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A EDUCAÇÃO INFANTIL E O TEMPO DO CAPITAL: cotidiano e temporalidades

2 COMPONDO CONCEITOS: a potência das transições cotidianas na

2.2 A EDUCAÇÃO INFANTIL E O TEMPO DO CAPITAL: cotidiano e temporalidades

Se, para cada um de nós, o significado do tempo é particular, como é particular cada processo, que, em cada pessoa, se desenvolve singularmente, torna-se importante descobrir como cada um vive seu tempo e os indícios de como podemos vive-lo melhor, ou seja, como viver o tempo da vida (SACRISTÁN, 2008). Dessa forma, se relacionar com o tempo é uma capacidade do adulto, em toda sua complexidade. Pensando nisso, surge o questionamento: como esse tempo de um processo de humanização é vivido no tempo e no cotidiano da creche, pelas crianças? O tema dessa pesquisa – que investiga as transições e como elas se dão no espaço de vida coletiva, do dia a dia da creche – busca contribuir para que essas essências da relação com o tempo, dos adultos com as crianças e com suas temporalidades (ESLAVA, 2007; NIGITO, 2011; OLIVEIRA, 2012b), aconteçam e possam ser qualificadas, pois “penetrar na temporalidade que é múltipla não é fácil, é um desafio, assim como é também um desafio mergulhar no tempo na/da/com a escola” (OLIVEIRA, 2012a, p. 22). Em face disso, cabe aos professores e adultos que exercem suas funções no espaço da creche encontrar formas de respeitar os tempos, ritmos e singularidades de cada criança, no coletivo.

Nesse sentido, Oliveira (2012a, p. 34) afirma que “cada um de nós organiza o tempo de acordo com nossos interesses e atribui a ele significados, experienciando temporalidades”. Dando sequência ao assunto, a autora apresenta a identificação de diferentes temporalidades imersas no espaço escolar: temporalidades na/da escola de educação em tempo integral, temporalidades tecidas no currículo e temporalidades de crianças da Educação Infantil. Além disso, ela conceitua temporalidades como as

múltiplas formas de lidar, de relacionar, de organizar o tempo, ou seja, a experiência no e com o tempo. Por fim, a autora (2012b, p.107) mostra que, ao “considerar as múltiplas formas de se relacionar com o tempo” na organização da rotina, a instituição mostra “perceber que cada ser humano tem seu ritmo próprio e, consequentemente, seu tempo”. No que diz respeito aos objetivos dessa pesquisa, estar com os bebês e crianças bem pequenas, no dia a dia da creche, por muitas horas, foi importante para observar as regularidades e disparidades das formas de lidar com o tempo das crianças nas situações de transições, como demonstram suas temporalidades e como os adultos as percebem ou não.

Dito isso, importa destacar que, em todos os momentos de refeição que acompanhei, pela turma da pesquisa, tanto para o café da manhã como para o almoço, realizados no refeitório, e o momento da fruta na sala referência, ao final da tarde, existia um ritual. Um ritual de uma transição cotidiana da alimentação, envolvida pela

aprendizagem de cuidado pessoal e de mudança de um espaço para outro. Por sua

vez, esse ritual iniciava pelo anúncio do que iria acontecer, o parar de brincar para guardar brinquedos e organizar a sala (sendo que as crianças eram incentivadas a participar desse processo), o pedir bicos, o lavar as mãos, o escolher, na porta, qual grupo iria, se iriam todos juntos ou se se deslocariam de mão dada com a professora, de um colega ou de mão de vários colegas.

No deslocamento, quando a porta se abria pelo adulto, as crianças caminhavam em seus ritmos, observando quem encontravam no caminho, demais colegas que já estavam em alguma mesa para a refeição, explorando a casinha de madeira entrando e saindo dela. Ao chegar na mesa, subiam no banco que era baixo e possibilitava que subissem nele com “autonomia” (FALK, 2016b), e Mateus (11 meses) era colocado no cadeirão, conversavam, observavam tudo com atenção, demonstravam sono, algumas vezes, ou resistiam a se alimentar e recebiam a atenção devida. A depender do que iriam comer, principalmente no almoço, recebiam babeiros e o prato vinha servido. As crianças recebiam avisos caso a comida estivesse quente, tinham tempo para degustar, ingerir e cheirar a comida e o faziam com muito prazer.

Alguns repetiam as refeições. Nos momentos de lanche, serviam-se de frutas, pão ou bolos e recebiam leite ou suco nos copos com tampa, o que facilitava o manuseio. Nos lanches, ainda, serviam-se com tempo para aprender a usar utensílios que exigiam maior destreza, como pegador e espátula para passar geleias ou patês. Ao término das refeições, as crianças que necessitavam de maior tempo para ingerir os alimentos ficavam com uma das professoras na mesa do refeitório sem a pressão de terem que encerrar logo para viver outra atividade. Com isso, foi possível perceber o quanto o respeito aos tempos e temporalidades das crianças era fator relacional entre adultos e crianças na creche.

A partir dessa premissa, o tempo no cotidiano desse lugar se vale da gestão da educação. Desse modo, “o tempo físico e absoluto, o que o relógio indica, não podemos muda-lo” (SACRISTÁN, 2008, p. 19, tradução nossa), mas “a forma como o preenchemos sim, e esse tempo é o que importa para nós” (SACRISTÁN, 2008, p. 19, tradução nossa). No contexto da pesquisa, refletir sobre essa gestão dos tempos significa identificar e problematizar como o tempo no cotidiano da creche se estrutura e é vivido. Por sua vez, as crianças chegam ao ambiente educativo com bagagens e vivências sobre o tempo, e, nesse espaço, será dado a continuidade de algo que se vive, se sente, se experimenta, que é o tempo de cada um.

Corroborando o argumento, Oliveira (2012b, p.19) acrescenta que essa continuidade se dá no “movimento na vida cotidiana, o que implica maneiras diferenciadas de organização no/com o seu fluxo”. Desse modo, será importante, como dado de análise dessa pesquisa, observar como as histórias de cada criança são respeitadas ou consideradas nas transições cotidianas da creche. Nesse sentido, importa destacar que a “personalização do espaço constitui um elemento que caracteriza o contexto como um lugar familiar e vital, onde as crianças podem reconhecer partes de si mesmas e de suas histórias dentro de um espaço coletivo” (GARIBOLDI, 2011, p. 115, tradução nossa). Ou seja, essa personalização existia na sala referência das crianças da pesquisa, em fotos trazidas de casa e coladas na altura das crianças, no espelho, por exemplo, e que saliento adiante.

Sabemos, em contrapartida, que “sem calendário e sem relógio, a vida que hoje levamos seria impossível” (SACRISTÁN, 2008, p. 16, tradução nossa). No entanto, o tempo educativo gerencia vidas de pessoas, humanos em processo de desenvolvimento, que possuem seus tempos particulares. E, então? Como respeitá-lo se a ideia de rotina faz parte desse lugar, que se contrapõe à concepção da vida da creche como cotidiano, para que flua, além do compromisso com a convivência social que não nega sua dimensão universal (CARVALHO, 2015)? A instituição deve trabalhar na perspectiva de que “o tempo, enquanto objeto de estudo, é considerado uma articulação entre o tempo institucional, a organização do cotidiano, o seu ritmo, a organização dos episódios e seu fluir” (CARVALHO, 2015, p.128).

Nesse sentido, essa organização do tempo na creche necessita ser vista “como uma categoria pedagógica definida conceitualmente no campo educacional como rotina” e não somente compreendida “como carga horária a ser cumprida” (CARVALHO, 2015, p. 130). Ela deve ser pensada como forma de se distanciar da ideia do “tempo do capital” (CARVALHO, 2015) e ser gerida a partir das temporalidades (ESLAVA, 2007; NIGITO, 2011; OLIVEIRA, 2012b) e singularidades das crianças. Ainda, para Nigito (2011, p.82, tradução nossa), ter essa percepção de como adultos e crianças lidam com o tempo, facilita pontos de reflexão na instituição, porque “se questiona a organização temporal como um possível dispositivo pedagógico”.

Dessa forma, é possível perceber, ao que relatei, que, ao ter horário delimitado de almoço para uma determinada turma, mas dividir as crianças em pequenos grupos para que um deles possa se dirigir ao local de alimentação minutos antes do que o outro, por exemplo, é transmitida a ideia de que se pensa nesse momento como um espaço de bem-estar, de se sentir bem, de estar junto, com tempo para servir-se, conversar e, como objetivo maior, para comer. Além disso, quando se organiza os tempos olhando para as ações das crianças, elas percebem esse momento de ida ao almoço como uma transição planejada, apoiada, que respeita seus modos de viver, de forma a proporcionar a sua participação em práticas sociais da vida cotidiana.

Nessa perspectiva, utilizar alternativas como a de se organizar, com as crianças, minutos antes ou minutos depois de cada situação de mudança no cotidiano, pode contribuir no nível de ansiedade e caos que o momento pode gerar. Ao contrário, ao serem arrancadas do colo do pais para entrar na sala, do chão ou da brincadeira para trocar fraldas, por exemplo, ou de qualquer outra atividade por causa do horário que se aproxima, são criadas situações que desconsideram o respeito ao humano, ao tempo e à aprendizagem das crianças, que de nada contribuem para uma transição de um momento para outro ocorra de forma apoiada e segura.

Em relação ao modo como as crianças viviam a troca de fraldas na pesquisa, com convite pelos adultos, tratarei com maior ênfase no capítulo das análises. No entanto, é possível adiantar que essa relação, na transição cotidiana da troca de fralda, de cuidado pessoal, envolve o toque, o respeito e muita sensibilidade, pois trata-se de uma aprendizagem de como as pessoas se relacionam.

Corroborando o argumento, Nigito (2004, p. 94), em seu estudo, afirma que “a organização temporal na creche confirma a hipótese, na qual se baseia a elaboração do instrumento de análise do dia, da existência de uma ‘pedagogia latente’ que se concretiza na estratégia adulta de estruturação da experiência infantil na creche através da definição de rituais”. Todavia, longe de se pensar em uma ideia de cotidiano, muitas vezes, pensa-se em rotina, em que os tempos necessitam de horários que não necessariamente precisam seguir apenas a lógica dos adultos ou das funcionárias da limpeza ou da cozinha para darem conta das atividades do dia a dia, mas rituais da vida, que sustentam a experiência de estar com o outro e que antecipem o que vai acontecer com calma, segurança e considerando as crianças capazes de compreender esse processo. Nesse ponto vale retomar o que narrei sobre dois momentos específicos que vivi no cotidiano das crianças da pesquisa em que essa antecipação do que ia acontecer aliado com a flexibilidade dos adultos evitaram tempo de espera pelas crianças e insegurança.

Importa dizer que, quando os profissionais da instituição infantil administram e planejam os tempos pela lógica dos adultos, sem olhar para o que interessa para as

crianças, para o que as desafia, e os professores os veem como “perda de tempo”, isso reverbera em reclamações quanto à falta de tempo, mesmo em relação àquelas crianças que permanecem no ambiente educativo por mais do que dez horas. Ainda, essa concepção leva à pressa, à fragmentação do tempo e à produtividade.

Ou seja, os professores apressam as crianças para atender aos horários, as ações propostas são geridas por tempos fixos sem sentido e as avaliações geram ações de comparação e classificação das crianças. Em razão disso, “o que encontramos nas escolas infantis é a presença desse tempo característico das relações capitalísticas, que brutaliza a vida cotidiana e empobrece a experiência da infância. Um sentido de tempo que apenas passa, cumprindo o ordenamento da produtividade” (BARBOSA, 2013, p. 216, grifo do autor).

Enfim, constituímo-nos nas relações com a vida que nos apresentam e que experienciamos. Nesse sentido, somos responsáveis pela educação das crianças e pelas suas memórias corporais e pessoais com as práticas sociais da vida na coletividade. Tal prerrogativa se relaciona ao fato de que, no contexto da creche, elas são forçadas a conviverem com mais indivíduos. Entretanto, para elas, ter que ficar em uma sala com mais crianças pode ser de grande complexidade e estranheza, pois, em seu contexto de vida, fora da instituição, essa situação não havia lhe sido proporcionada.

Da mesma forma, na creche, enfrentarão muitos desafios que irão confrontar os seus conhecimentos da vida, como, por exemplo, desafios do encontro com o outro, do ser tocado, da compreensão de outros sentimentos que os afetarão, de situações novas a cada dia, de conhecimento do espaço que é o da instituição e não é o da sua casa. Portanto, apresento, a seguir, notas da relação dos bebês e crianças bem pequenas e o tempo como narrativa de suas vidas.

2.3 BEBÊS, CRIANÇAS BEM PEQUENAS E O TEMPO: notas sobre o tempo como