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Sob o ponto de vista interno, ou seja, da soberania interna, a Constituição política “é a organização do Estado e o processo da sua vida orgânica em relação consigo mesmo”.423 Neste processo, o Estado distingue seus poderes internos e os desenvolve em uma existência determinada. Para Hegel, a Constituição de um Estado é racional quando este

422 Ibidem, § 271, p. 250-251. 423 Ibidem, § 271, p. 250.

determina, e em si mesmo distribui, a sua atividade, de tal modo que cada um dos poderes estatal seja em si mesmo a totalidade (o Estado). Isso acontece na medida em que cada poder contém em si a ação dos outros, e, ao mesmo tempo em que exprimem a diferença do conceito de Estado, os poderes constituem um todo individual único.424

Essa necessidade da totalidade do Estado em cada um dos seus poderes é a negação da tese da separação dos poderes, vista como independência absoluta de poderes, cujas relações exteriores são de restrição recíproca. Hegel, contudo, considera a separação dos poderes como necessária, pois esta se apresenta como uma diferenciação do conceito de Estado que conserva a sua unidade substancial, mas se afirma na ação determinada de cada um dos poderes estatais. Estes são momentos do conceito do Estado e expressam a totalidade da qual são membros.

O Estado em sua totalidade é concebido por G.W.F. Hegel de modo racional conforme aos três momentos organicamente ligados do conceito lógico: universalidade (poder legislativo), particularidade (poder do governo) e singularidade (poder do príncipe). Hegel não aceita a posição que defende a independência absoluta dos poderes e considera a relação entre eles como recíprocas limitações, porque isso só seria capaz de permitir um equilíbrio geral morto.425 Segundo ele, os poderes do Estado, como momentos do conceito, formam a unidade viva do organismo estatal; daí ser a interdependência entre eles a condição de possibilidade do Estado como uma totalidade. Hegel recusa a tese clássica da separação entre os três poderes; estes têm de operar como membros de um todo para que a unidade do Estado seja mantida. Assim, um poder se subordina ao outros, e nessa relação se produzem simultaneamente como momentos constitutivos de uma unidade individual; cada poder é membro do todo que é o Estado.

A crítica de Hegel é a separação mecânica dos poderes – aquela em que os poderes são parte e não membros de um Estado - vista pela concepção atomista de Estado, que o toma como um agregado de indivíduos isolados. Como, para ele, porém, o Estado é um organismo substancial, os poderes não são fixados como partes (como mecanismos), e sim como membros de uma totalidade, da qual são momentos de diferenciação. Daí vem a necessidade da separação dos poderes. Estes, enquanto tais, contêm a idéia dessa totalidade,

424 Ibidem, § 272, p. 251.

ou seja, a forma concreta de realização de cada poder conserva em si a idéia do todo, do Estado. Só quando cada um dos poderes é em si mesmo a totalidade, a Constituição política de um Estado é racional. Hegel procura fazer da separação dos poderes uma determinação da idéia da liberdade.426

O Estado político de Hegel apresenta-se, pois, sob as seguintes diferenças substanciais, ou seja, poderes: 1) poder legislativo: poder de determinar e estabelecer o universal, que é a lei; 2) poder do governo: poder de integrar, de subsumir, ao universal as esferas particulares e os casos individuais; e 3) poder do príncipe: poder que se reúne na singularidade da decisão última (suprema) da vontade subjetiva.427 Dessa divisão do poder não faz parte o poder judiciário, considerado, na divisão clássica formulada por Montesquieu, como um poder propriamente político. Esse foi remetido por G.W.F. Hegel à esfera da jurisdição, ou seja, da administração do direito, que se encontra em um plano infra-estatal que é a sociedade civil.

Quando da exposição do conteúdo de cada um dos poderes estatais observa-se que Hegel altera a ordem de sua apresentação. O primeiro passa a ser o poder do príncipe, em seguida vêm o poder do governo e o poder legislativo. A questão aqui expressa é saber se essa inversão possui algum significado lógico. O que se pode apreender é que o poder do príncipe, como o momento da singularidade (da síntese), supõe todos os outros poderes, ao mesmo tempo em que é suposto por parte de cada um deles. Ele é, portanto, o começo e a culminação do todo.

A forma histórica que realiza a racionalidade do Estado é, em Hegel, a monarquia constitucional. Esta é, para ele, obra do mundo moderno que, ao apreender a verdade do processo que a produziu, provocou o aperfeiçoamento do Estado.428 A monarquia constitucional, para a filosofia política de Hegel, é, portanto, a forma que supera a classificação tradicional das constituições em monarquia, aristocracia e democracia. Essa classificação não analisava a estrutura interior do Estado, atendo-se a diferenças meramente quantitativas e exteriores. Na monarquia constitucional, no entanto, a vontade universal (expressa no poder legislativo) está inteiramente relacionada com a vontade subjetiva do príncipe (vontade singular). Não existe, nessa forma de governo, a separação clássica entre

426 Rosenfield, D. Política e Liberdade em Hegel, op. cit., p. 234. 427 Hegel. Princípios da Filosofia do Direito, op. cit., § 273, p. 253. 428 Ibidem, § 273, N., p. 254.

governantes e governados, uma vez que a vontade particular já está formada para a prática da universalidade - pelos acontecimentos históricos da Revolução Francesa. O príncipe que personifica a unidade individual (o Estado) vive da atividade dos cidadãos, e a separação dos poderes expressa a subsunção de cada poder nos demais, pois o seu fundamento é o mesmo, isto é, “a intervenção consciente dos cidadãos nos assuntos políticos, verdadeira culminação desta divisão”429 de poderes.

Portanto, é o processo racional do devir histórico que fornece a cada povo a Constituição adequada à sua consciência de si, que faz da monarquia constitucional a Constituição verdadeira, para Hegel. É assim que ele, apreendendo esse processo, procura deduzir racionalmente a monarquia constitucional como tal, mostrando nela a condição que torna possível o caráter fundamental do Estado, que é a “unidade substancial como idealidade dos seus momentos”.430

Hegel se questiona sobre quem faz uma Constituição política, para em seguida afirmar que, após um exame mais atento, essa questão não faz qualquer sentido, pois supõe uma situação em que não existe nenhuma Constituição, em que o que há, é apenas um conjunto atomizado de indivíduos. Para ele, pode-se considerar indiferente a maneira como um agregado de indivíduos faz uma Constituição, visto o conceito de Constituição não se relacionar com uma associação de indivíduos isolados. Onde existe um povo, porém, há uma organização política. De acordo com Hegel, de um modo geral, é essencial que se reconheça que a Constituição é algo incriado, embora produzida no tempo. Ela se constitui do que deve se considerar divino e imutável e, assim, é o espírito de um povo; depende da natureza e cultura desse povo, de sua realidade que é a realidade da Constituição. Querer dar a um povo a priori uma Constituição a priori, mesmo que ela tenha um conteúdo racional, é, para Hegel, uma fantasia que não leva em conta o elemento que faz dela mais do que um ser da razão. “Cada povo tem, por conseguinte, a Constituição que lhe convém e se lhe adequa”.431

A Constituição, portanto, é imutável no seu conteúdo interno. É apenas modificável em seus aspectos acidentais, externos, daí ser considerada como aquilo que está acima do

429 Rosenfield, D. Política e Liberdade em Hegel, op. cit., p. 236.

430 Bourgeois, B. O Pensamento Político de Hegel. Tradução de Paulo Neves da Silva. São Leopoldo: Ed.

Unisinos, 2000, p. 130-131.

que é criado. As modificações em uma Constituição política são da ordem externa, contingenciais, jamais atingem sua substância essencial (seu espírito). Embora uma Constituição política tenha determinação histórica, ela não é produto de um tempo determinado, mas de toda a história e cultura de um povo.