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A Educação dos Filhos e a Dissolução da Família

4.1.1.1.1 A Posse da Coisa

4.3.1 A Família

4.3.1.3 A Educação dos Filhos e a Dissolução da Família

Os filhos são para a pessoa dos pais um resultado, uma síntese concreta, objetiva, do casamento. Isso quer dizer que a unidade que se dá com o casamento se completa nos filhos. Neles se objetiva o amor que une os pais. O que os pais amam nos filhos é seu amor recíproco. Enquanto o patrimônio representa a unidade da família em uma coisa exterior, os filhos representam a unidade da família na espiritualidade do amor.

284 Ibidem, § 170, p. 168.

Para Hegel, do ponto de vista natural, a existência imediata da pessoa dos pais aparece nos filhos como um resultado que se desdobra e se prolonga no progresso infinito das gerações que se reproduzem.286 É por meio dos filhos que se efetua não somente o movimento de reprodução da humanidade, “mas principalmente a formação imediata dos sentimentos e das convicções éticas que são o alicerce da vida ética”.287 Por isso, a educação dos filhos é uma questão central, em Hegel, para quem a educação envolve a superação da natureza imediata e prepara o indivíduo para entrar em sua segunda natureza, que é a vida ética.288 É a educação quem conduz os filhos “para a independência e a personalidade livre e, por conseguinte, para a capacidade de saírem da unidade natural da família”.289 Pela educação as inclinações naturais dos filhos são submetidas às normas

éticas e sociais, as quais se tornam sua segunda natureza. É pelo processo de autodeterminação da criança via educação que Hegel aponta para a futura participação do indivíduo na vida do Estado

A educação, assim como a alimentação, garantida pela fortuna da família, é um direito dos filhos e um dever para os pais. Em contrapartida, os pais têm direitos sobre a vontade dos filhos, com o fim de os manter na disciplina e de os educar.290 Segundo Hegel, existe na criança o desejo de ser educada, pois há nela um sentimento que lhe é próprio: ela não está satisfeita com aquilo que é. Ela quer pertencer ao mundo dos adultos que imagina superior. Hegel é contrário à pedagogia que trata o elemento pueril como algo valioso em si; que representa as crianças como perfeitas em um estado em que elas próprias se sentem imperfeitas. Esforçando-se por torná-las contentes, a pedagogia perturba e altera o que há de melhor nas crianças, que é “a espontânea e verdadeira carência infantil”.291 O resultado dessa pedagogia é afastar as crianças das realidades substanciais.

Embora reconheça no castigo a função de intimidar uma liberdade ainda natural, Hegel vê as crianças em si como seres livres, não pertencentes a outrem, nem aos seus pais.

286

Ibidem, § 173, p. 169-170.

287 Rosenfield, D. Política e Liberdade em Hegel, op. cit., p. 153.

288 Contra Rousseau, que entende a educação como um processo de remoção de obstáculos ao

desenvolvimento natural das aptidões das crianças, que inclusive deveriam ser isoladas da vida civilizada, Hegel entende a educação como uma superação da natureza imediata. Percebe-se isso em seu endosso ao conselho de um pitagórico sobre a melhor maneira de educar um filho: “Faz dele cidadão de um Estado cujas idéias sejam boas” (HEGEL. Princípios da Filosofia do Direito, op. cit., § 153, p. 159).

289 Ibidem, § 175, p. 170. 290 Ibidem, § 174, p. 170. 291 Ibidem, § 175, Nota, p. 171.

A restrição à liberdade natural pela punição é apenas um meio que vai elevar a criança à consciência do universal. Ele situa a escravatura das crianças como a instituição que mais corrompe a legislação romana, Esta, em sua opinião, não possui um caráter ético; o que a norteia é um princípio formal.

Como o casamento é a forma imediata da eticidade que se funda no consentimento livre de duas pessoas, sua existência é contingente. Portanto, como não pode haver coação que obrigue aos laços do casamento, também não há laço de direito positivo, isto é, não há contrato que mantenha unidas duas pessoas quando entre elas surgem sentimentos e ações opostas e hostis. Perante a essa contingência, no entanto, somente a autoridade moral de um terceiro garante o direito do casamento contra uma situação de falsa incompatibilidade de sentimentos. Essa autoridade moral é o Estado; apenas ela pode distinguir as situações da alienação total e recíproca dos laços do casamento que justificam sua dissolução.292 Os laços do casamento, portanto, têm limites. Eles podem ser desfeitos porque permanecem marcados pela contingência de um consentimento fundado no sentimento do amor espiritual e na intimidade particular da consciência. Somente o Estado, no entanto, como instância indissolúvel, pode vir a dissolvê-los.

Hegel não dispõe sobre o desfazimento do casamento (o divórcio) considerando-o como forma da dissolução da família. É como se a ruptura do casamento, por estar sujeita ao juízo do Estado, e, portanto, não depender do querer imediato das partes envolvidas na relação, embora desfazendo a ligação ética, não dissolvesse a família. Isso talvez porque no divórcio as obrigações dos pais para com os filhos permaneçam inalteradas, já que são asseguradas pelo Estado. Para Hegel, as condições de dissolução da família são apenas a maioridade dos filhos, pela qual são reconhecidos como pessoas jurídicas - o que os torna capazes de possuir propriedade particular e de construir nova família - e a morte dos pais, sobretudo a morte do pai, que é o chefe da família. Esse fato vai repercutir na herança que é o resultado da dissolução natural da família.293

O processo de dissolução da família pela aquisição da maioridade dos filhos é qualificado em Hegel como dissolução moral da família. Nele, a unidade familiar é dissolvida porque os filhos, com a maioridade, se tornaram pessoas jurídicas independentes

292 Ibidem, § 176, p. 171-172. 293 Ibidem, § 178, p. 172.

e são capazes, por um lado, de livremente possuir propriedade particular, e, por outro lado, de constituir novas famílias. Nestas eles passam a ter o seu destino substancial, afastando- se de suas antigas famílias que voltam para a sua situação de origem. Surge, assim, entre as famílias uma relação externa, na qual se perde o valor jurídico dos laços originários.294

A capacidade de ter propriedade particular, adquirida pelos membros da família que se tornam indivíduos independentes, resulta por dissolver a unidade natural da família em indivíduos independentes e proprietários que entram em competição com outros indivíduos independentes e proprietários, na busca de garantir a satisfação de seus interesses egoísticos particulares. Esses indivíduos independentes e capazes de ser proprietários é que vão promover o aparecimento da sociedade civil que surge com a perda da eticidade natural. É nessa esfera que os indivíduos independentes vão buscar seu reconhecimento, ao entrar em relação com outros indivíduos independentes.

Do ponto de vista da dissolução natural da família, Hegel aponta a herança, cuja apropriação ocorre com a morte dos pais, como seu elemento determinante. Segundo ele, consiste a herança, em sua essência, na possessão particular de uma fortuna coletiva em si, que é tanto mais indeterminada quanto mais perdido estiver o sentimento da unidade familiar. A falta de compreensão do que seja a natureza da realidade familiar faz como que os membros de uma família se sintam livres para empregar a fortuna herdada conforme os seus gostos, fins e opiniões individuais. Também dá o direito de considerar como família um grupo de amigos ou conhecidos, e fazer a favor deles um testamento, cujas conseqüências jurídicas é o direito à herança. De acordo com Hegel, uma herança determinada por testamento traz consigo uma tal ordem de contingências, arbitrariedades e cálculos egoístas, que o elemento moral objetivo contido nesse ato se torna completamente vago. Segundo ele, “o reconhecimento de uma tal capacidade do livre-arbítrio para testar”295 pode tornar-se facilmente uma violação das relações morais. A vontade arbitrária de uma pessoa não pode constituir o princípio do direito de testar; sobretudo, quando essa vontade se apresenta como oposta ao direito substancial da família, e mesmo que a família, por amor e respeito ao “seu antigo chefe, possa, depois da sua morte, honrar tal arbítrio”.296

294 Ibidem, § 177, p. 172.

295 Ibidem, § 179, p. 173. 296 Ibidem, § 180, Nota, p. 174.

Para Hegel, o valor que poderá ter as disposições da última vontade de uma pessoa só existe pelo reconhecimento arbitrário de outrem, e a família que se mostra impotente diante desse fato colabora com uma situação imoral. Hegel afirma que, quanto mais predominar sobre a família a prepotência do livre-arbítrio, mais a moralidade se enfraquece. É certo que existe na natureza do casamento, como moralidade imediata, uma mistura de realidade substancial, de contingência natural e arbitrariedade, porém, quando se privilegia o arbítrio à custa do direito, abre-se o caminho legal para a corrupção dos costumes que se refletirá nas leis. Portanto, a vontade arbitrária não pode ser o princípio fundamental da herança. Esta é uma universalidade que compreende uma fortuna familiar. O que está em questão na herança, como possessão particular de uma fortuna coletiva, é uma ligação substancial entre os membros de uma família; é o respeito ao direito familiar aos bens constituídos de forma coletiva. A idéia contida no direito à herança é a idéia da família enquanto tal.

É notória a insistência de Hegel em fazer da família uma unidade ética concreta, que vai constituir a base moral do Estado. Para ele, os dois momentos, o ético e o natural, que determinam a dissolução da família fazem parte de um mesmo processo, que é a constituição de novas famílias que, como pessoas autônomas, vão entrar em uma relação externa de independência em relação umas com às outras. Abre-se, pois, com a dissolução da família originária, um novo espaço para a realização dos diversos interesses particulares que agora serão satisfeitos não mais no seio da unidade familiar, mas no âmbito da sociedade civil, que surge com a perda da eticidade natural.

Em Hegel, a sociedade civil é um momento do desenvolvimento da eticidade, que começa com a família e culmina no Estado. Ela é a esfera negativa da eticidade que surge com a dissolução da unidade da família. Na sociedade civil ocorre a perda da eticidade natural porque nela se desfaz a unidade entre o universal e o particular existente na família. É na esfera da sociedade civil que emerge a particularidade cuja relação com o universal é apenas formal. O universal só como aparência existe no particular. Daí Hegel dizer que a sociedade civil é a esfera fenomênica do ético, ou seja, nela a eticidade é apenas aparência, pois, nesse domínio, tem primazia o particular.297

297 Ibidem, § 181, p. 177.

É no espaço da sociedade civil, no qual os interesses particulares vão ser satisfeitos, que a diferença e a independência dos indivíduos ganham um contorno definitivo enquanto realidade autônoma. Assim, o processo de dissolução da família, como base orgânica e natural da substância ética, dá lugar ao surgimento da sociedade civil. Nesta esfera, cada um é uma pessoa concreta que tem por fim a realização de sua própria particularidade. Os laços naturais, fundados no amor, que uniam os membros da família são superados na sociedade civil, onde prevalecem as relações intersubjetivas fundadas na lei, na justiça e nas instituições sociais. Essas estruturas é que vão mediar a convivência racional entre os indivíduos, de modo que sejam satisfeitas, em conjunto, suas necessidades naturais e espirituais, bem como sua liberdade. A sociedade civil, assim, além de representar a esfera da diferença que intervém entre a Família e o Estado, é também a esfera da mediação pela qual o indivíduo entra em relação com outros indivíduos, de forma a atingir seu fim particular, o que se dá conjuntamente com a satisfação do bem próprio das outras particularidades.