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Capítulo 2. Economia Solidária e Cooperativismo

2.3 A Economia Solidária e o mercado capitalista

Pensar na solidariedade como centro das relações sociais não é trivial numa cultura onde predomina a competição e o liberalismo (SINGER 2002). Colocar a solidariedade na economia requer mudança cultural e, como se trata de percepção

cultural, é possível ser alterada com educação adequada (ibdem). Daí decorre a importância das cooperativas trazerem em seus princípios a educação, o treinamento e a informação de seus membros e da comunidade sobre esses novos valores. Essa é também a importância de trabalhos que destacam a viabilidade dos EES como forma alternativa para organização dos empreendimentos.

Assim, uma nova economia, que almeje reduzir desigualdades e demais problemas sociais, deve fomentar essa cooperação, instituir a solidariedade entre os agentes e estabelecer novos princípios e metas para nortear a atuação econômica dos empreendimentos.

Nesse caminho, há de se considerar o fato de que os empreendimentos estão inseridos num sistema mercantil capitalista predominantemente liberal e, portanto, não se pode ignorar que as relações com outros agentes serão pautadas principalmente por regras econômicas.

Sobre essa situação, Gaiger (2003) traz as exigências impostas aos EES na atuação no mercado capitalista; elas são três:

“[...] assumir uma base técnica herdada do capitalismo, dela retirando benefícios para a sua forma social de produção própria [...]; cotejar-se com os empreendimentos capitalistas, dando provas de superioridade do trabalho associado perante as relações assalariadas [...]; resistir às pressões do ambiente econômico, por meio de mecanismos de proteção e da externalização da sua lógica cooperativa às relações de intercâmbio e troca. Se isso acontecer, estaremos vivenciando uma experiência econômica genuinamente sob a ótica do trabalho fundada em relações nas quais as práticas de solidariedade e reciprocidade não são meros dispositivos compensatórios, mas fatores operantes no âmago da produção da vida material e social”(GAIGER 2003 p. 201).

Impõe-se portanto um grande desafio aos EES: “[...] oferecer a parcelas crescentes de toda a população oportunidades concretas de auto sustento, usufruindo o mesmo bem-estar médio que o emprego assalariado proporciona” (SINGER 2002, pp. 120-121, grifo do original), como caminho fundamental para que a ES se torne alternativa real ao modelo vigente. Ou seja, a organização dos EES precisa trilhar um percurso que os leve de modelo paliativo, sustentado por caridade e por políticas assistencialistas, a empreendimento real e viável no sistema vigente, mesmo não compartilhando os valores predominantes.

Entretanto, como coloca Lima (2004), permanece a polêmica sobre a possibilidade efetiva de as cooperativas e EES de modo geral, avançarem na direção da maior democratização do trabalho, através da autogestão e da posse

coletiva dos meios de produção, superando assim a subordinação do trabalho ao capital. O contexto altamente seletivo da economia obriga a indagar se os EES dispõem de fatores que lhes confiram possibilidade de sobrevivência, prosperidade e consolidação.

Severino, Eid e Chiariello (2013) explicam ao menos uma situação que justifica essa indagação. Segundo esses autores, a organização produtiva tradicional infundiu um modelo em que os operários são formados e acostumados a realizar apenas o que é definido por outros; assim, no momento em que os trabalhadores precisam participar da gestão, carecem de um conjunto de saberes que até então não lhe eram necessários e não foram desenvolvidos. Lima (2004) também comenta um aspecto que põe em dúvida a perpetuidade dos empreendimentos. Ele destaca que muitos trabalhadores que entram nas cooperativas não entendem as características e peculiaridades desse empreendimento e aderem a ele por falta de opção e percebem sua permanência como temporária, até arrumarem uma posição tradicional “com direitos trabalhistas”. O mesmo autor também destaca ser comum nesses empreendimentos a baixa escolaridade dos sócios e a inexistência do hábito de se manifestarem em assembleias.

Portanto, indaga-se se as características distintivas dos EES lhe conferem estrutura para sua perpetuidade, pois, conforme explica Rufino (2005, pg. 75), para o mercado onde esses empreendimentos estão inseridos, não importa a estrutura interna de princípios organizacionais ou de gestão, mas sim a qualidade e eficiência de seus produtos e serviços em termos competitivos. Em linha com esse pensamento, Levy (2001 apud EID e CHIARIELLO, 2009), afirma que os princípios de cooperação parecem não ser suficientes para a permanência da cooperativa num paradigma de mercado globalizado neoliberal. Para esse autor as cooperativas deveriam se utilizar da divisão de trabalho nas atividades de produção e gerir o empreendimento conforme os postulados tayloristas de gestão.

Tomando como referência as diretrizes preconizadas pela teoria organizacional clássica, o caminho para as cooperativas alcançarem a sustentação de sua operação no mercado seria internalizar elementos, tais como, qualificação técnica, organização eficiente, estrutura financeira, estratégias de atuação no mercado etc, ou seja, a reprodução do modelo empregado pelas empresas privadas convencionais. Por outro lado, como salienta Tauile (2002), reproduzir as mesmas diretrizes e caminhos que seguem os empreendimentos capitalistas convencionais é

uma estratégia que deve levar à acentuação da dependência e da subordinação dos EES às regras do mercado capitalista. Portanto, “A ideia é justamente procurar atalhos alternativos que criem agora as bases dos fatores que tornar-se-ão elementos de competitividade dinâmica no longo prazo” (TAUILE 2002, p. 120). Assim, para esse autor, as características que podem tornar os EES uma alternativa ao modelo capitalista estão mais centradas na atuação conjunta de forma solidária (entre empreendimentos) para organizar os negócios, compartilhar informação e definir estratégias de atuação, do que na coletividade das posses ou da autogestão, cujo papel principal, para o autor, é atenuar o conflito entre capital e trabalho no âmbito dos processos de produção.

Do exposto nas seções precedentes é possível consolidar uma lista de aspectos que caracterizam os empreendimentos econômico-solidários e cooperativas constituídas dentro dessa doutrina (Quadro 4).

Aspecto distintivo Autores

A autogestão, a igualdade de direitos de todos os

membros e a propriedade comum do capital. (SINGER 2002) (RUFINO 2005); (LIMA 2004) As cooperativas são empreendimentos econômicos que

não visam lucro, constituído pela união voluntária de pessoas, e não de capital, que buscam contribuir para o exercício de uma atividade de proveito comum.

(BRASIL 1971, art. 4°).

Orientação dos seus integrantes à solidariedade em seus

diversos relacionamentos. (SINGER (GAIGER 1999, 2006) 2002); Participação ativa do empreendimento na comunidade em

que está inserida (ICA 2012)

A formação dos sócios (e não sócios) quanto aos valores

que regem o empreendimento. (SINGER 2002); (PINHO 1966) (ICA, 2012) Caráter do vínculo associativo, indissoluvelmente ligado à

socialização e à partilha do trabalho onde a cooperação é cerne dos empreendimentos.

(GAIGER 1999)

Perda da hegemonia do capital como fator para organização do trabalho, da gestão e da divisão dos resultados.

(SINGER E SOUZA 2000)

Trata-se de uma empresa baseada no trabalho, na atividade realizada em comum, na pessoa, que é quem realiza a atividade.

(RUFINO 2005).

Quadro 4. Aspectos distintivos de organização e gestão de uma cooperativa autogestionária. Fonte:Elaborado pelo autor.

O Quadro 5 apresenta comparativamente as principais diferenças entre cooperativa autogestionária e empresa mercantil, quanto à sua razão de existir,

quanto à posse dos meios de produção, à gestão e à forma de comercialização dos produtos e serviços.

Papel Social Cooperativa Empresa Mercantilista

Compromisso Educativo, social e econômico. Predominantemente Econômico. Princípios e valores Compartilhado por muitos. De um ou poucos. Trabalhador Empoderado, agente ativo. Executor.

Incentivo para

aderir à organização Comunhão de valores e objetivos da cooperativa. Necessidade de renda. Meios de Produção

Posse Coletiva Privada

Comércio (quotas) Quotas não podem ser transferidas ou vendidas. Livre negociação e transferência. Capital Meio para produzir. Objetivo e meio. Papel do Trabalho Valorizado em condições de trabalho e vida. Instrumento. Objetivo

Organização Bem estar do homem Reprodução do capital

Produção Atender o cooperado ou uma demanda existente. Atender mercado consumidor (existente ou induzido). Primordial Bem estar dos cooperados. Lucro.

Gestão

Hierarquia Mínima. Presente. Fundamental.

Direção da decisão De “baixo para cima” – representativa De “cima para baixo”.

Controle Democrático. Autocrático ou concentrado. Poder de influência “um homem um voto” Proporcional ao capital. Acesso à

informação Ampla. Fundamental. Restrita a função. Comércio

Produto Resolve uma demanda social. Útil, necessário. Qualquer coisa que seja negociável e gere lucro. Mercado Solidário. Coletivo. Concorrencial. Individual.

Preço Justo. O que maximiza o lucro.

Lucro Meio. Resultado necessário para manutenção da organização.

Meta prima. Razão a operação produtiva. Quadro 5. Comparativo entre Cooperativa e empresa mercantilista.

Das características expostas pode-se entender que por envolver outros aspectos que não apenas os econômicos, os EES podem ser entendidos como mais alinhados aos anseios de um desenvolvimento que busca atingir objetivos econômicos e sociais concomitantemente. Como explica Singer (2002, p. 112), o fomento à ES se fundamenta “na tese de que as contradições do capitalismo criam oportunidades de desenvolvimento de organizações econômicas cuja lógica é oposta à do modo de produção dominante”. Contudo, mesmo aceitando as empresas solidárias como modelo mais “sustentável”, sobretudo na dimensão social, e como alternativa real ao modelo vigente, há um caminho a ser trilhado para instituir a ES como um modelo concreto de organização social e produtiva.

Assim há de se buscar um caminho equilibrado na maneira de atuar e de gerir os empreendimentos cooperativos, ou seja, seus princípios e valores devem ser um norte, mas é preciso cuidar e não ignorar as regras vigentes do mercado no que tange às práticas de gestão, como será apresentado no Capítulo 3.

Conclui-se que para alcançar um patamar e uma expressão que realmente permita a plena sobrevivência, as cooperativas devem oferecer um patamar de qualidade, eficiência e resultados equivalentes aos existentes hoje em empresas convencionais. Para Singer (2002, p. 121), a ES “[...] terá de alcançar níveis de eficiência na produção e distribuição de mercadorias comparáveis aos da economia capitalista e de outros modos de produção [...]”.