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A EEI PÓS-CONSTITUIÇÃO

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Esses novos cenários, com a participação dos povos indígenas e uma nova constituição que suplantou a tutela, possibilitaram que no campo das políticas da EEI se abrissem janelas para que novas normatizações fossem criadas, objetivando a efetivação das referências constitucionais e as normatizações específicas.

Em 1991, durante o governo Collor, por meio do Decreto Presidencial nº 26/91, em seu Art. 1º, o Governo Federal transferiu para o Ministério da Educação/MEC a atribuição para coordenar “[...] as ações referentes à Educação Indígena, em todos os níveis e modalidades de ensino, ouvida a Funai”, propondo que fosse desenvolvida, dentro do pacto federativo, em regime de colaboração com estados e municípios convênios e acordos por meio de suas respectivas secretarias de educação, visando sua efetivação. O novo marco legal exigiu novos olhares e abordagens sobre a EEI, principalmente na participação dos povos indígenas como sujeitos ativos e propositores desta construção.

Esse Decreto foi regulamentado com a Portaria Interministerial 559/1991, que criou dentro do MEC a Coordenação Nacional de Educação Escolar Indígena (EEI) e recomendou também, no seu Art. 5º, a criação de Núcleos de educação indígena nas secretarias estaduais de educação, com a incumbência de apoiar e implantar ações junto aos municípios onde existiam povos indígenas, incentivando e garantindo a participação dos índios e suas representações, instituições da sociedade civil e outros que atuam junto a estes povos, assim como as universidades.

Diante do novo cenário, com a necessidade de aprimorar a legislação e normatizar novas iniciativas e ações, o MEC publicou, em 1993, as “Diretrizes para a Política Nacional de EEI”. Nessas diretrizes, recomendou às secretarias estaduais de

educação que desenvolvessem ações relacionadas à organização, produção de material didático adequado, formação de professores e criação e reconhecimento da carreira do magistério indígena e, assegurando fontes de financiamento para essa política. Já durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1996, na Lei de Diretrizes e Bases, confirmou este propósito assegurando os direitos já reivindicados pelos povos indígenas.

Art. 79. A União apoiará técnica e financeiramente os sistemas de ensino no provimento da educação intercultural às comunidades indígenas, desenvolvendo programas integrados de ensino e pesquisa. § 1o Os programas serão planejados com audiência das comunidades indígenas.

§ 2o Os programas a que se refere este artigo, incluídos nos Planos Nacionais de Educação, terão os seguintes objetivos:

I – fortalecer as práticas socioculturais e a língua materna de cada comunidade indígena;

II – manter programas de formação de pessoal especializado, destinado à educação escolar nas comunidades indígenas;

III – desenvolver currículos e programas específicos, neles incluindo os conteúdos culturais correspondentes às respectivas comunidades (BRASIL, LDB, 1996).

Em 1999, o Conselho Nacional de Educação emitiu o Parecer 14/99 referente às Diretrizes Curriculares Nacionais da EEI, reconhecendo suas especificidades e, observando a distinção entre a Educação Indígena (EI) e Educação Escolar Indígena (EEI). A primeira como tradição e ancestralidade própria destes povos e a segunda, como modalidade resultante do contato com a sociedade nacional não índia.

Já no governo de Luis Inácio Lula da Silva, dois Programas foram criados, em 2008 e 2009 pelo MEC, no âmbito da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), para viabilizar a EI.

O primeiro foi o Programa de Apoio a Formação Superior e Licenciaturas Interculturais Indígenas (Prolind), que em 2013 liberou recursos para 16 Instituições de Educação Superior (IES), atendendo a 2.248 professores indígenas e neste mesmo ano 324 professores se formaram em curso superior e licenciaturas indígenas.

Esse Programa veio a ser estratégico para os povos indígenas, ao propor e implantar ações objetivas visando à efetivação dos sistemas escolares indígenas e suas escolas em Pernambuco, possibilitando o acesso à formação superior de professores que já atuavam nas escolas, o que lhes possibilita uma maior compreensão dos sistemas públicos educacionais, necessária para o diálogo com o Estado e a construção de uma escola intercultural, com a autonomia necessária para fazer as traduções e significações

necessárias a partir de suas diversas etnicidades e arranjos organizacionais, reelaboradas e reinventadas.

O segundo foi o Programa Nacional dos Territórios Etnoeducacionais (PNTEE), Decreto Presidencial nº 6.861/2009, que “consiste em um conjunto articulado de ações de apoio técnico e financeiro do MEC aos sistemas de ensino, para a organização e o fortalecimento da Educação Escolar Indígena”34. Foram pactuados 23 TEE até o ano de 2013. Além desses, aproximadamente outros vinte estavam em fase de negociação e estudos, Um possível TEE de Pernambuco, envolverá debates com os povos indígenas, o MEC e a SEE-PE, sendo necessário para sua implantação o cumprimento das seguintes etapas:

1. Consulta aos Povos Indígenas e constituição da Comissão Gestora: participam lideranças e representantes dos povos indígenas. São debatidas as dúvidas dos participantes com relação à implementação do TEE e sua possível área de abrangência.

2. Construção do Diagnóstico e do Plano de Ação: A partir da definição da área de abrangência e da composição da Comissão Gestora, passa-se para sistematização do diagnóstico da situação educacional e construção de um Plano de Ação do Território Etnoeducacional.

3. Pactuação: A partir da definição da Comissão Gestora, da sistematização do diagnóstico e da construção do Plano de Ação, é marcada uma data para a pactuação.

4. Funcionamento do Território Etnoeducacional: Após a pactuação do Território, a Comissão Gestora define a sua agenda de trabalho para o cumprimento das suas atribuições, inclusive propondo formação continuada para os seus membros (MEC, SECADI, 2015).

Em 2010, como construção da Conferência Nacional de Educação (Conae), foi elaborado o Plano Nacional de Educação (PNE 2014/2024) transformado na Lei 13.005 de 25 de junho de 2014, quando finalmente aprovado pelo Congresso e sancionado pela presidenta Dilma Rousseff. Em sua Meta 18.6 o PNE afirma que as políticas educacionais devem: “considerar as especificidades socioculturais das escolas do campo e das comunidades indígenas e quilombolas no provimento de cargos efetivos para essas escolas;”. Apesar de não estar em uma meta ou diretriz específica, a EEI está presente ao longo do PNE.

Observei, porém, que as ações e procedimentos voltados para a normatização da EEI se tornaram possíveis devido à atividade de movimentos indígenas e indigenistas, universidades e outros atores sociais presentes no cenário nacional, que no seu conjunto

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construíram pautas e agendas a partir das quais disputaram reconhecimento, afirmando suas demandas, proposições e reivindicações, assim como suas identidades étnicas e direitos coletivos.

Não foi um processo linear. Ao longo desse período, embates conceituais foram travados em campos ideológicos e políticos, nos quais setores da sociedade civil incorporam discursos, próprios do liberalismo. Acreditando em relações de “parceria” com agências financiadoras, em que cabia a estes setores apenas a execução de projetos e ações concebidos por tais agências, como possível solução de situações históricas de esbulho, desigualdades e preconceitos. Algumas outras foram “terceirizadas” pelo Estado, para a execução de políticas e ações nem sempre formuladas com a participação e a escuta dos índios e suas representações, em condições precárias, que obtiveram resultados pífios, muito aquém do esperado.

Mesmo com as normatizações específicas conquistadas, não parece coerente afirmar que foi instituída uma “cultura política” da educação escolar indígena, para viabilizar sua efetivação, nas relações entre os entes federados. Nas arenas, em que essa modalidade educacional vem sendo disputada, o Estado ainda não apresentou um conjunto de ações articuladas a serem desenvolvidas para viabilizar as demandas que as normatizações recomendam.

Dialogando com Kingdom (2007), analiso que desde a Constituição de 1988 abriram-se “janelas”, ou seja, brechas, situações e contextos forçados pelos movimentos indígenas e indigenistas, que possibilitaram a incorporação de reivindicações e proposições no arcabouço normativo da educação pública. Sobre esse contexto, segue o relato em entrevista do Profº. Pesquisador 1, da UFPE, é bastante ilustrador:

[...] o CIMI teve um papel muito importante nesse contexto, de apoiar a realização das assembleias dos chefes indígenas, e essas assembleias dos chefes indígenas, que no período de 74 a 84 foram realizadas 57, inclusive uma delas em Sergipe, na Ilha de São Pedro, lá nos Xocó, com muita participação dos povos indígenas do Nordeste. Então fez parte desse processo de organização. A gente pode avançar ali. E quais eram os principais temas dessas assembleias? A gente vai ver ali que alguns dos temas, a gente vai ver nos relatórios, eles vão permanecer nas lutas até hoje. Então, mas as assembleias ajudaram principalmente a reforçar esse sentido, esse reconhecimento do pertencimento ao mesmo povo, e aí foram gestando, foram possibilitando a criação das organizações (Profº. Pesquisador 1, da UFPE, 27.10.2015).

Foram esses atores que, em suas movimentações e elaborações, ao entrar por essas “brechas” e “janelas”, conquistaram – por meio de pareceres, resoluções, decretos e regulações – os respaldos legais que incentivaram as mobilizações dos povos indígenas em Pernambuco para a construção da escola intercultural e específica.

Sobre esse assunto, será discutido no próximo capítulo como se configuraram os processos de efetivação da EEI em Pernambuco, a participação dos povos indígenas e suas organizações e as novas agendas colocadas a partir das normatizações, bem como as novas arenas estabelecidas.

Capítulo 3

3 A EEI EM PERNAMBUCO: DAS RETOMADAS À POLÍTICA

INDÍGENA

[...] o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as

lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo

que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.”

Michel FOUCAULT

O que se traz junto

Entre 1982/83, participei como membro do Cimi-NE de uma ação, em conjunto com a Anaí-BA, para capacitação de professores nos territórios indígenas Kiriri de Mirandela-BA e Pankararé do Brejo dos Burgos-BA, com o apoio do governo federal. Neste tempo, tornou-se claro que o objetivo do projeto era conhecer mais a realidade escolar indígena do que “capacitar”, pois não seria possível capacitar um público desconhecido, e até mesmo localizar onde estavam e o que faziam. Nesse ínterim, eu acabava de chegar ao Cimi-NE e não conhecia o suficiente sobre os povos indígenas no Nordeste e na Bahia. Não estávamos cientes do que nos esperava e como exatamente executaríamos o Projeto. Foi uma construção participada e dialogada com os povos citados, construída com muita dedicação e improvisação de “rudimentos” de pedagogia e organização escolar.

Recorri ao meu “regime de memória”, por meio do qual tentei abstrair desta ação, dentro do contexto em que foi vivenciada a minha primeira experiência com a Educação Escolar Indígena.

Os professores e professoras eram jovens Kiriri que frequentaram escolas municipais nos distritos do Banzaê e Mirandela, município de Ribeira do Pombal-BA, bem como os Pankararé, na escola municipal do Brejo do Burgo, município de Glória- BA. As “escolas” eram salas em casas das/os professoras/es ou em espaços improvisados. Tinham por vezes quadro negro e giz, alguns cadernos, papel, lápis e alguns livros desgastados pelo uso, que eram utilizados como referência para conteúdos e didáticas.

Durante as conversas com professoras e lideranças, foi possível perceber que, naquele contexto, a exigência de uma escola municipal era uma demanda dos índios, que se perguntavam por que a municipalidade os ignorava neste campo, como em vários

outros. Não era explícito por professores e lideranças que tipo escola desejavam, mas deixavam implícito que os atuais professores e professoras deveriam estar presentes, como conhecedores das demandas do povo indígena e possibilidades locais, sinalizando com isso a participação dos índios na gestão e efetivação de uma escola no território indígena, onde se dispunham até construir o “prédio escolar”, voluntariamente.

Apoiávamos essas reivindicações como legítimas, por entender, neste tempo, que a educação escolar é um direito, bem como necessária para que estes povos, em pleno processo de reconhecimento – no caso dos Pankararé –, demarcação e desintrusamento de seus territórios, estivessem minimamente instrumentalizados para lidar com normas e procedimentos do Estado-nação.

No documento Download/Open (páginas 59-66)