro. Tendo em vista os propósitos deste estudo, é essencial reter essa segunda parte da definição sem, no entanto, esquecer que a política é apenas mais um dos campos em que se pode trabalhar a partir do gênero, mas, certamente, não é o único.