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3 ASPECTOS LEGAIS, INCLUSÃO E EDUCAÇÃO MATEMÁTICA DE

3.4 A educação matemática de alunos cegos – a visualização e seus

André Leroi Gourhan, etnólogo, antropólogo, paleontólogo e pré-historiador, procurou interpretar a história do homem por meio das imagens deixadas por eles. Argumentava que o “desenho é a mão que fala”. Assim, o texto e a imagem são uma única coisa, pois é possível tanto escrever com imagens como desenhar com palavras. A imagem é um importante recurso para explicitar ideias, o pensamento e a visão. Elas são representações visuais associadas à pintura, desenho, esculturas e fotografias. É uma forma de registro que envolve a interiorização e a contemplação, concedendo significados (MACHADO, 2008, p. 102). Assim, entendemos que “desenhar com palavras” é um importante recurso que podemos utilizar no ensino/aprendizagem de matemática. Muitos são os conceitos matemáticos cuja linguagem pictórica é fundamental para seu entendimento. Contudo, a forma correta (se é que existe uma) de explicar dado conceito, de modo que o seu entendimento seja compreendido, da mesma forma, por todos, torna-se o centro da questão.

Atualmente, muitos livros em Braille trazem as imagens descritas em quadros próximos a elas. Em visita ao Centro de Atendimento Pedagógico para Pessoas com Deficiência Visual (CAP) de Montes Claros, pude conhecer de perto o trabalho de tradução de livros para o Braille, voltados para a educação básica em seus diversos conteúdos. Um hercúleo trabalho realizado por dedicados servidores que se desdobram para conseguir atender à imensa demanda por material didático para alunos cegos, matriculados nas escolas públicas estaduais de uma parte expressiva do estado de Minas Gerais. Naquela visita, conheci o modo como uma imagem é descrita para um cego. Nada fácil ou mesmo simples. Os digitadores descrevem a imagem que é avaliada por um revisor cego. Ele, com a sua experiência, avalia se a figura ou imagem carece ainda de alguma complementação de descrição ou não face a imagem mental que faz dela. Caso ele não entenda o que está descrito, conversa com o digitador para idealizar a melhor descrição possível da imagem. Descrever figuras e paisagens requer uma dose de criatividade significativa por parte dos digitadores. Isso sem contar, ainda, que a descrição, por mais técnica que seja, é uma interpretação da visão que ele tem da imagem. Um exercício complexo, mas possível. Fiquei imaginando como seria representar gráficos ou situações que

envolvem intersecções entre funções, elementos de Geometria Plana, Geometria Espacial.

Pensando apenas no livro didático, este constitui um importante aliado para a autonomia de um aluno cego. Contudo, torná-lo disponível é um desafio a ser superado, uma vez que, em especial, a Matemática é repleta de representações visuais e formulação escrita própria.

Do ponto de vista do livro didático, o livro acessível através do Braille constitui também um desafio para o aluno e para o professor, pois ambos poderão ter “visões” diferentes do mesmo objeto. Percebi isso na visita ao CAP. Coincidentemente, no dia de nossa visita, um livro de matemática para a educação básica estava sendo traduzido para o Braille, portanto foi possível observar como funciona o trabalho de tradução de uma imagem. Durante alguns minutos, fiquei observando a tradução de certa imagem daquele livro. No meu modo de ver, a descrição daquela imagem pelo digitador não correspondia, naquele momento, com todos os detalhes que de fato estavam descritos no livro que ele traduzia. Não desejo, de forma alguma, discutir o erro ou o acerto (se é que podemos dizer que existe um ou outro). Apenas discuto a “visão” do objeto. O digitador, na maioria das vezes, é um servidor que não possui a formação em Matemática. Por outro lado, a formação em Matemática do digitador não garante, por si só, a fidelidade à imagem, uma vez que o revisor pode não tê-la. Essas ponderações são feitas para algumas questões dos livros didáticos da Educação Básica. Mas e se pensarmos no Cálculo, Análise ou mesmo nas diversas e particulares notações matemáticas comuns no Ensino Superior? Como tratar esses conteúdos tão específicos com a descrição das imagens e linguagem Matemática própria? Essas indagações me incomodaram e muito me intrigou em saber se havia alguma metodologia própria para realizar esse processo de forma metódica. Em rápida busca na internet, encontrei pouca coisa que pudesse elucidar minhas indagações. Nesse caso, percebo um desafio grande ainda para a educação matemática no Ensino Superior que temos de discutir, não tendo, ainda, superado os desafios da educação básica, principalmente no que tange ao registro escrito.

A escrita Braille, no meu modo de ver, é complexa do ponto de vista dos entes matemáticos necessários à erudição matemática no ensino superior. Carece ainda de uniformidade e padronização de registros na língua portuguesa. Em se tratando da linguagem matemática simbólica utilizada no Ensino Superior, temos um

padrão, adotado em países de língua inglesa: o código de Nemeth. Essa codificação foi criada pelo matemático e cientista da computação Abraham Nemeth e, em sua homenagem, recebe o nome de Nemeth Braille. O Código Braille de Nemeth para Matemática14 é um código Braille para decodificar símbolos matemáticos e notação científica linear usando a célula Braille padrão de seis pontos para ser utilizado por pessoas com deficiência visual. Foi utilizado pela primeira vez em 1952 e, em 1992, foi integrado ao sistema de Braille Inglês. No Brasil, o Código de Nemeth é pouco difundido ou mesmo desconhecido. Por exemplo, um símbolo de integração em Braille no Código de Nemeth é representado por ! (exclamação) e um símbolo de fatorial, que deveria ser a exclamação, é representado por & (e). Portanto, temos de avançar ainda nesse campo para discutir a forma adequada de trabalhar essa linguagem, de modo que os cegos brasileiros possam se apropriar dela, desenvolver a sua própria ou ainda criar uma via intermediária entre o que existe e o que seja melhor em termos de usabilidade.

Devemos refletir ainda que no campo da educação matemática, carecemos de informações mais específicas sobre como o processo cognitivo das pessoas com necessidades especiais se dá. Saber como proceder de maneira a tornar a aprendizagem eficaz, do ponto de vista pedagógico, ainda é um desafio substancial. Os estudos atuais indicam a necessidade de adaptação e utilização de recursos materiais manipulativos, tanto para desenvolver suas habilidades quanto seu processo cognitivo. Concordamos com Fernandes, quando assevera:

O modo de trabalhar Matemática com os cegos pode facilitar a reflexão e busca para outros grupos de educandos com necessidades especiais (guardadas as diferenças) e inclusive a Didática da Matemática em geral, pois, se a metodologia de investigação é análoga, as soluções, podem ser indicadoras de soluções a seguir em cada caso. Dentro desta perspectiva, cada aprendiz é percebido como um aprendiz com necessidades especiais cabendo à Educação Matemática, como a todas as áreas da Educação, estruturar-se para potencializar suas competências e habilidades, e fazer desaparecer a palavra e o conceito “deficiente” (2004, p. 219).

Tornar algo “visível” para um cego é um desafio singular. Primeiramente, devemos definir o que é “ver” para um cego. Nesse sentido, particularmente entendo que ver é impressionar. Na Wikipédia15,

14 [Nemeth Braille code for mathmatics]. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Nemeth_Braille>. Acesso em: 01 ago. 2014.

15 WIKIPEDIA. Visão. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Vis%C3%A3o>. Acesso em: 13 jul. 2014.

ver com os olhos significa usá-los em prol da visão, enquanto o cérebro é a ferramenta essencial para processar os estímulos provenientes dos olhos criando a visão. Por isso, no sentido mais amplo da palavra visão (de percepção visual), esta requer a intervenção de zonas especializadas do cérebro no córtex visual que analisam e sintetizam a informação recolhida em termos de forma, cor, textura, relevo, etc.

Ver, para um cego, passa por outros órgãos distintos dos olhos. Tanto o tato quanto a fala, ruídos e os sons em geral são aspectos importantes na vida deles. Em se tratando da educação matemática de alunos cegos, para o professor, é importante desenvolver a habilidade necessária para falar de forma que o cego compreenda o que ele está apresentando. Mais que isso, é importante ouvir o que o cego tem a dizer sobre o que ele ouviu. Através da fala, ele externaliza aquilo que está em formação na sua mente. Por meio desse processo de diálogo, “desenhamos com palavras” as imagens para que o cego, à sua maneira, construa a imagem mental do objeto descrito. Heid (1990 apud MACHADO, 2008, p. 32) relata em sua pesquisa que, “quando os estudantes falam sobre os conceitos matemáticos, estão realmente aumentando a compreensão do conceito. A linguagem permite que eles reflitam e revisem seus pensamentos” (p. 195).

Dentre os estudiosos dessa relação, destacamos Vygotsky como um autor com o qual desejamos dialogar a respeito de questões desta pesquisa.