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O QUE SÃO AS TRANSIÇÕES COTIDIANAS NO CONTEXTO DE VIDA COLETIVA

2 COMPONDO CONCEITOS: a potência das transições cotidianas na

2.5 O QUE SÃO AS TRANSIÇÕES COTIDIANAS NO CONTEXTO DE VIDA COLETIVA

Buscar a elaboração de um conceito que contribua para qualificar e construir uma Pedagogia das Transições é o grande objetivo dessa pesquisa. Vogler, Crivello e Woodhead (2008) e Oliveira-Formosinho, Passos e Machado (2016), como menciono, tratam desse tema pelo termo transições “horizontais” (VOGLER; CRIVELLO; WOODHEAD, 2008; OLIVEIRA-FORMOSINHO; PASSOS; MACHADO, 2016). Ao mesmo tempo, os últimos ressaltam a importância de existir pesquisas que se debrucem sobre ele para estudá-lo, processo que podemos considerar praticamente inexistente. No contexto dessa pesquisa, as transições cotidianas são entendidas por aprendizagens que exigem ou geram mudanças na vida cotidiana institucional e nas ações dos bebês

e das crianças bem pequenas, sejam mudanças de um espaço a outro ou de um cuidado pessoal ao outro.

Ou seja, são situações cotidianas que ocorrem na creche e que são vividas pelas crianças e que merecem o apoio e o respeito aos tempos e temporalidades (ESLAVA, 2007; NIGITO, 2011; OLIVEIRA, 2012b) de cada uma. Nelas, o adulto guia e sustenta as suas aprendizagens. Os conceitos apresentados e defendidos por Rogoff (1993; 1998; 2005), de participação guiada e de apropriação participatória, contribuem para essa compreensão. Nesse sentido, implica situar que aprendizagens importantes acontecem nas transições cotidianas na creche pela complexidade que elas envolvem para as crianças. Por isso, necessitam de um olhar interessado e guiado nesse processo, pelo professor, de como as crianças as vivem. Para tanto, fundamento meu argumento na ideia de que, no processo de construção de identidade e de viver no coletivo, pelas crianças, ocorrem as múltiplas experiências de vivência entre pares, em participação

guiada e de momentos em que elas são submetidas à solução de problemas, tanto em

relação à maneira de se relacionar com o outro ou consigo mesmo, quanto em relação às múltiplas linguagens em desenvolvimento.

Essas pequenas mudanças, que não são menores quanto ao grau de complexidade no processo de aprendizagem das crianças, conforme pauta de observação apresentada para essa pesquisa, estão relacionadas às reações das crianças em relação aos anúncios do cotidiano na creche, como: deslocamentos de um espaço para outro – brincar e parar de brincar; comer e ir dormir; estar na sala e ir para o pátio; construir vínculos com os adultos e crianças, com as chegadas e despedidas e com o dia a dia da creche; reagir quanto aos cuidados pessoais a elas dispensados, como trocas de fraldas, uso do banheiro, vestir e/ou despir-se, manipulação de medicação, uso de utensílios (colher para uso de garfo e faca, mamadeira para uso do copo); reagir aos modos de organização do cotidiano da creche: desejos e negações.

Em vista disso, trata-se de olhar para as transições cotidianas na creche pensando nos aspectos ligados aos tempos e espaços de desenvolvimento e

transições vividas pelas crianças no cotidiano e nas relações com os adultos no contexto da investigação. Para Oliveira-Formosinho, Lima e Sousa (2016, p. 56), podemos considerar as transições educativas como complexas, porque são multifacetadas; ou seja, porque envolvem, ainda segundo as autoras (2016, p. 56), “situações inesperadas, uma pluralidade de atores, com características específicas, um dinamismo que não pode ser totalmente planificado porque decorre duma tessitura plural de relações e interações entre os muitos participantes e os seus contextos”. Com isso, as autoras supracitadas questionam a ideia da criança pronta, em que compreende-se o ônus do (in)sucesso na transição centrado na criança e coloca-se esse sucesso na responsabilidade de uma criança solitária, independentemente do contexto ou “dos contextos, dos processos ou dos atores educativos”. Elas salientam que os dados empíricos que identificaram em suas pesquisas não condizem com essa ideia, pois verificaram que, por mais que as crianças sejam competentes, “a qualidade das transições depende do contexto e dos processos de acolhimento”, ainda, das “interações que decorrem no tempo” (OLIVEIRA-FORMOSINHO; LIMA; SOUSA, 2016, p. 56).

Importa dizer que precisamos nos desprender da ideia de que a criança é que precisa se adaptar ao ambiente educativo e que esse processo depende apenas dela ou única e exclusivamente de sua capacidade. Ao contrário, ao considerar, nessa pesquisa, lançar um olhar mais aguçado a momentos específicos que geram pequenas mudanças na vida coletiva na creche, assumo a importância do quanto os bebês e crianças bem pequenas, a partir de suas reações, nos dizem de suas emoções,

temporalidades (ESLAVA, 2007; NIGITO, 2011; OLIVEIRA, 2012b) e tempos de espera

que necessitam. Parece essencial crer que, com essa relação respeitosa, seja possível indicar caminhos e ações para que os adultos sustentem e apoiem as aprendizagens (ROGGOF, 1993; 1998; 2005) das crianças frente à cada situação que influencie seus modos de viver e de se relacionar com os outros, com as coisas, com as situações.

Dessa forma, Hoyuelos (2015, p. 42) contribui com a ideia de transições

constituição genética e quando afirma que “dispomos de um relógio biológico, chamado circadiano”. Nesse sentido, nossa vida acontece pelo nosso tempo biológico e pelo tempo cronológico, ou seja, tempos referenciados na seção anterior e que permitem justificar o quanto essa capacidade está atrelada à gestão do tempo dos adultos responsáveis pela organização de um cotidiano respeitoso, e também, ou principalmente, pelas temporalidades (ESLAVA, 2007; NIGITO, 2011; OLIVEIRA, 2012b) das crianças na creche.

Nesse sentido, o peso dessa responsabilidade das transições cotidianas se distribui entre todos que participam desse processo, caso saibam ser interativos, comunicativos e colaborativos ao desenvolverem o processo de apoio às crianças. Ainda, o desafio se volta aos adultos para que eles estejam preparados ou se preparem ao compreender seu papel ativo, reflexivo, investigador e provocador de transições e consigam perceber o quanto “limitativas se podem tornar se não forem vividas de forma respeitosa, humanizante, provocadora, apoiada” (OLIVEIRA-FORMOSINHO, LIMA; SOUSA, 2016, p. 60).

Os estudos de Rogoff (1993), sobre as relações dos adultos com as crianças em diferentes contextos ou diferentes comunidades culturais em que vivem, contribuem nessa pesquisa quando nos remetem a pensar que compreender os padrões das diferentes culturas significa nos desprendermos do julgamento de valor. Isso é tido, porque muitas vezes as pessoas entendem que para, “compreender respeitosamente os modos de vida de outros, devem criticar os seus próprios”, mas, ao contrário, termos uma “postura voltada a aprendizagem” (ROGOFF, 2005, p. 30 – 31) significa suspender esses dois tipos de julgamento, tanto dos modos de vida dos outros como dos nossos. Ou seja, torna-se necessário, entendermos como as pessoas que convivemos, no caso, na creche, funcionam em suas tradições para, também, compreendermos o desenvolvimento humano, que possuem “características universais, mas, construídas, com variações locais” (ROGOFF, 2005, p. 31).

Desse modo, dar-se conta de que existem diferenças culturais nos modos de viver das crianças significa dar atenção às diferentes maneiras de funcionamento de

cada família e, em se tratando das transições cotidianas, se refere ao repensar as formas tidas como dadas na creche, ou seja, no modo como acontece ou deve acontecer as relações de cuidado pessoal - o descanso, a alimentação, e a higiene - e como cada criança mostra bem-estar em seus modos de aprender.

Nesse sentido, percebi crianças respeitadas nas suas maneiras de lidar e de se relacionar com as suas coisas, objetos de transição e apegos e, ainda, nas suas manifestações de preferências físicas e biológicas. Por sua vez, acompanhei adultos envolvidos e empenhados a compreender os modos de comunicação das vontades de cada criança nesse novo espaço de vida coletiva e comprometidos em observar como as crianças aprendem.

Essa eleição, que envolve a compreenção dos modos de comunicação das vontades de cada criança, de ser guia e de dividir papéis na vida infantil, constitui um nível superior de participação guiada, que significa aprender a pensar que a

aprendizagem ativa (ROGOFF, 1993) das crianças em contextos de atividade cultural

tem como guia companheiros mais qualificados, que podem ser seus pares, e que, com isso, “as crianças se comprometem com os múltiplos companheiros e cuidadores em redes de relações organizadas e flexíveis” e se envolvem em “atividades culturais compartilhadas e não só em necessidades de indivíduos solitários” (ROGOFF, 1993, p. 122, tradução nossa). Essa variedade de relações sociais permite que as crianças desempenhem diversos papéis não só importantes para o seu desenvolvimento, mas também para amortizar as dificuldades que encontrariam caso se relacionassem com apenas umas poucas pessoas.

No contexto da creche e para o objeto dessa pesquisa, importa o conceito de

participação guiada por permitir essa mútua relação entre os atores: professor e criança

e crianças-crianças. Nesse sentido, quando elegemos as atividades ou os materiais que consideramos apropriados oferecer às crianças, estamos preparando o “entorno de aprendizagem”, ainda “guiamos tacitamente o desenvolvimento infantil” (ROGOFF, 1993, p. 134, tradução nossa), ao que delineio no próximo capítulo.

Acrescenta-se a essa posição que, ao planejarmos as atividades das crianças, também oferecemos uma estrutura de apoio para que adquiram a destreza necessária e a visão de como e porque as atividades funcionam de uma ou outra forma. Por sua vez, elas aprendem expressões que depois aplicarão em uma conversa, por exemplo, pois, durante as observações em campo, foi possível perceber que, assim como afirma Rogoff (1993, p. 129, tradução nossa), “a preparação periférica do palco e a distribuição de papéis na vida cotidiana que as crianças observam e em que participam exercem uma influência fundamental nas suas oportunidades de aprendizagem”.

Ou seja, muitas das ações que vivi em campo, pelas crianças, e que apresentei e apresentarei durante essa pesquisa demostram aprendizagens significativas das crianças em seus ritmos temporais e graus de participação.

A partir das cenas, é possível ver os movimentos de participação das crianças. Relaciono isso ao fato de que, quando os adultos que se relacionavam com elas estabeleciam uma relação de escuta e fala, durante a troca de fralda ou na resolução de um conflito, frente a uma reação negativa, quando no anúncio de uma mudança ou nova atividade, por exemplo, estavam exercendo o papel de participação guiada e oportunizando que, nessa participação, vivessem aprendizagens e a apropriação

participatória com adultos e crianças, porque avançavam em atitudes e

desenvolvimento.

Dessa forma, observar mais de perto as transições cotidianas significa desvelá- las e, ao analisá-las, encontrar pontos de apoio para que as aprendizagens aconteçam, no sentido de atentarmos ao quanto os bebês e as crianças bem pequenas chegam nesse ambiente com muitas vivências de sua cultura e de suas experiências relacionais com os outros e que, nesse novo lugar, somos responsáveis em estabelecer e oportunizar aprendizagens pela participação guiada em apropriação participatória.

Nas cenas da imagem da foto mosaico, algumas das transições cotidianas mapeadas e que serão melhor apresentadas nas unidades de análise podem ser visualizadas.

Por sua vez, assim como compreendemos que a reação de cada criança será diferente (porque vive em comunidade diferente), no momento em que se estabelece essas relações com as crianças – ao nomear o que está acontecendo ou o que pode se estar sentindo -, o enunciador apoia a estruturação do pensamento delas e o desenvolvimento de sua linguagem, dentre tantas outras aprendizagens, do que significa se relacionar com pessoas e viver transições positivas. A partir do exposto, enquanto instituição, estamos exercendo o papel de contribuir na continuidade das experiências de vida, em sociedade, das crianças, tanto em relação ao ambiente de vida coletiva quanto aos processos de aprendizagem. Rogoff (2005, p. 140 - 141) contribui com a ideia de continuidade no respeito à “autonomia” (FALK, 2016b) do outro e, também, de descontinuidade (VOGLER; CRIVELLO; WOODHEAD, 2008; ALVÃO; CAVALCANTE, 2015; MONGE; FORMOSINHO, 2016;) das aprendizagens das crianças quanto às transições, quando se refere à perspectiva maia17. A autora relata que, nessa comunidade, permite-se que as crianças pequenas não sigam regras e que os adultos respeitem suas vontades. No entanto, essa lógica muda com 2 e 3 anos, quando as crianças ganham um irmão e, a partir disso, entende-se que aprenderam a cooperar, mudando de posição daquelas que podiam querer e ganhar tudo, para aquelas que entendem o que é ajudar e que estão prontas a respeitar as vontades do novo irmão.

Essa prática da comunidade maia, que já fora chamada de “indulgente” por pesquisadores e que se difere, por exemplo, das euro-americanas, em que as crianças respondem às mesmas regras, com preocupação com a igualdade, está envolta de continuidade ao processo de “autonomia” (FALK, 2016b). Além disso, abrange o respeito quanto ao fato de que, assim como os processos de desenvolvimento das crianças, precisamos compreender como funciona cada contexto, cada comunidade, para buscarmos formas de agir através da compreensão de como elas funcionam, reverberando no “respeito em seu tempo e espaço” (ROGOFF, 2005, p. 26). Parece essencial que essas diferenças culturais nos alertem ao fato da importância da entrevista com as famílias no início de cada ano, ou das visitas às famílias, práticas de

algumas instituições e, do quanto, mesmo quando matriculamos crianças de um mesmo bairro, elas vivem experiências culturais distintas. Nessa perspectiva, olhar para suas singularidades, tempos e ações reverbera em apoiarmos transições com o maior grau de bem-estar e aprendizagem pelas crianças.

Apresentar esse exemplo do modo de se relacionar com as crianças na comunidade maia significa a busca em relacionar as transições cotidianas a esse conceito de continuidade e descontinuidade (VOGLER; CRIVELLO; WOODHEAD, 2008; ALVÃO; CAVALCANTE, 2015; MONGE; FORMOSINHO, 2016) ao qual elas são submetidas na creche e a necessidade de analisá-las a partir das ações das crianças, de suas vivências anteriores, pois elas envolvem questões culturais, temporais e pessoais de cada criança. Em tal perspectiva, para Monge e Formosinho (2016, p. 146), “as transições estão associadas a um tempo de mudanças significativas, de descontinuidades e novas exigências”. Os autores ressaltam que esse tempo na vida da criança está envolto tanto de exigências que aumentam, como de apoios que diminuem e que essas mudanças e descontinuidades se manifestam de diferentes formas. No cotidiano educativo, elas acontecem no período de adaptação, nas dificuldades nesse processo e na complexidade que ocorre na passagem de um ambiente de autonomia a outro, em que diminui seu poder de iniciativa e em que o “poder do professor” prevalece. Nessa perspectiva, no último tópico desse capítulo, abordo o quanto as transições cotidianas e as aprendizagens que delas decorrem estão envoltas e necessitam ser sustentadas pelos adultos a partir da cultura e o respeito às crianças.

2.6 TRANSIÇÕES COTIDIANAS: como o olhar do adulto sustenta as aprendizagens