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3 PROPOSTAS E INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA UTILIZADAS PELO

3.3 CONCEPÇÕES E PRÁTICAS PEDAGÓGICAS COM ÊNFASE

3.3.3 A P EDAGOGIA M ULTIRRACIAL

A maioria das propostas pedagógicas brasileiras enfrenta dificuldades para combater o racismo. Essas dificuldades são de várias ordens, desde as formas de analisar a evasão e a repetência de alunos(as) afrodescendentes até as estratégias metodológicas para discutir sobre a educação das relações interétnicas e conteúdos relacionados à história e à cultura africana e afrodescendente.

Geralmente, nas instituições de ensino, relaciona-se o racismo à classe social e não se ataca frontalmente o problema, indicando quais mecanismos implícitos afastam sistematicamente os(as) afrodescendentes das escolas da Educação Básica. A lentidão no aprendizado e o abandono da escola seriam formas pelas quais as crianças de grupos marginalizados, principalmente os afrodescendentes, resistiriam à desintegração sistemática da sua cultura de origem, objeto de sua primeira socialização, informal, difusa e doméstica. Ou seja, essas crianças são, na maioria das vezes, marcadas por condições miseráveis de moradia, de alimentação e de saúde, por pertencerem a famílias que sobrevivem de trabalhos informais subalternos.

O compromisso da escola pública com as classes trabalhadoras, na sua maioria composta por afrodescendentes e outros grupos marginalizados socialmente, obriga-a a explicitar os mecanismos de que se valem os donos do poder para mascarar a discriminação racial, quando pretendem vincular emprego e escola de modo imediato. Não há como analisar o sistema educacional brasileiro sem desmistificar o modelo econômico concentrado e excludente que vigora em países como o Brasil. A marginalização cultural e o racismo estão entre as principais razões que explicam as grandes taxas de evasão e repetência na Educação Básica. Esses problemas educacionais nos levam a constatação que a diferença tornou-se inferioridade. Entretanto, é possível deduzir que, havendo decisão política por parte dos atores do processo pedagógico e instâncias afins, o sistema escolar seja menos excludente, e essas taxas tendam a diminuir (SILVA, M., 2002).

Uma das dificuldades mais sérias está no fato de se verificar, nos dados estatísticos sobre a realidade educacional brasileira, a ausência de mecanismos para desenvolver discussões entre os(as) professores(as). Interessada em interferir

nessa realidade educacional, Maria José Lopes da Silva33 elaborou, em 1986, a Pedagogia Multirracial, no estado do Rio de Janeiro.

Na perspectiva da Pedagogia Multirracial, a escola deve ser considerada também o espaço de reapropriação da cultura produzida pelos grupos sociais e étnicos excluídos, pois, se este saber, considerado "infantil" e "popular", servir apenas como "ponto de partida" para se chegar ao "saber elaborado" das classes dominantes, não haverá a soma dos diferentes saberes, e, sim, a reprodução da dominação.

Nessa proposta pedagógica, a escola deve deixar de ser o espaço de negação dos saberes, para enfatizar a afirmação da diferença, num processo em que os indivíduos e grupos sejam aceitos e valorizados pelas suas singularidades, ao invés de buscar a igualdade pela tentativa de anulação e inferiorização das diferenças.

As propostas curriculares voltadas para as classes populares são ineficazes porque fortalecem o mito da democracia racial na medida em que não incluem, por exemplo, a História da África e das Civilizações Africanas, negando, assim, a identidade de pelo menos 45% da população brasileira. (Silva, M., 2002, p. 29).

Assim, para M. Silva (2002), a implementação da Pedagogia Multirracial implica: a) trabalhar o patrimônio histórico e cultural dos grupos étnicos excluídos, numa perspectiva transdisciplinar, ou seja, em cada um dos componentes curriculares, pois é através do universo simbólico que a escola mantém os valores racistas da sociedade abrangente; e b) incluir nos currículos da Educação Básica, nos currículos dos cursos de formação de professores(as), nos currículos da Educação de Jovens e Adultos e nos currículos dos cursos de licenciatura o saber fundamentado nos referenciais do povo brasileiro, sem excluir nenhuma contribuição.

Com essas considerações sobre a implementação da Pedagogia Multirracial, M. Silva (2002) observa que essa tarefa não é tão difícil e árdua, pois, mesmo desconhecidos e não legitimados pela maioria da população, os valores africanos estão presentes no cotidiano brasileiro, tanto nas artes, como na religião, na organização social, na história e na visão de mundo. As culturas

afrodescendentes estão profundamente internalizadas no "inconsciente coletivo" dos brasileiros, independente da etnia, ou classe social. A própria língua que falamos é um Português africanizado e/ou um aportuguesamento das línguas e falares africanos.

A quantidade de palavras e expressões iorubás é notável no Nordeste, especialmente no vocabulário usado na culinária baiana. Pesquisas específicas e comparações com os idiomas bantos da África, revelam não apenas semelhanças nas palavras, mas também no seu uso. Palavras como fubá (farinha de milho), mocambo (comunidade de escravos fugidos), samba e maxixe (danças brasileiras) provém diretamente de idiomas bantos. (DAVIS, 2000, p. 27).

Há um entrelaçamento inseparável de aspectos que, somados, constituem a totalidade histórico-existencial e metafísica, que entendemos como sendo a cultura nacional, o que não pode de nenhum modo ser confundido com democracia cultural. Portanto, a marca da cultura africana na cultura brasileira não é

monolítica. Muitos costumes diferentes de vários grupos étnicos africanos sofreram mudanças com o contato entre eles e com o contexto da realidade social.

A "ideologia do branqueamento", ou da europeização, vem banalizando os critérios de auto-identificação do povo brasileiro. Ao definir a cultura brasileira como uma cultura mestiça ou sincrética, caracteriza-se recalcamento da presença do contingente afrodescendente e seu processo civilizatório no contexto nacional, aparecendo a cultura brasileira como absorvida ou tendente à absorção pelo predomínio da etnia branca e/ou pelos padrões culturais eurocêntricos.

Esse esforço de europeização, que também submeteu e desqualificou as culturas indígenas, acabou por inferiorizar as formas de expressão popular mais genuinamente brasileiras, que hoje se mantêm apenas como folclore, concebidas como algo estático e tradicional, sem nenhuma função social.

As dificuldades dos(as) professores(as) em lidar com o problema do racismo nas salas de aula deve-se, entre outros fatores, ao total desconhecimento da existência de material bibliográfico especializado que os oriente sobre a participação do afrodescendente na história e na sociedade brasileira. O desconhecimento da existência do racismo ou a insensibilidade em relação a ele, a falta de orientação da escola para que possa abordá-lo de forma democrática e sem preconceitos e a expectativa que os(as) professores(as) têm em relação às crianças

pobres e afrodescendentes é que vão determinar a atuação destes e que concorrerão para a confirmação dessa expectativa, no momento da avaliação.

Consciente de tais dificuldades, M. Silva (2002) encaminha algumas sugestões relativas à formação do professor, que contemplam, de alguma forma, o pensamento de alguns setores acadêmicos e de educadores que se dedicam a aprofundar essa questão:

a) integração de conteúdos interdisciplinares relativos à experiência africana e afrodescendente, elaborados desde uma perspectiva do Movimento Negro nos cursos de formação de professores;

b) realização de cursos, encontros, seminários, palestras e outras atividades que transmitam uma visão geral e atualizada dos povos e países africanos e uma compreensão global da dinâmica das culturas africanas;

c) esclarecer e discutir o conteúdo racista da literatura escolar existente;

d) confecção de material didático adequado, como cartilhas, textos, cartazes anti-racistas, filmes, slides e vídeos;

e) formular novas maneiras de abordar as experiências africanas e afrodescendentes de acordo com as experiências do local;

f) considerar a integração escola-comunidade;

g) considerar a articulação com entidades do Movimento Negro para troca de experiências;

h) considerar a articulação da participação da comunidade afrodescendente e afins federais, estaduais e municipais;

i) considerar a integração com as universidades e com pesquisadores que lidam com a temática das relações interétinicas.

M. Silva (2002) diz que, ao tentar recuperar para os(as) educadores(as) a possibilidade de repensar com autonomia os fundamentos da Pedagogia Multirracial, acredita estar abrindo o caminho para a construção de uma prática pedagógica pautada no compromisso com a formação de uma cidadania mais verdadeira, porque não excludente em relação aos diferentes grupos étnicos que compõem a sociedade brasileira.

Portanto, os educadores militantes não só reinvidicam seus direitos no âmbito do Movimento Negro, mas também penetram nos sistemas de ensino influenciados pelas condições precárias da educação dos afrodescendentes .